terça-feira, 18 de novembro de 2014

O filho da Tágide ou a actualização do mito

                                                                                                                          

Um jovem pastor, abrigado numa gruta minúscula, abriu a boca de espanto ao ver um recém-nascido, calçando umas enormes sandálias, a circular em torno dos rebanhos do deus Apolo. O que quereria ele?  interrogou-se o pastor tiritando de frio.

Ainda não tinham passado três nuvens sobre o rebanho quando algo de espantoso aconteceu: o recém-nascido separou as melhores cabeças de gado e iniciou uma marcha às arrecuas, andando ele próprio de marcha atrás.

Surpreso com o que via, jovem pastor escondeu-se aqui e acolá e seguiu o estranho recém-nascido até ao local onde o viu a ocultar o gado. As dúvidas, quando ao acto que estava a ser cometido, dissiparam-se: era um roubo! Fosse quem fosse, o recém-nascido era um ladrão!

Seguiu o pequeno larápio, assegurando-se de que não era visto e verificou que ele se tinha acolhido a um enorme palácio, de todos conhecido como a morada de Zeus. Pelo ambiente festivo que aí reinava, ficou a saber que algo de muito importante se estava a passar. Curioso, perguntou a uma belíssima mulher que acabara de sair, o motivo de tal alegria . Foi informado de que a festa se devia ao nascimento de mais um filho de Zeus. Naquele preciso momento, viu assomar a uma janela do palácio a deusa Hera, furibunda, lançando impropérios cabeludos a Zeus. Aproveitou a presença da mulher para a questionar:

-Não deveria Hera estar contente pelo nascimento de mais um filho?

-Sim,  se fosse dela…

-Não percebo… -confessou o pastor.

-É filho de Zeus e de Maia e deram-lhe o nome de Hermes…

A conversa foi interrompida pela chegada faiscante de Apolo, que viera queixar-se a Zeus do comportamento de Hermes.

-De Hermes? Apolo, meu filho…o teu irmão Hermes é um recém-nascido! Anda vê-lo no berço…

Pé ante pé dirigiram-se à caminha de Hermes. Entraram no quarto. Hermes fingia dormir um sono angelical. Sem que Zeus ou Apolo se apercebessem, abria de forma imperceptível um olho e controlava-os nas suas deambulações ao redor do seu berço.

Zeus abanou-o de modo terno. Hermes fingiu despertar, ensonado, esfregando os olhos:

-O que foi meu pai?

-O teu irmão Apolo, acusa-te de lhe teres ficado com metade do seu rebanho. Tem testemunhas do teu acto. Deves devolvê-las ainda hoje com um pedido de desculpas.

Hermes, apanhado em falta, olhou à sua volta e reparou numa carapaça de tartaruga e logo ali inventou a lira e deu-a a Apolo. Este, comovido, não só lhe perdoou o roubo como lhe deu o rebanho que Hermes lhe tirara, e ainda lhe ofereceu o seu bordão alado, o caduceu.

Hermes agradeceu e dirigiu-se o mais depressa possível ao esconderijo. Ao chegar verificou que metade do rebanho desaparecera. Gritou furioso:

-Quem ousou roubar o filho de Zeus e irmão de Apolo?

De um canto da gruta, ouviu-se uma voz:

-Fui eu Hermes…vi-te tirar o rebanho a Apolo …

-E depois? Isso deu-te o direito de o tirares de mim?

-Claro que sim!- respondeu-lhe o pastor de modo agressivo.

-Como assim!

-Peço-te desculpa…sei que és um deus mas ainda não sabes tudo. Ladrão que rouba a ladrão tem cem anos de perdão.

-Mas quem és tu, descarado, que me vens dar lições…

-Eu não sei bem quem sou,  mas já me disseram que também sou filho de Zeus…

-Filho de meu pai? E quem é a tua mãe?

-Disseram-me que Zeus soube de uma bela Tágide que habitava na Ibéria. Apaixonou-se quando a viu. Desses amores nasci eu…

-Mau, por Zeus, tenho outro irmão tão ladrão como eu…

E foi aqui que duas serpentes saltaram do fundo da gruta, cada uma do seu canto e Hermes lançou o bordão que Apolo lhe dera para as separar. Elas enrolaram-se de forma pacífica à volta do bordão, que se tornou o símbolo de Hermes.

Hermes, voltou-se para o filho da Tágide, seu irmão, e disse-lhe:

-A partir de agora vais transportar o meu caduceu. Serás o meu representante, o meu ajudante, quando eu não tiver possibilidades de transportar uma mensagem, proteger os ladrões, os comerciantes e outros quejandos…

E foi assim que os países ibéricos se tornaram um paraíso para os discípulos de Hermes, com direito a um embaixador permanente.Era filho de Zeus e de uma Tágide, irmão dilecto de Hermes, venerado por uma corte enorme de discípulos, que foi crescendo ao longo dos séculos.

Jorge C. Chora




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