segunda-feira, 14 de outubro de 2013

Fado

Se sai do coração é fado
embora digam que nem tudo
o que daí jorra o é.
Ai não ?
O que é o amor senão fado?
E a fúria e o encanto, também a inveja e a má-língua,
a velhacaria e as saudades ?
Tudo o que saí do coração pode ser fado, seja escrito ou cantado,
porque o que hoje está rabiscado, amanhã pode ser cantado.
Se sai do coração, é mais do certo, será fado,
embora digam que nem tudo o que daí brota o seja.
Certo, mais do que certo, é que tudo o que é profundamente sentido,
amanhã será fado, seja cantado ou rabiscado.


Jorge C. Chora

terça-feira, 1 de outubro de 2013

Ushanka,o gorro milagreiro

O senhor era feio. Assemelhava-se a uma mistura de abutre e de mocho velho, caso fosse possível acasalar estas espécies! Teoricamente não era, mas na vida real, era a prova provada, de que os impossíveis não existiam! Para além da fealdade, da qual não tinha culpa absolutamente nenhuma, associava outras características não menos penalizadoras, das quais devia assumir, de facto, a total responsabilidade: implicativo e pouco social.

O cavalheiro apercebeu-se de que certos sons tinham o condão de acalmar as pessoas, de as tornar mais abertas, permeáveis e receptivas à presença de estranhos. O som era o de pombos a arrulharem. Mandou fazer um gorro à russa, onde cabia um casal de pombos.

Todos os dias, antes de sair, encafuava o casal, que ia ao pombal buscar, no interior do seu gorro e saía à rua todo sorridente.

Já no jardim, aproximava-se de um grupo de senhoras que ali se encontrava. Pouco depois, era convidado a sentar-se entre elas e o número de senhoras idosas ia aumentando gradualmente, à medida que as pombas iam produzindo os sons acolhedores. A estas senhoras juntavam-se outras mais jovens e atraentes.

A cachaça a que era tão afeiçoado e lhe causava aquela vermelhidão na ponta do nariz, era confundida com timidez excessiva, com um rubor amoroso e delicado.

Aos poucos, sem dizer uma única palavra, tornou-se uma figura indispensável, um acompanhante de valia.
Quando ao fim da tarde as senhoras regressavam a casa, ele dirigia-se à taberna. Os frequentadores habituais rodeavam-no e demonstravam o espanto:

-Como é que tu consegues juntar as senhoras ao pé de ti? O que é que lhes dizes? Que conversas tens?

-O homem sorria e estendia o copo. Enchiam-lho de cachaça. Depois de muito instado, contava duas ou três coisas sem importância e murmurava, de modo misterioso:

-Qualquer dia conto-vos…

Um dia resolveu embaratecer os custos da alimentação dos pombos. Começou a dar-lhes uma ração de má qualidade e de baixo preço e a cortar-lhes a quantidade.

Dias depois, ao aproximar-se das amigas, estranhou a forma como estas o olhavam.

-O que é que o amigo tem a escorrer-lhe pela testa abaixo? – Interrogaram-no - com um ar enojado.
Antes que o homem respondesse, adiantaram-se os pombos:

- Basta cheirarem…

Jorge C. Chora