terça-feira, 23 de agosto de 2011

Os "calduços"

Mal os primeiros roncos de motor se ouviam, as apostas desencadeavam-se:

-Cai ou não cai? Quem aposta no sim? E no não? – e o Ruço ia aceitando o dinheiro e anotando os respectivos apostadores.

O carro aproximava-se e as atenções de todos os jovens concentravam-se no buraco existente à frente da esplanada do café da vila. Esperavam e viam se a viatura conseguia evitá-lo ou se caía nele. A diversão há muito que existia e era um dos passatempos de Verão.

Uma espécie de soluços à mistura aliada a um arfar roufenho, colocou em alerta os jovens que se preparavam para as apostas.

-Ó malta, deve ser o ti`Afonso !- berrou o Ruço.

Uma carripana, progredindo aos solavancos, conduzida pelo velho Afonso, ao abeirar-se da cratera foi desviada por um grande grupo dos jovens presentes que lhe fez sinais para o desviar do perigo.

Um visitante estranhou o facto:

-Tantos a avisarem o senhor? Então as apostas?

-Se não o avisarmos, já sabemos… temos todos de nos pôr em fila para levarmos um “calduço”…

-Mas ele não sabe da existência do buraco?

-Saber sabe…mas esquece-se… - responderam os que estavam mais próximos.

-Mau…mas o que estranho é que vocês deixem que eles vos dê uns cascudos…

-É que ele é nosso parente…muito próximo…a maior parte de nós somos sobrinhos-netos e alguns… netos…

-Bom…mas nem todos são…eu, por exemplo, não lhe admitia! Virava-me…

-Estavas tramado…levavas cascudos de todos os netos e sobrinhos-netos.

Jorge C. Chora


quinta-feira, 18 de agosto de 2011

A camisola

Olhava-a de modo disfarçado, desviava os olhos para logo de seguida tornar a olhá-la. Estava sentado no banco do comboio bem à sua frente. Era um senhor de meia-idade, de ar distinto. Via-se que estava incomodado. Mexia-se, cruzava a perna, descruzava-a, parecia não ter posição. Entretanto ia desviando os olhos e olhando de modo nervoso a jovem senhora.

-A senhora desculpe-me…estava a evitar dizer-lhe mas não consigo …tem a camisola ao contrário… - disse-lhe o cavalheiro.

A jovem puxou a gola um bocado para a frente, observou-a e agradeceu:

-Tem toda a razão. Muito obrigada. – e, logo a seguir, recolheu o braço direito para o interior da camisola, seguindo-se o braço esquerdo, fazendo-a rodar no pescoço, corrigindo a sua posição e repondo correctamente a parte da frente e a detrás. Isto tudo sem mostrar sequer um milímetro de pele.

O cavalheiro arqueou as sobrancelhas e demonstrou o seu espanto:

-Que rapidez…que eficiência…se soubesse ter-lhe-ia dito mais cedo…não mostrou nada…quase que me arrependo de lhe ter feito o reparo…

A jovem sorriu timidamente e respondeu-lhe, sem qualquer inibição:

-Só daqui a dois meses é que valerá a pena, quando tiver mudado completamente e me chamar Madalena em vez de João.

-Pois olhe menina, para mim, já é Madalena… -respondeu-lhe o cavalheiro, de modo delicado, sem perder o pé.

-Então daqui a dois meses…não me esquecerei de trazer a camisola ao contrário - despediu-se a futura Madalena, ao apear-se na estação seguinte.

Jorge C. Chora

quinta-feira, 11 de agosto de 2011

O que para uns é ouro...

Caminhava pela berma da estrada de modo inseguro. Apoiado em canadianas ia à horta tratar os tomateiros. Carregava, suspenso ao pescoço, um alforge cujas bolsas lhe pendiam ao peito e balouçavam ao sabor dos pequenos passos que conseguia dar. Não tinha quem o ajudasse e não se queixava por dois motivos: o primeiro porque nunca tivera esse hábito, o segundo porque nunca tivera a quem.

Ia pensando que a aliança entre a sua idade, que crescia a olhos vistos, e a doença que persistia em atacá-lo, lhe afectava a marcha e os seus pequenos afazeres, quando sentiu uma voz atrás de si:

-Pst…pst…para onde é que o cavalheiro vai?

Desconhecendo por completo a voz, esteve vai-não-vai para se abespinhar. Qualquer coisa lhe dizia que algo estava para acontecer.

-Então o tiozinho não fala com os pobres? Manias de rico…

A dor do joelho acentuou-se. Mau sinal, pensou. Resolveu conter-se e ripostou:

-A única riqueza que tenho, está nestas bolsas que levo ao peito e, caso faça muita questão, sou homem para a partilhar consigo…

Ainda mal acabara a frase quando sente em cima de si dois braços a agarrá-lo e as mãos do amigo do alheio a enfiarem-se nas bolsas do seu alforge e a roubarem-lhe o conteúdo.

Quando o larápio se deu conta de que o que tinha nas mãos era estrume, enfureceu-se:

-Está a gozar-me? Então isto é que é a sua riqueza?

-Então o senhor ladrão não sabe, ou ninguém lhe ensinou, que o que é ouro para uns é trampa para outros?- e, sem que o larápio esperasse, assentou-lhe uma bengalada no alto do cocuruto que o deixou a cacarejar.

Um vizinho que por acaso ali passava, dissuadiu o fedorento larápio de reagir, dando-lhe uma biqueirada de uma força tamanha que o homem deixou de cacarejar para passar a zurrar.

Já imaginou, caro leitor, se acontecesse o mesmo a todos aqueles que nos vêm aos bolsos buscar as nossas migalhas?

Jorge C. Chora

terça-feira, 2 de agosto de 2011

A senhora que não cabia na casa de banho

Pediu para ir à casa de banho mas ficou entalada entre a porta e a sanita. Gritou por socorro e foi socorrida. Ajudaram-na a desencaixar-se. Não foi tarefa fácil.

Riram-se à socapa os presentes. A senhora, agastada, virou-se para um enorme cavalheiro que também ali estava e desancou-o:

-De que se ri? Vá lá o senhor entrar, ou melhor, tentar entrar, e logo verá o que lhe acontece!

-Minha senhora, no meu caso foi preciso chamar os bombeiros. Só a persistência de uma bombeira é que me salvou.

-E pelo visto é hoje a sua esposa… -alvitrou a desencaixada.

-Como adivinhou?

-É que o meu também o é! São eles que têm jeito para os XXL…

-Perdão minha companheira de infortúnio. Não se culpabilize. A verdadeira culpa, a existir alguma, será do estabelecimento que devia ter afixado as medidas do WC à porta do mesmo ! ah e um aviso visível com os dizeres explícitos: Para raquíticos.

E saíram de braço dado, dando grandes gargalhadas, perante o espanto dos inúmeros “enfezados” que povoavam o local.

Jorge C. Chora