quinta-feira, 29 de julho de 2010

Francisco e o Dragão Anão

O pequeno Francisco olhou e não acreditou. Olhou de novo e ali estava, em cima de uma pedra o estranho bicho. Media um palmo e meio se tanto. Um palmo dos do Francisco.

-O que é isto?- exclamou sem se conter.

Por alguma razão não teve medo. Observou-o com muita atenção. Tinha na cabeça uns corninhos pequenos e uns olhos vermelhos, muito vivos. Tirava constantemente a língua comprida, que enrolava na ponta. Do nariz, dois pequenos orifícios, saíam pequenas faíscas cuja direcção mudava de acordo com o movimento da cabeça. As costas tinham uma espécie de pequenas pedrinhas até à cauda, que terminavam numa seta carnuda e verde. De lado viam-se duas asas, cobertas com uma espécie de escamas multicolores.

-Quem és afinal? Consegues falar? Tens nome…? - perguntou o Francisco.

-Calma, tem calma…uma pergunta de cada vez… - respondeu-lhe com uma voz pausada, forte e segura.

-Começa por dizer-me quem és…

-Esqueceste-te de pedir-me por favor…

-Desculpa-me, esqueci-me…por favor – emendou de imediato o Francisco.

-Sou o Hip… foram os meus pais que assim me chamaram porque, quando era pequeno estava sempre com soluços…

-Com soluços?

-Sim… - e pôs-se a imitar - hip…hip….hip…

-Então és pequenino…

-Sim e não… – disse-lhe o Hip.

-Não entendo…

-Eu explico. Sou pequeno de tamanho mas grande de idade.

-Agora é que não entendo mesmo nada…

-Tens de ter calma. Dá-me tempo para te contar e vais ver que me entendes. Tudo tem o seu tempo.

-Bem…estou curioso… conta-me.

- Vi pela primeira vez a luz do dia há muito, mas mesmo muito tempo, ainda os avós dos teus avós não tinham nascido, nem sonhavam nascer.

-Mas então, se tens tanta idade, como é que ainda tens esse tamanho?

-Antes de mais preciso de saber o teu nome…

-Sou o Francisco…

-Tenho muito gosto em conhecer-te. Olha, voltando à nossa conversa… tenho este tamanho porque sou anão…

-Anão? Mas és assim de nascença?

-Sim, tal como os meus antepassados, desde que eu me conheço… e conseguimos sobreviver até aos dias de hoje porque fomos diminuindo de tamanho…

-E há outros como tu?

-Que eu saiba não….Minto, tenho uma prima…mas não vive por estas bandas…

-E as pessoas deixam-te em paz? O que é que elas dizem quando te vêem? Nunca te quiseram fazer mal? E…

-Lá estás tu a querer fazer-me mil perguntas ao mesmo tempo. Assim deixas-me nervoso e começo a deitar mais chamas…posso queimar-te sem querer! – e, logo de seguida, lançou uma labareda em direcção ao céu que chamuscou o rabo da velha gaivota que por ali passava e assim reagiu:

-Quem ousa chegar-me fogo ao rabo? Onde estão os malvados que me querem mal?

-Perdão D.ª Gaivota, foi sem intenção. A culpa é minha… irritei o Hip sem querer…
-desculpou-se Francisco.

-Logo vi que isto era coisa do Hip, esse velho e irritadiço dragão, com idade para ter juízo, mas sem melhoras nenhumas…

-Conhece o Hip?

-Todos o conhecem por estes lados. Tem o hábito de repreender as pessoas que não se portam bem, aquecendo-lhes as faces com algum calor. Castiga os que fazem alguma coisa que não devem: ficam com a cara encarnada. É por acção do Hip.

-E as pessoas aceitam? Não o perseguem? – espantou-se Francisco.

-Como, se não o vêem?

-Diga? O Hip é invisível?

-Claro !- exclamou a velha gaivota – se o vissem já tinham acabado com ele.

-Então como é que eu o vejo?- surpreendeu-se Francisco.

-Porque ele está bem disposto e simpatizou contigo!- disse-lhe a gaivota- além de que deve querer dizer-te alguma coisa importante.

-É verdade Hip?- perguntou Francisco.

-Se a minha amiga gaivota te disse é porque sabe! – respondeu-lhe mal humorado Hip.

-Todas as crianças contam com a protecção do Hip. Ele não perdoa é aos meninos ou aos que já deixaram de o ser, maldades, mentiras … acções que prejudicam os outros…

-Quando as pessoas sentem a cara a arder…. É porque … - tentou concluir Francisco.

-É porque o Hip está próximo e a asneira aconteceu ou estava para acontecer! – interrompeu a gaivota.

-Então o Hip…

Mais uma vez a gaivota lhe cortou a palavra e o raciocínio:

-Está cansado de trabalhar, descansa pouco ou nada, e ninguém ou quase ninguém sabe que ele existe.

Se alguém ainda não sabe porque razão às vezes fica roborizado, sabe agora qual o motivo. Também nunca viu o Hip ou estou enganado?

Jorge.C.Chora

terça-feira, 13 de julho de 2010

O Sargento Sábio

No tempo da guerra colonial, um jovem estudante de medicina, com a cabeça repleta de heroicidades, comunica à mãe que vai oferecer-se como voluntário para o exército.

A mãe deita as mãos à cabeça, não sabendo bem o que dera ao seu rebento, e o que fazer ao seu súbito apetite: se resolvia o caso com uma chapada, à antiga portuguesa, ou com uma descompostura quilométrica. Optou pela segunda hipótese, mas sem qualquer sucesso. O moço fez-se de surdo.

Logo que pôde dirigiu-se ao centro de recrutamento. Questionado pelo sargento de serviço sobre o que desejava, todo afoito disse ao que vinha:

-Quero oferecer-me como voluntário.

-Muito bem… - e o sargento encaminhou-se para a máquina de escrever, senta-se e dispara – nome e idade…

Em voz grossa, de peito inchado, despejou o nome, como se fosse um escultor a trabalhar a pedra.

O sargento martelou o nome e a máquina resistiu à investida de forma heróica.

Grafado o nome e a idade, voltou à carga:

-Profissão?

-Estudante do primeiro ano de medicina.

O sargento suspendeu a escrita. Sem sequer voltar a olhar para o mancebo, tirou o papel da máquina e disparou:

-Nós precisamos é de médicos. Vá acabar o curso e depois volte.

Sem esperar a resposta do mancebo, voltou-lhe as costas, não sem que antes lhe tenha desejado um bom-dia.

O país ganhou um bom cirurgião e, pelo que conheço da figura, livrou-se de um militar que vou ali e já venho. Safa!

Jorge C. Chora

terça-feira, 6 de julho de 2010

O cheque dentário

Com uma cara de poucos amigos, entrou no café, sentou-se com as costas da cadeira viradas para a frente e ordenou:

-Uma cerveja, um pastel de nata e um rissol.

Bebeu a cerveja e ia a metade do rissol quando desatou aos ais.

-O que é que o senhor tem?-perguntaram os funcionários.

Agarrado à boca, pediu a chave para ir à casa de banho. Saiu logo depois, com um pequeno guardanapo, com uma pintinha de sangue e pediu, numa aflição, um bagaço para desinfectar a boca, pois tinha espetado um osso!

-Um osso? O mais que pode ser é um bocado de camarão! – exclamaram os empregados.

Após” bochechar“ a bagaceira, dirigiu-se ao balcão e intimou:

-Qual de vós me acompanha ao dentista?

-Acompanhar ao dentista?

-Sim…não vêem a minha dor? Chamem uma ambulância…

Os funcionários arregalaram os olhos. Eles que nunca tinham ido ao dentista, estavam a ser solicitados para acompanhar um marmanjão com um dói dói…

-Mas que idade tem o senhor!

Nisto, saí da cozinha o ajudante, homem enorme que trabalhara numa clínica veterinária, cuja secreta ambição era ser dentista, com um facalhão impressionante, todo sorridente, a oferecer-se:

-Quem precisa de um dentista?

O homem, que já desandara sem pagar a conta, criou asas e ainda houve quem ouvisse pela rua fora a sua aflição:

-Olha que o cheque dentário me ia saindo caro!

Jorge C. Chora

segunda-feira, 5 de julho de 2010

Almoço para dois

Surgiu na curva aos ziguezagues. Os pneus da viatura chiaram e o condutor, num frenesim, sacudia-se e agitava o pano de pó. Conseguira escapar, até ao momento, de uma ferroada do besouro. Pelo zumbido, era dos grandes. Pior do que isso, mostrava uma tenacidade sarnenta e feroz nos ataques que proferia.

Mal acabara de descrever a curva é mandado parar. Era uma operação stop. O agente aproxima-se. Faz uma continência a preceito, batendo em simultâneo os calcanhares:

-Sr. Condutor, identifique-se e mostre-me os documentos da viatura, por favor….
Enquanto o automobilista cumpria a ordem o agente não se conteve:

-Aos ziguezagues depois do almoço…

-Sabe Sr. Agente… o besouro…

-O besouro? Vamos ver que história vai contar quando soprar o balão… -disse o polícia olhando-o de soslaio.

As palavras ainda não tinham sido ditas quando o polícia lança aos quatro ventos um grito de dor: levara uma valente ferroada no pescoço.

-Pelo visto almoçou o mesmo do que eu… - comentou o motorista.

-O mesmo não digo eu… o Sr. ficou-se pelo aperitivo e eu pelo prato principal…. – concluiu.

JorgeC.Chora