sábado, 30 de novembro de 2019

JUSTIÇA CANINA



O casal sentou-se a ler os jornais do dia, numa confortável sala de uma junta de freguesia. Ela optou pela poltrona e ele sentou-se, a seu lado, mas num sofá de dois lugares.
O sossego e o ambiente de silêncio não opressivo, criavam um bem-estar natural, adverso a snobismos e propício ao que o casal procurava: passar algum tempo de qualidade antes do almoço.
Vozes altas, num diálogo audível em todo o espaço, rasgaram o silêncio e impingiram a todos os presentes, assuntos que, à partida, nada lhes interessavam.
No sofá de dois lugares, atirou-se para o espaço vago, um homem de meia idade, bem vestido e trombudo, sem dizer sequer “ bom dia”. Desfolhou revistas e jornais, afivelando uma máscara seráfica, até que deixou cair uma série de folhas da revista que lia ou fingia ler.
As folhas espalharam-se no chão. A senhora levantou-se, apanhou-as e deu-lhas. O homem continuou a ler, não as recolheu, nem sequer se dignou a agradecer o gesto. A senhora pousou as folhas no sofá, no lugar do seu marido que tinha ido arrumar os jornais.
À saída, quando o homúnculo acabara de transpor as portas, um cão sarnento rosnou-lhe, alçou a perna e urinou-lhe as calças enquanto ele, trémulo, lhe dizia:
-“Tadinho”… “tadinho”…estavas cheio de vontade de fazer chichi…
E o cão sarnento, continuou a sua tarefa, até lhe deixar as calças a pingar.
E a senhora, contendo o riso, consolou-o:
-Não se envergonhe, a incontinência urinária pode atingir qualquer um…

Jorge C. Chora

30/11/19

quinta-feira, 28 de novembro de 2019

AMIGO VENTO



O vento é meu amigo,
ao ouvido me fez chegar
o amor por ela declarado.
Pedi-lhe o favor,
da declaração lhe retribuir,
e o vento assim fez:
soprou-lhe numa carícia,
todo o meu amor
e a resposta, tornou a dá-la o vento
num pequeno tufão,
trazendo-a para meus braços,
para eu nunca, mas nunca mais
a soltar.
O vento é meu amigo,
pois ao ouvido me fez chegar,
 o amor a meus braços.

Jorge C. Chora
28/11/19

terça-feira, 26 de novembro de 2019

MANEQUIM



Extasio-me ao olhar-te,
derrapam-me os olhos
na curva das tuas ancas,
sinto vertigens
ao ver-te mexer
as tuas longas pernas,
perco-me nas maçãs
do teu rosto,
na sensualidade dos teus gestos.
Imagino-me um Pavarotti cantando,
não a Mannon, mas a ti, deusa intemporal:
“DONNA NON VIDI MAI, SIMILE A QUESTA” e
eis senão quando, já desperto,
caio em mim e reparo,
na ausência de cheiro e sabor
atributos de uma simples manequim.

Jorge C. Chora
26/11/19

sábado, 23 de novembro de 2019

O TEU BEIJAR



O teu beijar é
uma ascensão ao céu,
cada beijo um degrau,
tomara nunca lá chegar,
trepar sem nunca o alcançar,
saborear o teu beijar,
usufruir o céu
ainda sem o alcançar,
trepar, trepar,
gozá-lo mesmo
antes de lá chegar.

Jorge C. Chora
23/11/19

quinta-feira, 21 de novembro de 2019

A ANDORINHA QUE NUNCA QUIS DEIXAR DE VOAR


             
 A andorinha deu por concluído o ninho mas abandonou-o dois dias depois. Perguntaram-lhe porque abandonava a casa, após ter tido tanto trabalho.

-Porque me informaram de que aqui não é permitido voar!

-Mas … e o trabalho que tiveste a construir a tua casa! Aqui não te falta nada, do sol ao alimento…

E a andorinha respondeu:

-Como poderia eu ensinar os meus futuros filhos a voar?

-De nada disso precisas. Dão-te tudo! -exclamaram os pássaros vizinhos.

- E no dia em que te retirarem o que te deram?

-Isso nunca acontecerá… - disseram um pouco agastados os presentes.

-Pois é… se já vos retiraram a liberdade de voar e vocês deixaram, tirar-vos-ão tudo o que quiserem …
-Então voaremos para outro local… - responderam de imediato.

-Como, se ninguém sabe voar?

Jorge C. Chora 

21/11/19

quarta-feira, 20 de novembro de 2019

D. PRECIOSA E A SUA ETERNA DOR DE DENTES



De boina e bengala, Salvador Ferreira, vai debitando histórias e quadras políticas d’outrora, encostado ao balcão do café de Artur Vaz, na Amadora.
Nasceu numa aldeia, gosta e anseia há muito tornar a viver numa. Recorda figuras de antanho, quando ainda era menino e veio-lhe à memória a veneranda figura de D. Preciosa. Sempre de preto vestida, embrulhada em lenços e xailes, tinha a particularidade de segurar, em permanência, uma ponta do mesmo em frente à boca.
Condoía-se o jovem Salvador, da alegada e eterna dor de dentes apregoada por D. Preciosa.
Cresceu e um dia, seu pai, desvendou o verdadeiro segredo da ponta do xaile:

-Qual dor de dentes! Ela é devota do tinto! Aquilo é para não tresandar a vinho, para ocultar o bafo…

E a desculpa piedosa e conveniente da dor de dentes esfumou-se, não tendo Salvador notícia sobre a estratégias adoptadas pela fã do pipo, para continuar a usufruir do néctar sem alegar a sua eterna dor…

Coisas de terras pequenas…tudo se sabe, mesmo aquilo que não se quer que se saiba! Nem uma dor de dentes se podia alegar em paz e sossego!

Jorge C. Chora
19/11/19

sábado, 16 de novembro de 2019

D'OIRO FEITA


D’oiro são,
tuas mãos e pensar,
ricos tesouros serão,
se d´oiro
for o teu coração;
serás então,
mulher inteira,
ouro de lei,
um ser de excepção.

Jorge C. Chora
16/11/19

terça-feira, 12 de novembro de 2019

DADO E ARREGAÇADO



Por entre mesas e cadeiras, o homem ziguezagueava com uma perícia inigualável ao desviar-se dos obstáculos. O motivo era só um: pedinchar tabaco ou uma moedinha.
Não falhava um dia que fosse e pedia sempre do mesmo modo:

- Dá-me um cigarrinho?

- Mas eu já te dei ontem! E para além disso, raramente te vejo a fumar! -respondiam alguns.
A resposta estava engatilhada:

-Amanhã juro que não lhe peço…  não me vê a fumar porque eu poupo para dar para o dia inteiro.

Caso a lengalenga não pegasse, saltava outro pedido:

-Então vá…uma moedinha para tomar um café…

Feita a colheita, desaparecia e ninguém sabia o rumo que tomava. Um belo dia, uma vítima diária dos seus peditórios, encontrou-o numa cidade próxima, numa rua esconsa e de má fama. Estava sentado num caixote, tendo a seu lado, no chão, cigarros expostos em cima de um pano. Encostado à parede, havia um cartaz de cartão canelado com o seguinte aviso:

                                        CIGARROS AVULSO. 0,40 A UNIDADE

A um cliente que pretendia comprar-lhe um cigarro por 10 cêntimos, a resposta foi imediata:

- Queres dado e arregaçado? Isto não cai do céu!

E quando perguntaram, a quem contou a cena, o que fazia naquela rua mal-afamada, apressou-se a justificar:

-Fui dar-lhe uma moedinha, pois hoje ele não foi ao café!

Jorge C. Chora
12/11/19

sábado, 9 de novembro de 2019

A SENHORA DO Ó



Ó é espanto,
vogal e encanto,
vida renovada,
fruto abençoado do ventre de Maria,
gravidez amada,
por todos testemunhada,
recebida com festejos e ós de alegria.

Jorge C. Chora

      9/11/19

quarta-feira, 6 de novembro de 2019

À MULHER-SEMPRE-MENINA




Para ti mulher,       
outrora menina,
se não deixaste
de te maravilhar
e escutar o Mundo,
nem perdeste a capacidade
dele te enamorar,
mereces chamar-te
a sempre-mulher-menina
e ser amada tal qual como és.

Jorge C. Chora
     6/11/19

terça-feira, 5 de novembro de 2019

A CAIXA DE PARAFUSOS




Sentava-se todos os dias, à esquina do jardim, num banco de ferro forjado que ali existia. Ninguém sabia ao certo desde quando ele para ali fora. As pessoas tinham a sensação de o terem sempre visto naquele local.
Chegava por volta das oito da manhã e trazia uma caixa de madeira que depositava no chão, à sua frente.
Raro era o transeunte que não conhecesse. Sabia-lhes os nomes, as profissões, a morada e os hábitos.
Após breves diálogos, mantidos com quem passava, abria por vezes a caixa, retirava um parafuso e oferecia-o ao seu interlocutor, utilizando sempre a mesma expressão:
- Desejo-lhe as melhoras…
Neste momento ofertava a prenda ao dono de um café, que se habituara a dar a mesma resposta a quem lhe perguntava se os bolos eram frescos: estão frescos, estão no frigorífico -e impingia-os já com dois e três dias de existência.
Logo a seguir, a um senhor que falava de assuntos que lhe eram desconhecidos, criticando-os como se fosse um entendido, deu-lhe dois parafusos, acrescentando um desejo:
-As duplas melhoras…
Tantas ofertas fez que um dia, alguém que tinha acabado de receber a prenda do costume, se enxofrou:
-E não se oferece a si próprio um parafuso que lhe falta?
-Claro que sim! Para onde julga que vão os parafusos que sobram ao fim do dia?

Jorge C. Chora
5/11/19

sábado, 2 de novembro de 2019

O MARINHEIRO HIRSUTO



 Um velho marinheiro tinha uma barba tão grande que lhe chegava ao peito. Ela estava tão branca que se confundia com um floco de neve.
Estava sempre rodeado de alguns filhos, netos, bisnetos e outros que se diziam pertencentes à família, embora ele achasse que não os conhecia de nenhures. Tratava-os, no entanto, todos bem
Adorava contar histórias, umas verdadeiras e outras nem tanto. Numa manhã nublada, bem rodeado como de costume, um ébrio malcheiroso, cambaleando, aproximou-se do grupo que o rodeava, tendo estes tentado afastá-lo.
O marinheiro pediu-lhes que o deixassem aproximar-se. Mal o intruso deles se acercou, perguntou, de um modo agressivo e insolente:

-Ó pá, porque usas essa barba até ao peito? Ela serve para quê?

De modo paciente, o velho marinheiro retorquiu-lhe:

-Amigo, esta barba que aqui vês, já me salvou a vida e aos meus companheiros também, por diversas vezes. Em dias de temporal, os cabos de atracação do navio ao cais perdiam-se, e eu tinha de lançar as minhas barbas para os substituir…

E o alcoolizado, oscilando, replicou, mastigando as palavras:

-Seu aldrabão das dúzias, como é que as tuas barbas, tão pequenas. substituíam os cabos do cais!?

E a criançada que cercava o velho marinheiro, gritou, abespinhada e em uníssono:

-Não vês que as suas barbas, quando era novo, eram bem maiores e chegavam ao cais com a maior facilidade?

Jorge C. Chora
2/11/19