terça-feira, 27 de março de 2018

A PROMOÇÃO DOS TRAUMAS



Contraiu as narinas ao entrar na rua. Franziu a testa e apertou o nariz. Um vento, diferente do que conhecemos no poema, não calou a desgraça, trouxe-lhe um cheiro pestilento, uma miscelânea a peixe e a carne putrefacta.

O que seria? A que se deveria o pivete? Tirou um lenço da algibeira e usou-o como uma máscara anti náusea e avançou. Quase no final da rua, deparou com um cartaz que anunciava uma exposição e dizia:

 OS MALES DA SOCIEDADE CHEIRAM TÃO MAL OU PIOR DO QUE ISTO.

Ao lado do cartaz encontravam-se pendurados um bacalhau e um presunto em decomposição.
A exposição foi visitada por três pessoas: os pais e a irmã do autor.

Jorge C. Chora
  27/3/2018


segunda-feira, 26 de março de 2018

O CÃO RONHOSO E A SUA DONA




Há dias, uma senhora que já ultrapassara em algumas décadas a meia idade, conversava com o seu cão:

-Tu não tens pena de mim? Olha que saímos de casa ao nascer do sol…

E o velho cão, impávido, alçou a perna direita, aproximou-se da parede, mas acabou por se afastar, dar uma volta e erguer a perna esquerda com o mesmo resultado: não urinou. Repetiu o ritual mas sem qualquer sucesso.

A octogenária zangou-se com o seu velho e ronhoso companheiro de andanças:

-Olha que tu paraste em todas as capelinhas...numas rezaste e noutras não!

O cão fitou-a e iria jurar que piscou o olho à dona, que também disso se apercebeu, e que assim desabafou:

-Repara que eu também estou cheia de vontade de rezar mas não posso, como tu, limitar-me a levantar a perna e aí vai água… Despacha-te!

Jorge C. Chora
26/3/2018


domingo, 25 de março de 2018

CINDERELAS PORTUGUESAS



Pés como os delas,
nunca outras mulheres
os tiveram ou terão assim:
pequenos, delicados e belos.
Ainda que desejem seguir
 as suas pegadas,
isso será impossível,
simplesmente não deixam rasto,
tal a leveza e a graciosidade,
dos seres a quem pertencem,
que não andam, mas levitam.

Jorge C. Chora
25/3/2018

quarta-feira, 21 de março de 2018

UMA ESTRELA QUE TAMBÉM É MINHA



Não sei quantas
estrelas há no céu
e pouco me importa,
se são milhares ou milhões;
o que eu sei
é que, aqui na terra,
também tenho uma,
que me alumia
e que brilha tanto,
como as que estão lá céu,
com a vantagem de tê-la ao pé de mim
e poder beijá-la todos os dias.

Jorge C. Chora

21/3/2018

quarta-feira, 14 de março de 2018

AS INDECISÕES



 Eram graciosas as indecisões,

os fingimentos, o quererem sem querer,

não quererem o que queriam.

Hoje em dia,

insistir na estratégia,

é sedução algo semelhante a um produto chinês:

só se usa uma vez.

Poucos acham graça

à incapacidade de abolir o "Nim",

de usá-lo como se fosse

um produto chinês,

que é barato,

mas que só se usa uma vez.

Jorge C. Chora

14/3/2018

terça-feira, 13 de março de 2018

O ARFAR DA DONZELA



Sonha a donzela,

a arfar de desejo,

e a tremer de amor,

ir à janela,

afogar o ardor,

liquefazer a agonia,

a pensar em quem

a faz ficar assim,

a tremer de amor

e a perder-se de desejo.



Jorge C. Chora
13/3/2018

sábado, 10 de março de 2018

A MINHA FLOR




Tenho uma flor

que gosta tanto

de ti, como eu:

floresce mal te pressente,

sorri quando estás presente

e quase desaparece,

quando te ausentas.

Agora sei porque

teimas em comparar-me

àquela flor,

mas a única que conheço,   

dotada de coração,

és mesmo tu,

que o és da cabeça aos pés,

flor que sentes e retribuis,

o amor que as flores e eu te temos.



Jorge C. Chora

10/2/2018

quinta-feira, 8 de março de 2018

AS DORES DA CAETANA



A minha doce Caetana, tão meiga quanto rabina, enquanto lhe preparam o banho, gosta de fechar a porta da casa de banho e raspar-se, cirandar e fugir pela casa fora.

Foi o que fez um dia deste, mal a descalçaram, mas com tanto azar que bateu com a porta no seu dedo do pé.

Os pais pegaram-na de imediato ao colo, enchendo-a de beijos, enquanto ela se enroscava, chorando a plenos pulmões e desabafava, queixosa e revoltada:

-Foi horrível …foi horrível…

Tem toda a razão a minha neta, aos dois anos, feitos há pouco, em abominar o horrível…



Jorge C. Chora

8/3/2018


segunda-feira, 5 de março de 2018

UM PEQUENO SOBRESSALTO




Bati-te à porta

e não abriste,

tornei a tocar

e não recebi sinal.

Afastei-me em sobressalto

por nada saber de ti.

Comprei flores,

para que estas te esperassem

ao voltares.

Acabei, ao regressar,

por te ver,

no outro lado da rua,

acenando-me com as duas mãos.

Agradeci em segredo,

o facto de estares bem,

e ainda me permitir

ter um olfacto,

capaz de sentir e apreciar,

o aroma que exalavas,

a perfume e a sais de banho.



.Jorge C. Chora

    5/3/2018

sábado, 3 de março de 2018

MALDITA GRIPE



Tusso e estremeço. À partida, nada de mal. Nada de mal “utanas”: isso é conversa mole que os brasileiros bem tipificam, quando dizem que pimenta no olho do vizinho é refresco…

A cada tussidela seguem-se descargas eléctricas, que me encrencam as costas, as ancas e agravam as discopatias. Não me venham com o poema do Lobo Antunes, sobre os homens constipados, antes fosse caso disso.

Acabo de chegar da acupunctura e sinto-me bem melhor. Sento-me à mesa e aí vem ela, a maldita gripe e a respectiva tosse, estragar o que foi feito, desconjuntar-me o esqueleto.

Quero um remédio adequado e a resposta é lacónica: sabes que não podes tomar remédios!

Aguenta que é serviço. Quem te manda ser velho e padecer de tanta coisa! Mas o pior é não poder vadiar, comer um petico, apreciar um chá de parreira…

-Põe-te com ideias…

E aí vou eu, aos ziguezagues, sem vadiar, beber ou petiscar nada, agarrado à tosse e à dor,

para aquilo que mais detesto: estar na cama, sem escrever, ler nem fazer nada…

E assim se passou uma semana…. sem saber quantas ainda me faltam…



Jorge C. Chora

4/3/2018