sexta-feira, 24 de março de 2017

O MÚSICO DA BUZINA



Os olhos quase lhe saltam das órbitas: gravitam a uma velocidade ímpar, seguindo tudo o que tem rodas e mexe. Mal um carro surge na rua, entra em frenesim.

Postado no passeio, até rezaria se estivesse com as contas em dia com o Sereno. Não vale a pena fazê-lo. Receia correr o risco de ver o pedido atendido e cobrado por Satanás e desse tem ele medo . Tem esperança de que o incauto acabado de chegar, estacione em frente ao portão da sua garagem. O condutor abranda, mas não encontra um lugar.

Percorre o local duas vezes e à terceira, estaciona frente ao portão colectivo da garagem, sob o nariz do agitado observador.  Apressado, corre em direcção ao seu carro, estacionado no interior. Liga-o e sobe a rampa a toda a pressa. Trava uns centímetros frente ao que lhe impede a saída e buzina, buzina e torna a buzinar. Minutos depois surge alvoroçado o dono da viatura que lhe bloqueia a entrada, retira-o e pede-lhe mil desculpas.

Dá uma pequena volta à praça, para que não digam que não precisava de sair e regressa à garagem. Deixa-se ultrapassar por alguém que chega. Pede a todos os santinhos que o “transgressor” lhe impeça a entrada. Nada acontece porque surge uma vaga. Sopra desiludido. Parecendo que não, é menos uma oportunidade de buzinar.

Retorna ao seu posto no passeio. Segue com os olhos outro carro acabado de chegar. Saliva. Pode ser que tenha sorte e passe mais um bom bocado da manhã a tocar à buzina.

 Ultimamente anda até a pensar em aperfeiçoar os seus toques de buzina e a aprender a tocá-la por pauta.



Jorge C. Chora

terça-feira, 21 de março de 2017

OS POEMAS SÃO...



Os poemas são flores
com cheiros, sabores
e variedade de cores.
De um poema que se gosta,
se diz que é uma flor
e dela, quando é bela,
que é um verdadeiro poema!
Ora digam lá se não há
poemas-flor quando
alguém ambos ama,
e agita na mão direita um poema-flor
e na esquerda uma flor-poema!


Jorge C. Chora

sábado, 18 de março de 2017

DÃO-SE DORES


Tenho saudades do tempo
em que não tinha dores
e caminhava ligeiro,
tal e qual um andarilho.
Quem me dera ser
banqueiro e delas
me poder livrar,
como se fossem acções de
grande valia, a título
de antevisão futura,
de experimentarem
andar como os cágados,
numa sociedade de aves de rapina,
sempre pronta a elevá-lo
aos céus para vos
deixarem cair em zonas alcantiladas,
estilhaçando-vos a carapaça,
para vos comerem
de forma fácil e pouco
ou nada trabalhosa.
Quem me dera ser banqueiro
e livrar-me das dores,
como se fossem títulos
de grande valia…


Jorge C. Chora

quinta-feira, 16 de março de 2017

UMA GATA À JANELA



Há uma gata que passa
o dia à janela,
a cumprimentar quem passa:
-Bom dia bonitona…bom dia
bonitão…
Mas não há quem
lhe responda ou
lhe conceda um simples
sorriso, a troco de nada,
só embrulhado em simpatia.
A troco de nada,
já ninguém dá nada,
nem que seja
 um simples sorriso,
só embrulhado em simpatia,
excepto a gata,
que à janela,
cumprimenta quem passa:
-Bom dia bonitona…bom dia
bonitão…


Jorge C. Chora

quinta-feira, 9 de março de 2017

REQUIEM PARA A MULHER SEM CHETA



Morreu de vergonha
a mulher sem cheta
a quem nem a sede nem a fome
 tinham conseguido vencer.
Resistiu até ao fim,
escondeu a miséria,
silenciou o ruído
 do seu estômago vazio,
dos sonhos traídos,
dos vexames sofridos.
Morreu de vergonha
ao ser-lhe penhorado
o último refúgio,
por ser pobre e não ter cheta.
Aos aristocratas d’outrora,
assistia-lhes o privilégio
de se suicidarem por
vergonha de terem
cometido actos infamantes
ou de lesa-majestade.
À mulher de agora,
restou-lhe morrer
de vergonha, unicamente
por ser pobre e não ter cheta.


Jorge C. Chora

terça-feira, 7 de março de 2017

MULHERES


As mulheres
são a metade solar
da humanidade,
 rosas que medram
 cercadas de espinhos,
sem deixarem de exalar
 o seu perfume inebriante.
Fazem soar bem alto as suas vozes,
sempre que as querem calar,
retirar-lhes o direito de opinar,
negar-lhes o direito
de serem quem são,
a capacidade de dizer não.


Jorge C. Chora

sábado, 4 de março de 2017

A MORTE DO VELHO QUE AMAVA A POESIA


De luto não está a cidade
pela morte do velho
que amava a poesia
e bebia copos- de- três.
Os sinos não repicaram
a assinalar a sua morte
e poucos sentiram a falta
do Zé Ninguém
que amava a poesia
e bebia copos-de-três.
Amou quase toda a gente,
excepto os crápulas, os reles,
os vaidosos sem qualquer razão
para o serem,
os seres desprezíveis
e aproveitadores das
misérias humanas.
Está-se nas tintas
para quem ignora a sua morte
e paga-lhes na mesma moeda:
passa por eles deitado,
sem lhes ligar nenhuma,
o homem que amava a poesia
e bebia copos-de-três.
Morreu como viveu:
amando os que mereciam,
desprezando os que,
pouco ou nada valiam.

Jorge C. Chora