sábado, 30 de maio de 2020

AS ONDAS DO MAR


Murmuram-me as ondas do mar,
a medo, um pedido,
como se fosse um segredo,
enrolando-se devagar,
a esconderem-se envergonhadas,
com o que me iam dizer:
-Amigo do mar e das ondas,
sabes quão bom é nadar,
sem porcarias encontrar.
Nunca te vimos sujar,
ao mar deitar o que não queres,
exceto daquela vez, faz dez anos.
Foi uma garrafa de plástico
da coca-cola, que ainda aí está,
mesmo ao teu lado,
depois de ter dado a volta
ao mundo e aqui regressar.
Pedi desculpa, apanhei-a
 e fui deitá-la ao sítio certo.
Ao retornar ao mar,
a onda abraçou-me,
espumou de alegria,
banhou-me o corpo,
lavou-me a alma e disse-me:
- Muito obrigada.
E à beira-mar,
um bando de gaivotas,
à volta de uma irmã morta
por ter comido plástico,
também gritou:
- Muito obrigado.
Jorge C. Chora
30/5/2020

quarta-feira, 27 de maio de 2020

O PARAÍSO



Se cada um sonha com o seu,
eu encontrei o meu:
tem pernas, cabeça e corpo,
às vezes é mel e outras fel,
mas tem olhos onde habita a ternura,
lábios onde moram beijos,
apoia-me no que digo e penso,
sem ser uma sim-senhor.
Cada um sonha com o paraíso,
tu com o teu,
ele com o dele.
Eu já encontrei o meu:
tem pernas, cabeça e corpo
Às vezes é mel e outras fel.

Jorge C. Chora
13/5/2020


domingo, 24 de maio de 2020

SOMOS UM SÓ!



Se eu te tenho em mim
e tu a mim me tens,
eu sou tu
e tu és eu.
Falamos a uma só voz,
pois somos um só,
possuímo- nos um ao outro,
estamos ambos,
habitando o outro.
Sem negar o tu e o eu,
embora sejamos as
metades de um só,
eu sou tu
e tu és eu.


Jorge C. Chora

24/5/2020

sexta-feira, 22 de maio de 2020

OS AÇOITES



Raro era o dia em que não ia ver o jaguar ao stand. Mirava-o e remirava-o. Ficava extasiado. Adorava-lhe as linhas, as jantes, a cor…

Um dia conseguiu comprá-lo. Foi passear ao Estoril e a Cascais e até comeu um sorvete na Santini.
Agora, todos os sábados de manhã, bem cedo, Manuel sai de casa, transportando um cordão de seda, com alguns nós. Acerca-se, pé ante pé, da sua luxuosa e potente viatura. Olha em redor e assegura-se de que não há vivalma. Certo de que ninguém o observa, zurze o bólide com toda a gana durante alguns minutos.

Enquanto dura a cena, murmura: toma lambão…nem dinheiro me deixas para andar contigo… ainda mal te paguei e já vales tão pouco…eu digo-te.
Em seguida, lava-o e limpa-o com extremo cuidado, por dentro e por fora. Terminada a limpeza, recolhe-se amaldiçoando o dia em que comprou aquele monstro de milhares de euros.

Um destes dias, um jovem vizinho elogiou-lhe a ”bomba”. Manuel, logo ali propôs vender-lho, em prestações suaves, durante um prazo dilatado. O jovem agradeceu, mas declinou a oferta.

Uma semana após este episódio, Manuel, para além do sábado, passou a açoitar o “malvado” também ao domingo e pensa começar a fazê-lo, dia sim dia não, agora que está confinado.

    Jorge C. Chora
In “JORNAL DA AMADORA”
    DE 27/2/ 1992
Adaptado em 21/5/2020

quarta-feira, 20 de maio de 2020

O MONSTRO VOADOR OU O DIA EM QUE O MAR MUDOU DE COR/MEMÓRIAS DA BEIRA DE HÁ MAIS DE CINQUENTA ANOS




Seriamos uns seis a cavalgar as ondas, montados numa grande câmara de ar de trator. De repente, alguém lançou um grito estridente e aflito:
- Cuidado…saiam depressa…
Só não gelámos por mero acaso. Vindo do fundo do mar, surgiu um enorme monstro cornudo, com asas, que voava e nadava, para logo de seguida voltar a voar. E o estupor vinha ao nosso encontro, na nossa direcção, muito próximo.
Ainda hoje não acredito na velocidade com que saímos do mar.
O monstro só podia ser surdo pois se não fosse, teria sido morto a grito, tantos foram os berros com que o mimoseámos. E ele, moita, continuava a voar, a pousar e a nadar, com um desprezo   olímpico pelos nossos gritos de guerra acagaçados.
Um pai que tinha sido alertado, surgiu munido de artilharia adequada e deu início a uma medonha fuzilaria.  E o monstro continuava a nadar, a voar e a afastar-se aos poucos, para alto mar.
Tenho a impressão, embora não garanta, que no sítio onde tínhamos saído à pressa, o mar se tinha tornado acastanhado. Talvez tal facto, se tivesse ficado a dever, não a descargas intestinais, mas às algas que o monstro tinha para lá deslocado. Decididamente eram algas. Nunca discutimos o acontecimento, portanto, ele pura e simplesmente nunca existiu.
Esgotados pelas emoções, nunca nenhum de nós confessou ter tido pesadelos com o monstro voador. Todos dormimos o sono de heróis, esquecidos do acastanhado do mar.
O monstro era somente uma enorme jamanta, que nenhum de nós tinha jamais visto e veio a aparecer morta, na praia do Régulo Luís.
Isto passou-se há mais de cinquenta anos, na “minha” praia do Macúti, a três ou quatro paredões do farol, na cidade da Beira, em Moçambique, tirando, claro, os exageros da pintura e as descargas intestinais que, para todos os efeitos, nunca existiram.

Jorge C. Chora
20/5/2020

segunda-feira, 18 de maio de 2020

O MELHOR PESCADOR


“Ora Porra” era o dono da taberna onde os pescadores discutiam, quase todos os dias o mesmo assunto, logo após o futebol: quem era o melhor pescador local.
À terceira garrafa de vinho, azedavam as discussões, e antecipando o que ia acontecer, o taberneiro gritava:

-Ora porra…ora porra…acalmem-se…

Não lhe servia de nada. Dos empurrões ao chega-te para lá mais sério, era um instante. Olhos pisados e cocurutos cheios de galos, eram o pão nosso de cada dia. Seguia-se a ida à esquadra.
-O chefe de posto, lançava as mãos à cabeça e descompunha-os:

-Homessa! Pescadores uma fava! Zaragateiros, pugilistas de treta …isso é o que vocês são. Toca a andar! -  e abria-lhes a cela onde todos ficavam a curtir as dores e as bebedeiras.

O “Ora Porra” decidiu acabar de vez com aquela moscambilha. Foi ter com o velho Mestre Zé e pediu-lhe:

- Mestre, vossemecê  é entendido na poda e preciso que anuncie, de uma vez por todas, quem é o melhor marinheiro aqui da póvoa…

O velho marinheiro franziu o sobrolho e disse:

-Nada me custa fazer o que me pede, mas fique a saber que isso nada resolve…

“Ora Porra” deu uma gargalhada e respondeu:

-Não me … bonita maneira de me mandar àquela parte!

Mestre Zé negou estar a fugir ao pedido e prometeu, mesmo nesse dia, dar a sua abalizada opinião sobre o assunto.
À hora marcada, já iniciadas as discussões, apareceu Mestre Zé que falou assim:

-Conheço-vos de ginjeira. Alguns de vocês andaram ao meu colo…

Fez-se silêncio. Pousaram os copos sem ruído, e prepararam-se para escutar o decano dos pescadores.

-O António é o melhor a escolher o isco; o João, não há igual a remendar redes; o Manuel é o melhor a trabalhar com os cabos…

-Sim…sim… mas quem é o melhor pescador?

Mestre Zé pigarreou, esperou um bocado e falou:

-O melhor, o melhor dos melhores, é o jovem Jorge … entrou ontem ao serviço e já pescou uma linda sereia chamada Sara, que é sua mulher…

A risota foi geral. Minutos depois as discussões voltaram. Ora Porra, pressentindo o que lá  vinha gritou:

-Ora porra…ora porra…

Se por acaso for pescador e tiver a pretensão de ser o melhor,já sabe,compareça na tasca do "Ora Porra".

     Jorge C. Chora      

       18/5/2020

sexta-feira, 15 de maio de 2020

OS RIVAIS



Tomás e Frederico encontraram-se na rua, à porta do café. Após os cumprimentos da praxe, Tomás ficou a saber que o amigo ia ao barbeiro. Era para onde ele ia também, mas nada disse. Despediu-se cordialmente, referindo a sua pressa em tratar de um assunto inadiável, motivo pelo qual, não lhe faria companhia.
Apressou Tomás o passo enquanto Frederico, na sua habitual passada, continuou a pedir a cada perna, licença para que a outra avançasse.
Quase quinze minutos depois, Frederico chegou à barbearia. Surpreendeu-se ao ver o amigo Tomás à porta.
-O que fazes aqui?
-Olha mudei de ideias e resolvi também vir aparar o cabelo. O barbeiro é que ainda não abriu e já passam quinze minutos da hora …
-Ó Tomás, se me tivesses dito que vinhas para o mesmo sítio que eu…
- Ficaríamos ambos à porta…
-Mas teríamos a companhia um do outro… -respondeu-lhe, de modo amável, Frederico.
-Nisso tens razão…- disse Tomás, pensando com os seus botões, que desse modo não seria ele atendido primeiro.
-Pois… mas sabes…eu sabia que o barbeiro ia abrir hoje, quinze minutos depois, porque falei com ele ao telefone…
Palavras não eram ditas quando o barbeiro chegou e os cumprimentou:
-Bom dia meus senhores. Ora vamos ao trabalho. O sr. Frederico já tinha marcado…faça o favor de se sentar.
Tomás rilhou os dentes e lançou um palavrão, daqueles que só se ouvem no trânsito, mas não teve de disfarçar, porque quer Frederico, quer o barbeiro, fingiram não ter ouvido.
Como Frederico lhe ficou a conhecer a manha, Tomás decidiu procurar outro vizinho a quem pudesse ultrapassar, quando fosse ao corta-poupas.
Quem procura acha e ele escolheu o António, quando o ouviu dizer que no dia seguinte, se iria encontrar com o barbeiro, muito antes da hora de abrir.
Às seis da manhã, Tomás já estava à porta da barbearia, marcando a sua vez. Esperou até às dez, altura em que alguém lhe disse:
-Ele foi à aldeia com o António, são os dois da mesma terra…
Se por acaso conhece o Tomás ou alguém como ele, nunca lhe diga onde vai…

  Jorge C. Chora
     15/5/2020

terça-feira, 12 de maio de 2020

MARIA


 Anda a Maria
com a cabeça a rodopiar.
Procura gente a quem ajudar,
sem se aperceber
que para ajudar, se esqueceu de quem é,
uma menina bonita
de cabeça a rodopiar.
Recusa ser auxiliada, para apoiar
quem dela mais precisar.
Caminha Maria,
só e descalça,
com os caracóis a bailar,
na companhia das suas ideias,
tão belas quanto ela,
 e a certeza de que nunca deixará de ser,
uma menina bonita,
com ideias tão belas quanto ela,
ainda que dela própria se esqueça.

        Jorge C. Chora
           12/5/2020

domingo, 10 de maio de 2020

A DOR


Pior do que a dor,
é o medo de a ter.
Antes de a sofrer,
já está a doer!
De véspera morre o perú
ou também morres tu?
Morremos todos,
não há quem não a sofra
antes de a ter,
e isso, é bem pior
do que a dor,
mesmo antes de a sofrer.
Dura mais e é mais intensa,
pois não sabemos o tamanho
qu’ela vai ter!
Morremos, afinal, todos de véspera!

    Jorge C. Chora
    10/5/2020

sábado, 9 de maio de 2020

OS SEMPRE EM PÉ



Estar de pé
é destino sonhado,
raramente vivido
mas muito desejado.
Sonhar estar de pé, é sonho fácil,
dourado, ambicionado,
de herói ovacionado.
Acorda amigo,
estar sempre de pé,
é o destino, pois
o direito de te sentar perderás,
a ficar em pé condenado serás,
pois sentados, só chefões mundiais.
Um direito as pessoas terão,
já que eles não desaparecerão:
o direito a trabalhar sem direitos,
para a trabalhar teres direito.
E à ordem de aprenderes
a falar mandarim obedeceres
e a trabalhar até morreres!
Oxalá consigamos afastar
esse cruel destino,
o de sentados não podermos permanecer
e de retornarmos ao direito a de pé,
por nossa vontade, voltarmos a ter.

       Jorge C. Chora
         9/5/2020

terça-feira, 5 de maio de 2020

DIA MUNDIAL DA LÍNGUA PORTUGUESA


Com a língua se cria,
ama, imagina, recria,
inventa, e até se saboreia.
Acredite,
com a língua portuguesa,
o sentir,
o ritmo e o palpitar do mundo,
têm muito mais cor,
variedade e sabor!

Jorge C. Chora 

  5/5/2020

O QUE NOS FAZ FALTA?



Se d’algo sentimos falta
é do calor, quando falta.
Sem ele somos quase nada
ou melhor, pouco ou nada somos.
Sem o calor da amizade e da família,
deixamos de ser quem somos!
Se d'algo sentimos falta
é do calor quando falta,
do calor da pessoa amada,
que a alma nos aquece
e a vontade fortalece
e sem o seu calor
somos nada ou quase nada!
Afinal o que somos, senão
seres em busca de calor humano?
E sem ele,
 deixamos de ser quem somos,
somos nada ou quase nada.
Quanta falta nos fazes abençoado calor!


       JORGE C. CHORA 
            5/5/2020

sábado, 2 de maio de 2020

PALAVRAS D'AMOR



 Palavras d'amor,
só a saca-rolhas as digo,
engasgo-me ao dizê-las,
tropeço quando as digo.
Sinto-as e gostava
de te fazê-las sentir,
sem por palavras as
transmitir.
Palavras d’amor
só a saca-rolhas as digo,
prefiro que sintas
nos meus beijos,
 a vontade
de te fazer minha,
pois palavras d’amor
só a saca-rolhas as digo,
engasgo-me ao dizê-las,
tropeço quando as digo.

JORGE C. CHORA 

 2/5/2020