terça-feira, 25 de setembro de 2018

O CHEIRO A PAPEL RASGADO


                                               
Numa localidade da Beira Baixa, há mais de sessenta anos, num barracão de quintal, apresentavam-se peças de teatro amador. Os artistas eram habitantes locais, com jeito e amor à ”coisa”.

Num desses espectáculos, existia uma cena em que se deveriam queimar umas folhas de papel e o personagem diria, de modo enfático:

-Cheira-me aqui a papel queimado!

Por esquecimento ou sabe-se lá porque outro motivo, ninguém deitou fogo ao que devia e o artista em cena, não esteve com meias medidas e berrou:

-Cheira-me aqui a papel rasgado!

Encolhido a um canto, o encenador, lívido, invocava Thalia, a musa da comédia, e pedia mentalmente respeito pelos papéis que cada um deveria desempenhar e murmurava, tristonho:

-Cheira mesmo a papel rasgado…

A plateia, uns de pé e outros sentados em bancos levados de casa, de narinas bem abertas, cheirando o ar do barracão, em busca do cheiro a papel rasgado, bateu palmas à ousadia e criatividade do actor.

Pois é, aquilo eram tempos onde imperava a imaginação, em que até se botava cheiro ao papel rasgado, se desculpavam e apreciavam os devotos de Thalia.

Jorge C. Chora
25/9/2018


domingo, 23 de setembro de 2018

A VIZINHA DO SEXTO ANDAR




No fundo do estendal da casa de seu pai, caiam as peças de vestuário de todos os vizinhos, incluindo as da vizinha do 6º.

Todos os dias ou quase todos, vinha alguém buscar as peças de roupa caídas.: calças, camisas, roupa interior…

Uma terça-feira, o jovem ouviu no átrio de saída do seu prédio, os condóminos a recriminarem a conduta da vizinha do 6º andar:

-É tão porcalhona que se esqueceu das cuecas sujas no elevador…

Bento, assim se chamava o jovem adolescente, revoltou-se ao ouvir acusar deste modo a sua simpática, bela e extravagante amiga do 6º.

-As cuecas não são dela… e disse só para si - ela nem sequer as usa…

-Como assim? - surpreenderam-se os vizinhos-Como é que sabes?

 E Bento explicou que ela deixava cair quase tudo no chão do seu estendal e nunca deixara cair
uma peça de vestuário que se parecesse com aquela de que falavam.

Ele bem sabia de quem elas eram, de uma vizinha insuspeita, mas nada disse. A vizinha do 6º, sempre que atravessava o átrio de entrada do prédio, tinha de se baixar porque alguém perdia, de modo sistemático, uma moedinha.

Bento, todas as segundas-feiras, trocava 25 cêntimos que lhe sobravam do lanche, por moedas de cinco cêntimos, com excepção dos sábados e domingos em que saia acompanhado dos pais.

Às segundas, sem falta, ao cair da noite, uma pequena caixa de papel aguardava-o à sua porta: continha todos os cêntimos que deixava no átrio da entrada, para ver a sua amiga do 6º apanhá-los.

Jorge C. Chora
23/9/2018


terça-feira, 11 de setembro de 2018

OS TEUS BEIJOS



Os teus beijos
são joias,
recebo-os
e quero mais.
Entendo agora
que me encanta
ser joalheiro,
mas de beijos
de quem gosto,
que são os teus
e, esses sim,
que verdadeiras joias são.

Jorge C. Chora
11/9/2018

domingo, 9 de setembro de 2018

O AMANTE SECRETO




Adora carícias
e pede ao vento
que lhas faça.
Este sopra devagar, devagarinho,
e ela sente num doce arrepio,
a penugem a eriçar-se
e o vento a soprar-lhe o pescoço,
devagar, devagarinho,
 murmurar-lhe:
-Está bem assim?
 Ela diz-lhe que sim,
 despe-se e entrega-se
ao seu suave e secreto amante,
que a envolve num abraço
quente e voluptuoso,
que a faz elevar as mãos ao céu
e exclamar, sem rebuço nem
falso pudor:
-Meu Deus. como isto é bom!

Jorge C. Chora
    9/9/2018

sexta-feira, 7 de setembro de 2018

O SEIXO BRANCO



Na areia da praia
apanha a lua,
aperta-a contra o peito
e diz:
-És minha!
É o dono da lua,
sempre que
vai ao areal,
e repete com todo
o seu amor,
à pedra- lua que colheu:
-És minha!
E aconchega – a,
junto ao peito,
e só a larga
ao pé das outras luas,
que guarda na sua mais
bela caixa de latão
 e que oferece aos amigos:
-Queres um pedaço de Lua?


Jorge C. Chora
7/9/2018


quarta-feira, 5 de setembro de 2018

SAUDADES DE TI




Tenho tantas saudades tuas,
como acho que tens de mim,
mas não faz mal
que as não tenhas,
tão fortes como as minhas,
porque eu de ti tenho tantas,
que olvidam
as que eventualmente
de mim não tenhas.

Jorge C. Chora
5/9/2018

terça-feira, 4 de setembro de 2018

ARROZ DE QUÊ ?


                                                          

Entrou no autocarro, viu uma senhora conhecida e sentou-se ao seu lado. Conversador nato, falaram a propósito de tudo e de nada.

A viagem era longa e tiveram tempo de sobra, para trocarem impressões. Quando o diálogo já esmorecia, ele lembrou-se de que ela fazia um petisco para o irmão, que ele também conhecia. Numa conversa gastronómica que tinham tido, gabara um arroz muito especial que a mana lhe fazia, sempre que tinha a oportunidade de estar com ela.

- Falei com o seu irmão e ele tem uma verdadeira adoração por um petisco seu …

-Qual deles?

- Adora o seu arroz de corno…

-Arroz de quê?

-De corno… - repetiu, de modo inocente, o conversador nato.

- De forno e não de corno, senhor!

-Mil perdões…também achei estranho… mas foi isso que percebi…

E a senhora olhou-o de soslaio, tentando descortinar se o conversador sabia da fama de confessor do mano ou de algum desaguisado em que ele se envolvera, com o marido da sua mais recente conquista.

-Já agora, se não fosse muito incómodo… ensinava-me a fazer o arroz de corno…perdão de forno…

-Ora anote… o arroz de corno…mau, de forno, leva…- explicou a senhora, que ocupou o resto da viagem com a receita e os segredos do famoso arroz de corno…perdão, de forno.

Jorge C. Chora
  4/9/2018

sábado, 1 de setembro de 2018

A LÁBIA DE TI PATRÍCIO


                                              
Na aldeia de Santa Vitória, em Beja, ti Patrício ferrou um calote à ti Mariana, dona de uma taberna ali existente.

Um dia, pelo carnaval, o caloteiro armou-se em veterinário e foi perguntar à taberneira se por acaso não teria um cão que necessitasse de tratamento.

Mariana não esteve com meias medidas:

-Por acaso Caetano Patrício, tenho cá um “cão” teu, tão velho que até barbas brancas tem…

-Ó ti Mariana, esse pode matá-lo que não tem cura… -respondeu-lhe ti Patrício.

E o sr. António Camacho, do alto dos seus bem dispostos 75 anos, que foi quem me contou esta história, passada na sua terra, quando tinha doze ou treze anos, remata:

-E ti Mariana não teve outro remédio, senão arcar com o velho “cão” do sabido Caetano Patrício.
Embalado com as vivências de Caetano Patrício, conta-me outra história., passada com a mesma personagem e o seu amigo Domingos, também residentes na aldeia.

Um dia, roídos de fome, com o estômago a roncar de apetite, narinas dilatadas em busca de aromas confortáveis, sentiu o cheiro de pão a cozer.

Ao cheiro do que era bom, foi ter com o amigo e disse-lhe: 

- Companheiro Domingos, a partir de agora sou mudo. Vou indicar-te, por gestos, a origem do belo cheiro a pão a cozer. Vou dizer-te o que quero: um bocado de pão do que está a cozer.

Rendida à fome de Patrício e de Domingos, a dona do forno, condoída com a mudez de Patrício perguntou:

-Desde quando ele é mudo?

Cedendo à inocência da dona, diz Patrício, num assomo de honestidade e compreensão:
-Desde o poço até aqui minha senhora!

Comeram o pão que lhes apeteceu, com a bênção da compreensiva senhora, vencida com a lábia e simpatia de Caetano Patrício e do companheiro Domingos.


Jorge C. Chora
    1/9/2018