segunda-feira, 23 de agosto de 2010

A manha da velha senhora

Uma velha e muito bem-posta senhora, consumiu um lauto pequeno-almoço: croissants com doce de amoras silvestres, sumo de laranja natural, iogurte de frutas e um café. Ao seu lado estava sentada uma jovem que acabara de tomar uma bica e abrira uma revista.

A idosa olhou languidamente em seu redor e, como quem não quer a coisa, trocou o seu cartão de despesa pelo cartão da parceira ao lado.

Levantou-se, tão veloz quanto um relâmpago, dirigiu-se ao caixa a quem apresentou, com o melhor sorriso, o cartão:

-Por favor, quero pagar a minha conta…

-Com certeza “Madame” – atendeu-a o sempre prestável octogenário, sócio da pastelaria e mestre em salamaleques.

Quando ia passar a banda magnética do cartão pela máquina, reparou nos acenos da jovem da mesa. Ela mostrava-lhe o cartão de despesa, apontava para a cliente e, em seguida, fazia um gesto de troca.

Tendo percebido a situação o cavalheiro remediou a situação:

-Peço desculpa… a jovem da mesa 9 agradece-lhe a oferta do café, mas alerta-a para o facto de se ter esquecido do cartão da sua despesa na mesa.

A senhora armou o melhor sorriso e respondeu-lhe:

-Veja lá a minha cabeça! Faça o favor de me fazer as contas correctas e de acrescentar o café da jovem… - e saiu a murmurar, de modo a não ser ouvida, contra” o estafermo da miúda”.

Jorge C. Chora

quarta-feira, 18 de agosto de 2010

Maria Florentina de cara à banda

Maria Florentina era uma excelente pessoa mas fazia tudo para dar nas vistas. Não precisava, porque se por outra coisa não fosse, a bondade e a ternura que irradiava torná-la-iam notada.

Chegava a sair de sapatos trocados, um de cada cor, tal a ânsia de ser falada. Sentia uma necessidade enorme de ser o centro das atenções: a figura que fazia, boa ou má pouco importava. Imitava os tiques das famosas, quer fossem nacionais ou estrangeiras.

Perante uma assistência boquiaberta, Florentina surgiu à pendura numa mota, com todas as luzes a piscar e uma buzina estridente, a alta velocidade. Florentina levava a boca aberta, escancarada, os olhos esgazeados como se quisesse desafiar o mundo.

-Quem é que ela quer imitar? – interrogaram-se os conterrâneos, sentados na primeira mesa da esplanada.

-Apostamos que é a Lady Gaga… - comentaram os da segunda fila.

-Qual quê… é uma alemã que canta aquela …. – interromperam os da terceira mesa.
No meio da discussão, chega espavorido o António anunciando:

-Sabem lá o que aconteceu… a Florentina teve uma paralisia facial e ficou de boca à banda. Foi de mota para o hospital…

-Coitada da Maria Florentina… - condoeram-se os presentes.

Diz quem a acompanhou e a ouviu que logo que se pôs boa, perguntou:

-Toda a gente me viu? Têm a certeza? Caso não tenham, eu repito a passagem pela esplanada.

Jorge C. Chora

segunda-feira, 9 de agosto de 2010

O Pavão que salvou um galo sem querer

Nas festas dedicadas à Santa era costume leiloarem os mais diversos produtos, entre os quais aves de capoeira. Chegada a vez do galo, este arrancou um poderosíssimo córócócó que despertou a feira e os licitadores. Foi disputado por inúmeros interessados e acabou por vir parar às mãos de um casal que o trouxe para a capital.

O destino final do pomposo galo era retornar à província, à aldeia a que pertenciam os novos proprietários para, quiçá, ser assado pelo Natal.

Quando passavam em frente à loja do bairro, resolveu a jovem ave enclausurada começar a cacarejar a plenos pulmões:

-Cócórócó…cócórócó…

O proprietário da loja, conhecido pala alcunha de “Pavão”, tal o calibre de vaidade que apresentava, assomou à porta e disse:

-Se querem gozar ao menos tragam um pavão…agora o tretas de um galo, por favor…

O galo ouviu e não gostou. O” tretas de um galo?”. Toda a noite cacarejou, ofendido com o que ouvira.

Logo pela manhã, um fiscal bateu-lhes à porta:

-É aqui que mora um galo que cacareja noite e dia? Tivemos uma denúncia…

De nada valeu dizerem-lhe que daí a uns dias iriam à terra e levariam o galo.

-À hora do almoço passarei por aqui para me assegurar de que ele teve o fim merecido. -sentenciou num tom que não admitia réplica.

Às 13h em ponto o fiscal bateu à porta. Foi convidado a entrar e a provar o pitéu.
À primeira garfada, tão duro era o galo que partiu um dente.

-Ai…ai…meus ricos dentes – exclamou dorido.

No seu esconderijo, o jovem galo só não desatou a cacarejar, porque os donos lhe tinham amarrado o bico.

Ainda hoje o estupor do galo está vivo. Cacareja de tal modo, que rivaliza com a sirene dos bombeiros.

Jorge C. Chora

terça-feira, 3 de agosto de 2010

Quem sai aos seus...

Eduardo e Fábio estavam irritados com o avô. Recusavam ser designados como conservadores. Embora fossem muito jovens, sabiam ou pelo menos pressentiam que aquela designação não pretendia acrescentar-lhes nada de bom.

-Ó avó, conservadores porquê? Não são só os velhos, perdão, os idosos… – emendaram - que são conservadores?

-Nada disso meninos! Vocês com essa tenra idade, ainda nem à adolescência chegaram, e já o são profundamente – respondeu-lhes o avô.

-Mas ó avô, o que queres dizer com isso…diz-nos porque somos conservadores…

-Só com uma condição…

Entreolharam-se, torceram o nariz e comentaram, receosos:

-Mau, as tuas condições trazem água no bico…quase sempre….

-É pegarem ou largarem… - pressionou o avô.

-Aceitamos.

Um aperto de mão para selar o acordo. – propôs o avô.

No canto da sala, a avó apreciava a cena e esboçou um leve sorriso.

-Então é possível saber por que motivo somos conservadores?

-Claro…claro – assentiu - e foi andando para o quarto dos netos.

Quando chegou ao destino, apontou para as camisas que estavam no chão e perguntou-lhes:

-Quem é que as conserva ali no chão? E as meias? E as cuecas? A partir deste momento, já sabem, toca a arrumar tudo…

A avó, de olhos esbugalhados, olhava para o marido e para os netos e, mal fez menção de falar, o avô colocou o dedo indicador colado aos seus próprios lábios e sussurrou-lhe ao ouvido:

-Eu não me ofendo se me chamares conservador!

-Pois é, quem sai aos seus…- e na mão, abanou a camisa do marido que acabara de apanhar do chão.

Jorge C. Chora