Domingos Pedro ainda não saíra da sua ilha e as saudades já
lhe pesavam. O cheiro a mar, os dias na praia, o sal na pele, a preguiça dos
dias sem quaisquer preocupações, mas o que mais lhe custava deixar era a
vadiagem nocturna, embalada por melodias que escorriam amores proibidos
Viver sem trabalhar era um privilégio, agravado pelo facto
dos pais serem pobres. A carta chegada de Lisboa, enviada pelo primo, dando-lhe
a notícia de haver um posto de trabalho na obra onde ele trabalhava,
decidira-o: ia para Portugal.
Sem dinheiro para voar, arranjou um lugar num cargueiro e da
viagem nunca mais se quis recordar. Jurou nunca mais viajar de barco. Vomitou
toda a viagem, a toda a hora, tivesse ou não comido. Chegou a pensar que o
coração, os pulmões e outros órgãos lhe tivessem saído pela boca.
Quando chegou a Lisboa ficou a saber que Salazar morrera.
Era verão e estava-se em 1970.Desembarcou com a mala, herdada do pai, e tinha à
sua espera o primo. Deram uma pequena volta por Lisboa, num táxi de um compadre
e rumaram a casa, num bairro de barracas nos arredores da capital.
Depois de alojado foram à taberna de um conterrâneo que lhes
ofereceu uma aguardente de cana. O único milagre que a cana era incapaz de
fazer, era encher os bolsos dos bebedores pois, quanto ao resto, estavam
provados e comprovados os efeitos medicinais: curavam dores de todo o feitio,
até as de amor.
Domingos saiu da
tasca com uma enorme dor de cabeça. Logo por azar, era a excepção que
confirmava a regra. Essa noite dormiu mal e sonhou que estava de novo
embarcado. Quando finalmente se encontrava quase a dormir o primo anunciou-lhe
que eram horas de se levantarem.
A vida na obra era uma estafa. O intervalo que tinham, era o
do almoço, em que engoliam comida fria e um vinho que era uma autêntica
zurrapa. Trabalhavam ao ritmo das asneiras e insultos do capataz, que achava o
vinho americano que bebiam na obra, um verdadeiro néctar e nunca deixava a sua
caneca vazia.
Do trabalho para casa e vice-versa, se compôs a vida de
Domingos Pedro. A do primo só tinha mais uma variante em relação à sua, que era
a ida diária à taberna do conterrâneo.
O silêncio reinante na barraca até doía. Pouco ou nada
conversavam e quando o faziam era sobre a ilha e sobre as saudades da vida que
nela levavam e da família que lá tinham deixado.
Um dia passou pelo seu local de trabalho um vendedor
ambulante. Entre as várias mercadorias, trazia uns poucos de rádios. Os olhos
de Domingos prenderam-se
neles e pensou que um lhe seria muito útil. Imaginou-se na
habitação ouvindo música e notícias. Seria o fim do maldito silêncio. Quando
voltasse à ilha oferecê-lo-ia aos pais.
O vendedor apercebeu-se do interesse do Domingos por um
rádio. Elogiou os rádios enumerando-lhes as características: a pilhas e a
electricidade; som de qualidade; funcionamento garantido em todas as posições e
demonstrava virando-o de cabeça para baixo, para a esquerda e para a direita, para
a frente e para trás.
Passaram ao preço e Domingos regateou-o até a exaustão.
Conseguiu baixar o preço para metade. O vendedor entre “mãezinhas” e juras de
que perdia dinheiro, entregou-lhe um rádio numa bonita embalagem.
O dia passou devagar, muito devagar e a hora de saída nunca
mais chegava. Quando o capataz deu por fim o dia de trabalho, mal deu por si, estava
à porta de casa. Jantou, com o embrulho bem à sua frente, gozando o momento de
o abrir.
Cerca de uma hora depois, decidiu presentear-se. Retirou-o
da caixa com todos os cuidados. Ali estava ele, em tons de azul. Afagou-o,
cheirou-o e colocou-o, com carinho, em cima da mesa. Ligou-o e ele não piou. Um
suor frio escorreu-lhe da testa e das costas: estava avariado!?
Conseguiu acalmar-se e pensou que ele não tocava por falta
de pilhas. Também não era problema pois ele funcionava a electricidade.
Ligou-o à tomada, mas nenhum som se ouviu. Nervoso, decidiu abri-lo. No seu
interior não havia nada. O que existia era um grande pedaço de plasticina. O
coração dava-lhe pulos e parecia saltar-lhe do peito. Uma raiva surda
apoderou-se de si. O filho da p… tinha-o enganado. Correu à taberna à procura
do primo. Este, falou a dois ou três clientes e sossegou-o:
-Amanhã, bem cedo, resolvemos o problema…
- Como assim? Onde é que ele mora?
-Já me disseram…
Pela manhã, Domingos
foi acordado bem cedo pelo primo que lhe disse:
-Traz um pacote de manteiga do frigorífico. De manteiga não,
traz um de margarina que é mais barato…
Domingos Pedro cumpriu a ordem sem fazer perguntas mas não
se coibiu de pensar que o primo ainda estava com os vapores do grogue. A cana
ainda havia de o matar.
Chegados a casa do” Mãezinha Juro por Deus” o seu primo
falou assim:
-Vai buscar dois rádios que toquem.
-Dois!?
-Descansa, só levamos um…o outro fica contigo.
Mal os trouxe, o primo sintonizou-os numa estação que estava
a tocar uma música dos Beatles. Deu o pacote ao “Mãezinha” e advertiu-o:
-Coloca-o num local bem visível, com o rádio ao lado. Caso
repitas a gracinha, ficas a saber que precisarás do pacote, uma vez que o vais
ter de o guardar em certo sítio….
Que se saiba, nunca mais vendeu rádios falsos.
Jorge C. Chora