quinta-feira, 31 de março de 2016

AS "BRANCAS" OU AS COISAS QUE EU NÃO SABIA


As falhas de memória são no mínimo irritantes e podem tornar-se assaz embaraçosas. Há dias fui com a minha mulher e o meu neto à Ericeira. No caminho quando chegámos ao alto de Cheleiros, resolvi perguntar ao pequenino se sabia o nome daquele povoado tão bonito.

-Não, não sei… -respondeu-me, perguntando-me logo de seguida qual era o nome.

Eis que me dá uma “branca” e lhe digo:

-Não me lembro Francisco…a avó diz-te…

-Então se tu não sabes porque é que me perguntas? – Questionou-me um tanto ou quanto agastado e surpreendido.

-Olha, esqueci-me, a avó já te diz…

-Cheleiros… -acudiu-me a avó.

-Pois, Cheleiros … -repetiu, olhando-me de soslaio, tentando decifrar a razão de lhe ter perguntado coisas que eu não sabia.

Jorge C. Chora


segunda-feira, 21 de março de 2016

FRANCISCO E A FADA DOS DENTES


Ao Francisco
no primeiro dia
a seguir ao inverno,
caiu -lhe um dente.
Veio a fada e disse-lhe:
Meu menino,
hoje começa a primavera,
é tempo de florescerem
as flores e as folhas
e também de teres
novos dentes.
Cuida bem deles
todos os dias
e eles nascerão
fortes e belos
e eu não faltarei
ao nascimento
de cada um
dos trinta e dois,
que são tantos
quantos virás a ter.
Bom dia dentinho!
Para ti também
boa fada,
respondeu Francisco,
com um sorriso
onde ainda falta
o primeiro dente
que lhe caiu,
neste início de primavera.

Avô Jorge

(Jorge C. Chora)


sexta-feira, 18 de março de 2016

A HISTÓRIA DA MENINA PAPA-LANCHES

    
Roberta disse à mãe que ao lanche só lhe apetecia uma banana
.
-Só? Tens a certeza que não queres a sandes?

-Tenho, mãe. Hoje almoçámos tarde.

No intervalo das aulas, Roberta sentou-se na mesa de pedra que existia no pátio da escola, desembrulhou a fruta que levava e deu-lhe uma dentada. Ao seu lado, uma menina, um pouco maior do que ela, fitava-a. Reparou melhor na sua observadora e notou que ela também olhava para a banana. Sabia que a menina se chamava Amélia.

-Queres um bocado Amélia?

-Claro! Estava a ver que não oferecias!

Roberta dividiu a banana e deu-lhe a metade que ainda não trincara.
Amélia comeu-a num ápice e ficou a olhar para a metade que Roberta ainda não comera e perguntou-lhe:

-Não trouxeste outra?

-Não, por acaso não…mas  não tenho fome nenhuma. Queres a minha parte?

Amélia nem sequer se deu ao trabalho de responder. Deitou a mão à banana e devorou-a.
Roberta nada lhe disse. O vestido um tanto ou quanto desmazelado de Amélia faziam-na, inconscientemente, não levar a mal aquela brusquidão. Gostou menos do que Amélia lhe disse:

-Amanhã traz uma banana grande e uma pequena. A grande é para mim e a pequena para ti. Claro que isso é se eu não tiver fome …se tiver, como as duas.

Roberta sorriu mas nada comentou. À saída, arregalou os olhos ao ver quem esperava Amélia: uma senhora muito bem vestida, com um ar triste, com a porta de um Mercedes aberta, pela qual Amélia entrou alegremente, chamando mamã à senhora.

O velho carro do pai de Roberta, estava estacionado logo a seguir ao luxuoso automóvel de Amélia. Roberta, ao passar pela mãe de Amélia perguntou-lhe:

-A senhora quer que eu traga bananas grandes, médias ou pequenas para dar à Amélia ao lanche ou ela vai passar a trazê-las?

No dia seguinte, ao dirigir-se à mesa de pedra, Roberta encontrou Amélia sentada, com um guardanapo estendido com duas sandes e duas bananas.

-Quero pedir-te desculpa Roberta e convidar-te para comeres comigo. A minha mãe lembrou-se de mim… é que hoje chega o meu pai que trabalha no estrangeiro.

-Obrigado Amélia. Nunca tenho fome e só como porque prometi à minha mãe lanchar sempre. Podes convidar uma das nossas colegas.

-O quê? Se não queres como eu tudo!

Dito e feito. Nem uma migalha sobrou.

`A saída, Roberta viu Amélia dar um grito de alegria: tinha à sua espera o pai, recém-chegado, que a levantou ao colo do lado esquerdo, porque o lado direito já estava ocupado com a mãe.

Jorge C. Chora





sexta-feira, 4 de março de 2016

BESUNTA Q`DÓI OU OS MITOS URBANOS

                                                                                                                  
Domingos Pedro ainda não saíra da sua ilha e as saudades já lhe pesavam. O cheiro a mar, os dias na praia, o sal na pele, a preguiça dos dias sem quaisquer preocupações, mas o que mais lhe custava deixar era a vadiagem nocturna, embalada por melodias que escorriam amores proibidos

Viver sem trabalhar era um privilégio, agravado pelo facto dos pais serem pobres. A carta chegada de Lisboa, enviada pelo primo, dando-lhe a notícia de haver um posto de trabalho na obra onde ele trabalhava, decidira-o: ia para Portugal.

Sem dinheiro para voar, arranjou um lugar num cargueiro e da viagem nunca mais se quis recordar. Jurou nunca mais viajar de barco. Vomitou toda a viagem, a toda a hora, tivesse ou não comido. Chegou a pensar que o coração, os pulmões e outros órgãos lhe tivessem saído pela boca.

Quando chegou a Lisboa ficou a saber que Salazar morrera. Era verão e estava-se em 1970.Desembarcou com a mala, herdada do pai, e tinha à sua espera o primo. Deram uma pequena volta por Lisboa, num táxi de um compadre e rumaram a casa, num bairro de barracas nos arredores da capital.

Depois de alojado foram à taberna de um conterrâneo que lhes ofereceu uma aguardente de cana. O único milagre que a cana era incapaz de fazer, era encher os bolsos dos bebedores pois, quanto ao resto, estavam provados e comprovados os efeitos medicinais: curavam dores de todo o feitio, até as de amor.

 Domingos saiu da tasca com uma enorme dor de cabeça. Logo por azar, era a excepção que confirmava a regra. Essa noite dormiu mal e sonhou que estava de novo embarcado. Quando finalmente se encontrava quase a dormir o primo anunciou-lhe que eram horas de se levantarem.
A vida na obra era uma estafa. O intervalo que tinham, era o do almoço, em que engoliam comida fria e um vinho que era uma autêntica zurrapa. Trabalhavam ao ritmo das asneiras e insultos do capataz, que achava o vinho americano que bebiam na obra, um verdadeiro néctar e nunca deixava a sua caneca vazia.

Do trabalho para casa e vice-versa, se compôs a vida de Domingos Pedro. A do primo só tinha mais uma variante em relação à sua, que era a ida diária à taberna do conterrâneo.

O silêncio reinante na barraca até doía. Pouco ou nada conversavam e quando o faziam era sobre a ilha e sobre as saudades da vida que nela levavam e da família que lá tinham deixado.

Um dia passou pelo seu local de trabalho um vendedor ambulante. Entre as várias mercadorias, trazia uns poucos de rádios. Os olhos de Domingos prenderam-se
neles e pensou que um lhe seria muito útil. Imaginou-se na habitação ouvindo música e notícias. Seria o fim do maldito silêncio. Quando voltasse à ilha oferecê-lo-ia aos pais.

O vendedor apercebeu-se do interesse do Domingos por um rádio. Elogiou os rádios enumerando-lhes as características: a pilhas e a electricidade; som de qualidade; funcionamento garantido em todas as posições e demonstrava virando-o de cabeça para baixo, para a esquerda e para a direita, para a frente e para trás.

Passaram ao preço e Domingos regateou-o até a exaustão. Conseguiu baixar o preço para metade. O vendedor entre “mãezinhas” e juras de que perdia dinheiro, entregou-lhe um rádio numa bonita embalagem.

O dia passou devagar, muito devagar e a hora de saída nunca mais chegava. Quando o capataz deu por fim o dia de trabalho, mal deu por si, estava à porta de casa. Jantou, com o embrulho bem à sua frente, gozando o momento de o abrir.

Cerca de uma hora depois, decidiu presentear-se. Retirou-o da caixa com todos os cuidados. Ali estava ele, em tons de azul. Afagou-o, cheirou-o e colocou-o, com carinho, em cima da mesa. Ligou-o e ele não piou. Um suor frio escorreu-lhe da testa e das costas: estava avariado!?

Conseguiu acalmar-se e pensou que ele não tocava por falta de pilhas. Também não era problema pois ele funcionava a electricidade. Ligou-o  à tomada, mas nenhum  som se ouviu. Nervoso, decidiu abri-lo. No seu interior não havia nada. O que existia era um grande pedaço de plasticina. O coração dava-lhe pulos e parecia saltar-lhe do peito. Uma raiva surda apoderou-se de si. O filho da p… tinha-o enganado. Correu à taberna à procura do primo. Este, falou a dois ou três clientes e sossegou-o:

-Amanhã, bem cedo, resolvemos o problema…

- Como assim? Onde é que ele mora?

-Já me disseram…

Pela manhã,  Domingos foi acordado bem cedo pelo primo que lhe disse:

-Traz um pacote de manteiga do frigorífico. De manteiga não, traz um de margarina que é mais barato…

Domingos Pedro cumpriu a ordem sem fazer perguntas mas não se coibiu de pensar que o primo ainda estava com os vapores do grogue. A cana ainda havia de o matar.

Chegados a casa do” Mãezinha Juro por Deus” o seu primo falou assim:

-Vai buscar dois rádios que toquem.

-Dois!?

-Descansa, só levamos um…o outro fica contigo.

Mal os trouxe, o primo sintonizou-os numa estação que estava a tocar uma música dos Beatles. Deu o pacote ao “Mãezinha” e advertiu-o:

-Coloca-o num local bem visível, com o rádio ao lado. Caso repitas a gracinha, ficas a saber que precisarás do pacote, uma vez que o vais ter de o guardar em certo sítio….

Que se saiba, nunca mais vendeu rádios falsos.

Jorge C. Chora