sábado, 10 de dezembro de 2011

A dor de dentes

Dormira mal. As olheiras bordavam-lhe os olhos, as pernas pesavam-lhe e pareciam pedir licença uma à outra antes de darem cada passo. As palavras encadeavam-se com esforço e o pensamento estava emperrado. Estava um bagaço.

Parou junto à vendedora de flores. Deu uma vista de olhos às plantas e fixou o olhar num pequeno vaso com piripiri. Absorto, deixou-se estar, olhando fixamente o dito vaso. Um bom bocado depois, a idosa vendedora decidiu intervir:

-Ora aí tem um remédio que talvez resolva o seu problema.

-Remédio… mas…

-Nem mas nem meio mas. Neste momento só aqui estamos os dois, ninguém ouve, tenho vagar…

-Muito obrigado…

-É assim... colhe dois ou três destes gindungos, lava-os, corta-lhes o pé, coloca-os num pão com uma bifana e truca…para a frente é que é o caminho.Vai ver que ganha uma alma nova…

Entretanto chegara a mulher do “paciente”, ainda a tempo de ouvir o final da “receita”. Sorriu e agradeceu o cuidado com o seu amado:

-Obrigado pela sua ajuda minha senhora…mas ele tem é dores de dentes, fortíssimas…

-Ah! Também serve minha jovem…essa também é a desculpa do meu homem …

E no dia seguinte, quando o casal passou pela vendedora, uma piscadela de olho por parte da jovem e sorridente senhora, foi o maior agradecimento que a sabida vendedora podia ter tido.

Jorge C. Chora

quinta-feira, 1 de dezembro de 2011

Viver com o rei na barriga

Sentado à porta de casa, sacode a farta cabeleira suja e afasta as inúmeras moscas que esvoaçam em seu redor. Sorri a quem passa, mesmo aos que fingem não o ver.

-Estás à espera de quê? – interroga-o o vizinho com maus modos e sobranceria sobeja.

-De que me venham buscar o carro…

-Já perdeste a casa, agora é o carro … a seguir será…

-Aquilo que eles quiserem. Sem emprego e sem dinheiro estou sujeito…

-Pois é…quem te mandou a ti sonhar…ter casa, ter carro …onde é que já se viu? eu era o teu chefe e sempre vivi em casa alugada. Fartei-me de poupar. Até o carro era o do meu sogro… - e inchava o peito, sentenciando, de modo retorcido - vaidades que agora pagas caro!

E o da farta cabeleira suja, olhava António, que fora seu colega, bufo a tempo inteiro, chefe que lhe ia reduzindo o salário e que o despedira a mando dos verdadeiros chefes.
Ainda António não tivera tempo de se afastar dois passos, quando o carteiro o viu:

-Sr. António, tem aqui uma carta registada para si.

Abriu-a, leu-a e empalideceu.

As moscas largaram o homem da farta cabeleira e passaram a circundar o novo desempregado. O primeiro, chegou-se para o lado e criou um novo espaço.
Quem passar pelo local, vê agora dois homens que sacodem, à vez, as fartas cabeleiras sujas e que respondem, quando lhes perguntam o que estão ali a fazer:

-A ganhar calo de tanto ouvir que fomos os responsáveis pela crise!

E os que ainda não receberam a carta, seguem ufanos o seu caminho, respirando fundo e comentando com desdém:

-Pois é…viveram com o rei na barriga e agora…

Jorge C. Chora