quarta-feira, 30 de setembro de 2015

CALOTES E PAULADAS

                                                                                
Há cerca de cinquenta anos, os alunos internos do colégio de S. José e Stª Maria em Mangualde, faziam as compras necessárias ao dia a dia, na loja do senhor Nuno,(se a memória não me falha, era assim que se chamava)bem próxima do colégio, quase na esquina que dava para a rua principal. Para além dos sabonetes, pasta de dentes e desodorizantes, comprávamos o tabaco (Definitivos, Porto, Português Suave e tabaco de enrolar…).

Quando as compras excediam a semanada, o sr. Nuno continuava a fornecer-nos o que precisávamos, anotando num livro o valor daquilo que se ia adquirindo.

À medida que íamos tendo dinheiro, pagava-se o que se devia e o sr. Nuno riscava, à nossa frente, a dívida saldada. Melhor ou pior, o método ia funcionando sem males de maior. Acontecia, no entanto, que o dono da loja, para além da paciência que tinha em nos aturar, não revelava a mínima pachorra, sendo mesmo intolerante, face às asneirolas que alguns colegas insistiam em usar. Virava bicho, agarrava no metro com que media as fazendas, saía do balcão e ai de quem permanecesse na loja. Ficava deserta num ápice.

Este puritanismo do sr. Nuno, em breve foi aproveitado por alguns dos estudantes mais velhos e gastadores, nomeadamente os que tinham tido azar à lerpa ou se tinham alargado nas despesas em relação às “moscas”  aos bagacinhos ou aos” licores d’ouro” na pousada. No dia de pagamento das dívidas, formava-se uma fila à porta do estabelecimento. De repente, alguém proferia um chorrilho de asneiras bem alto. Segundos depois, brandindo o metro, surgia o sr. Nuno, provocando uma debandada generalizada.

Os alunos só compareciam na semana seguinte e as palavras eram sempre as mesmas:

-Na semana passada estive cá mas tive de fugir…

-Pois é, peço desculpa, mas fico desorientado quando ouço asneiras… -justificava-se, pesaroso, o sr. Nuno.

À porta, fingindo-se muito penalizados, os matulões da asneirada perguntavam:

-Podemos entrar? Hoje já está bem disposto?

Jorge C. Chora


sábado, 26 de setembro de 2015

SE OS TEUS BEIJOS FOSSEM LEILOADOS



Se os teus beijos
fossem a leilão,
não faltariam licitadores,
e os lances seriam tantos
que para os cobrir teria
de abrir falência.
Fá-lo-ia de bom grado,
se preciso fosse,
mil vezes faliria,
e, só de pensar
que alguém que não eu
te poderia beijar,
declaro-me desde já falido
e cubro   todos os lances
mesmo os que ainda não foram feitos.


Jorge C. Chora


sexta-feira, 18 de setembro de 2015

FORA!

          
As leituras fazem -lhe mal,
causam-lhe urticária,
obrigam-na a pensar,
enrugam-lhe a testa,
ferem-lhe os olhos,
estragam-lhe a cútis,
afundam-na em preocupações,
aborrecem-na mortalmente.
Deusifica a ignorância
que a liberta
do peso dos outros,
das chatices do mundo,
das obrigações que não sente ter,
nem nunca foram dela.
Abaixo a cultura,
fora com a solidariedade,
abaixo os  refugiados,
que se lixem os outros
que não fazem cá falta nenhuma.
Ai de quem me aponte o dedo e diga:
-São seres humanos como tu!
Isso é que era bom!
Como eu? Eu não fui parida,
nasci de uma deusa, fui iluminada
ab initio, por divindades, a insensibilidade
foi-me dada a beber
e nem uma gota deixei,
fui investida na sabedoria,
definitiva, completa e inteira,
e só por uma enorme injustiça e prepotência
me impõem seres de outras culturas
que não a minha
e grito para que todos ouçam:
Fora com os refugiados!

Jorge C. Chora





domingo, 13 de setembro de 2015

MEIO CORTE

                                                           
A senhora ao chegar ao seu prédio, viu uma cobra adormecida à entrada. Arrepiou-se e gritou por socorro, enquanto fugia a sete pés. Um grupo de jovens acorreu aos gritos mas quando viu do que se tratava, escapuliu.

Um idoso que vinha a passar, apoiado numa bengala, aproximou-se e num golpe forte e certeiro, esmagou a cabeça do réptil.

-Já pode entrar minha senhora. A cobra veio deste matagal à sua porta. É necessário alertar os serviços municipais para que este canteiro, com ervas até à cintura, seja limpo.

Mal entrou em casa, mesmo antes de pousar a carteira, telefonou aos serviços que lhe prometeram actuar.

Alguns dias depois, ao chegar a casa teve de esfregar os olhos, certificando-se que não estava a sonhar: o canteiro que abrangia dois prédios, o espaço entre as entradas, estava todo limpo do seu lado mas do outro, continuava com a erva até à cintura.

Um vizinho que morava no prédio do matagal deu uma gargalhada e disse:

-Talvez consiga ainda hoje resolver o assunto…

-Era bom que assim fosse…-respondeu-lhe sorrindo a vizinha – pensando que seria difícil a um homem pobre e sem influência resolver o problema
.
Pela tardinha, qual não foi o espanto da senhora, ao verificar que uma brigada limpava com todo o rigor a metade do canteiro que fora deixada sem intervenção da outra vez. A comandá-los estava um homem com a metade direita do cabelo cortado e, do lado esquerdo uma farta cabeleira. Ao seu lado, em amena cavaqueira, o seu vizinho, o tal que prometera solucionar a questão.

Completada a tarefa, percebeu como se tinha resolvido o assunto tão depressa, ao ouvir o diálogo entre o chefe e o seu conhecido do prédio ao lado:

-Então vamos lá completar o corte do seu cabelo…

-Já não é sem tempo… -desabafou o chefe da cabeça semi-rapada.

Jorge C. Chora


sábado, 12 de setembro de 2015

COGNATA

                                                                                                                                 
Entre as belas da aldeia, Cognata era a mais bela. Pelo nome, só por ele, quem não a conhecesse, seria incapaz de prever quão bela ela era de facto. Não sendo rica, nem sequer remediada, quem podia trajar roupa lavada, sentia-se um degrau acima, o que naquele tempo fazia toda, mas toda a diferença.
Na localidade, raro era o dia em que não lhe recordavam que era pobre, suja e dependente do mais pobre dos habitantes. Cognata sabia que não era bem assim. O prato de sopa com que muitas vezes lhe pagavam os serviços, dividia-o com outras meninas em piores situações do que a dela . Quando descobriram que o pouco que lhe davam ela ainda partilhava, ameaçaram-na:

-Se o que te damos ainda dá para dares aos outros, é porque te damos em demasia…

Cognata prometeu nunca mais distribuir o que lhe “ofereciam”. Colocava-se à esquina, escondendo o prato atrás de si, de modo a que não a vissem, e as protegidas, assim podiam  molhar pedacinhos de pão na sopa que ela continuava a partilhar.

Cognata chegou à idade adulta e candidatou-se a um emprego numa instituição de solidariedade social. Foi recusada. O motivo alegado, veio escarrapachado numa folha de papel couché: Sem hábitos comprovados de solidariedade.

A recusa vinha assinada por uma das senhoras que prometera cortar-lhe a sopa por achar que lha davam em demasia…

Jorge C. Chora



sábado, 5 de setembro de 2015

EUROPA DESMEMORIADA



Face à metralha e às bombas,
aos gritos lancinantes dos
que vêem os filhos esfacelados,
e procuram salvação,
a Europa responde-lhes com um não:
fora daqui, não vos queremos cá!
Erguem-se muros que os evitem,
burocracia que os encalacre,
enxotam-se para outras fronteiras,
e os diferentes países sacodem-nos como podem
e cada um espera que seja o outro a resolver.
Alguns, que ajudaram a agravar a situação,
viram-lhes as costas e com o maior desplante do mundo
dizem:
Nada tenho a ver com isso,
eles que resolvam a situação,
que se amanhem!
Continuam os pais a fugir,
procurando salvar os filhos,
muitos ao colo,
da bestialidade de quem os extermina,
para morrerem sufocados em comboios e camiões,
ou como Aylan, afogados e embalados pelas ondas
que rebentam em praias sepulturas.
Evapora-se a tolerância,
crescem os instintos assassinos e xenófobos,
condutas que envergonham a Europa
e serão recordadas ao longo dos séculos,
como marcas identitárias de um continente
que perdeu o Norte
e a que a acção esclarecida de alguns políticos,
ainda não conseguiu pôr termo.
Corremos o risco de nos esquecermos dos
valores humanos,
de nos tornarmos insensíveis.
Oxalá isso não aconteça!

Jorge C. Chora



sexta-feira, 4 de setembro de 2015

O MERCEEIRO E O CASMURRO

                                               
Quinze minutos antes de a mercearia abrir, já o velho Maurício estava à porta. Gostava de ser o primeiro a ser atendido. Podia escolher à vontade e apalpar a fruta antes de a comprar. É certo que ouvia reprimendas, todos os dias:

- O senhor Maurício não pode mexer na fruta…

E Maurício fazia-se de surdo e murmurava:

-Querias meu patife… tu apalpavas e eu comprava… -E logo em seguida, apanhava o pano com que o merceeiro puxava o lustro à fruta, e fingia que a limpava de novo, escolhendo aquela que mais lhe convinha.

O proprietário da loja acabou por desistir dos ralhetes, deixar de limpar a fruta e atribuir essa tarefa ao Maurício que, em troca do serviço, poderia escolher a melhor para si.

Quem quer ver Maurício feliz e contente, logo pela manhã, é vê-lo a puxar o lustro aos melões e a advertir a clientela:

-Nada de tocar na fruta…para isso estou cá eu…

E quando alguém não liga ao que diz, repreende-os:

-Para surdo, basto eu!

Jorge C. Chora




quarta-feira, 2 de setembro de 2015

A MENINA DA TRISTE FIGURA

                                                                                                
 Chamou-me hoje a atenção, na Amadora, uma condutora jovem com um ar triste, numa viatura pequena e velha, parada num sinal luminoso. Quase instintivamente, sorri-lhe.

A mulher olhou-me, fez uma cara feia, largou o volante e apressou-se a trancar o carro, tudo isto numa fracção de segundos. Primeiro achei graça, pois a resposta da jovem mulher a uma mensagem que pretendia ser de simpatia e compreensão, foi absolutamente inesperada. Depois, num relance muito rápido, verifiquei que ela era pequena, não devia nada à beleza, que o ar que eu identificara como tristeza, seria o reflexo de um interior pobre, preconceituoso e triste.

Que culpa tinha ela, se a vida a tornara assim? pensei, enquanto segui o meu caminho para a mercearia, por passeios com altos e baixos.

E foi assim que hoje, dia 1 de Setembro de 2015, perdi alguns segundos, com uma menina feia, triste e convencida de que o mundo girava à sua volta.


Jorge C. Chora