Estremeceu de medo ao ver a idosa senhora, encarquilhada, ao
cimo da escada. Embora pequena, parecia gigantesca. Calçava umas tamancas
repletas de lama e ajeitava o carrapito, mostrando uma boca escancarada onde
existiam meia dúzia de dentes podres e amarelados.
A miúda tremia ao olhá-la. A única segurança que tinha
era-lhe transmitida pela mão da sua avó, que a apertava com força. Ia ser
entregue naquela casa, para que a criassem.
Abandonada pelos pais, fora acolhida, com todo o carinho,
pela avó, a quem segurava a mão, numa derradeira despedida. Não dormira a noite
toda a pensar no que lhe ia acontecer.
D. Gervásia continuava de boca aberta e deu-lhe as boas
vindas:
-Minha filha, aqui serás tratada como uma pessoa da família.
Se te portares bem, herdarás estes meus sapatos quando eu morrer!
A pequena Maria, ainda hoje não sabe como não morreu, de
facto, fulminada, mal isto ouviu.
Olhou com atenção para as monstruosas socas. A lama seca
cobria-as mas deixava ver uns pregos laterais, também sujos, que prendiam o
couro à madeira. Esboçou um gesto de fuga, mas a sua avó acalmou-a,
segurando-lhe a mão com firmeza e afagando-lhe a cabeça. Imaginou-se a
atravessar o rio local com elas. Ao menos não me afogava, e este pensamento
fê-la acalmar-se.
Nesse dia comeu feijão-frade, com cebola, ao almoço. Ao jantar
deram-lhe cebola com feijão-frade e à medida que o tempo passava percebeu que a
maioria das refeições era mesmo baseada nessa qualidade de feijão.
Tentou, em diversas ocasiões, esconder a comida, mas sem sucesso.
Chegou a deitá-la fora, para baixo das pipas da adega. D. Gervásia ordenou que
a apanhasse e a comesse, pouco se importando que ela estivesse com areia. De
todas as vezes que tentou o truque, foi apanhada e a ordem foi sempre a mesma:
-Apanha-o e come! Depressa que o tempo escasseia!
Sem falta, logo de manhã, carregava os latões com a calda
que os trabalhadores iam deitar nas videiras.” Dar água à cura”, era assim que
chamavam a este trabalho, saía – lhe do pêlo, devido ao vai e vem a que era
obrigada.
Apanhar vides era outro dos trabalhos que a sua criação
implicava. Eram necessárias a toda a hora, nomeadamente para o lume, para fazer
carvão e para as enxertias. Em casa sobejavam-lhe as tarefas e escasseavam os
tempos mortos. Chegou a pensar que D. Gervásia devia vender a mula já que ela
substituía, em boa parte, o seu trabalho.
Só por sorte foi à escola e a frequentou uns meses, não
chegando a um ano. Aprendeu a ler mas faltou-lhe a oportunidade de consolidar a
escrita:
-És cá precisa em casa. Sabes ler e é tudo o que necessitas.
Deixa a escrita para os escritores!
Sempre que a via a tentar escrever, partia-lhe os lápis e
repetia:
-Deixa a escrita para os escritores!
Ainda hoje recorda com saudade a professora que organizou
uma festa de baptismo para os alunos que ainda não o tinham recebido, como era
o seu caso.
Em casa, D. Gervásia
infernizava a vida de todos, mesmo a do marido, com as suas exigências.
Um belo dia, o marido, num ataque de fúria e de bebedeira,
matou-a.
Maria entrou em pânico. Correu como uma louca em direcção ao
quarto de D. Gervásia, meteu-se debaixo da cama e trouxe as tamancas. Com elas
bem presas, correu para o quintal e atirou-as para a fogueira que os
trabalhadores tinham feito.
-As tamancas é que eu não herdo!
Jorge C. Chora