domingo, 25 de abril de 2010

A Fotografia

O que ela tinha de belo não compensava a prepotência de que era dotada. Pior ainda, era gostar de o ser, fazer gala em sê-lo.

Resolveu tirar uma fotografia e convidou um amigo para lhe fazer esse favor. O amigo não foi escolhido ao acaso. Experiente, era também um profissional de mão cheia e, aceitou fotografá-la, porque tinha um fraquinho por ela, ou melhor, uma enorme paixão e ela sabia -o.

Durante duas horas fez orelhas moucas aos pedidos do fotógrafo:

-Eu acho que fica muito melhor assim….-e colocava-se de modo diverso ao pedido -para logo de seguida assumir outra posição que nada tinha a ver com a solicitada.
O fotógrafo sorria, mas aos poucos a dor que sentia no rosto, pelo esforço dispendido a fingir sorrisos, ameaçava transformar-se num esgar de dor.
O sol escaldava. As tonturas apossavam-se do fotógrafo e o sorriso ia-se evaporando mas ela não se dava por satisfeita:

-E agora uma assim….- e colocava a mão direita em forma de cálice, como se fosse colher néctar do céu.

-Acaba com o meu sofrimento Senhor…-pedia o fotógrafo, com a expressão de dor de quem acaba de ser vítima de alguém que por maldade lhe agrafou a face.

De repente, três gaivotas que esvoaçavam no local, encetaram um voo picado e, sem falharem o alvo encheram-lhe a mão, que imitava um cálice, cheia de cocó.

-Aí que horror…que nojo!

O amigo, olhando para o céu de forma disfarçada, murmurou:

-Obrigado!

Juram todos os que estavam presentes que ribombou um trovão e por cima dele se fez ouvir uma voz inesquecível:

-De nada meu banana…

Jorge C. Chora

segunda-feira, 19 de abril de 2010

A Pega Rabuda

Quando o sol incidia nas suas penas pretas, elas reflectiam uma paleta de azuis, verdes e vermelhos. Os mirones andavam em redor da gaiola, buscando captar-lhe toda a beleza. A pega abria as asas, espreguiçando-se de uma forma dengosa, expondo-se o mais possível, tirando partido do espectáculo dado pelas suas reluzentes penas.

Miúdos e graúdos juntavam-se em redor da gaiola. O dono sorria, olhava para a sua lucrativa pega rabuda e fazia-lhe sinais disfarçados: levantava o polegar direito (muito bem) e pouco depois o polegar esquerdo (continua).
A pega entendia tudo e dava-se ao luxo de lhe responder:

-Tchak tchak (sim) - e deixava que mais pessoas se juntassem para a ver.

Depois lançava outro sinal sonoro:

-Choc…Tchak ( é agora)

O proprietário chegava-se e colocava um cartaz na gaiola: Dá a liberdade à pega só por dez euros.

-O que é que o senhor quer dizer?

-Quero dizer que se fizerem uma recolha entre os que aqui estão, de 10 euros, eu dou a liberdade ao pássaro.

- Dá a liberdade? - surpreenderam-se uns quantos mirones.

-Sim…abro a gaiola e deixo-o fugir.

Logo que o peditório era feito a promessa era cumprida. A gaiola era aberta e o dono despedia-se da pega:

-Adeus minha linda…

E a pega, sem qualquer demora, abria as asas e voava para longe dali. Ia direitinha para casa, ou melhor, para a gaiola onde se encontravam outras pegas, na casa do seu dono.

O negócio ia de vento em popa. A pega era bem recompensada com insectos seleccionados e o dono tinha sempre aqueles dez euros garantidos com a artimanha.

A pega tornou-se, à medida que o tempo passava, cada vez mais conversadora e vaidosa.

Um belo dia, um jovem esperou pelo abrir da gaiola e quando a pega saiu, foi atraída por uma outra pega tão bela como ela, dentro de uma gaiola com a porta aberta.
Mal entrou ,deu pelo logro: não havia nenhum pássaro, mas somente um espelho.

-Tchak…rroach…choc (estou tramada) - lamentou -se.

-E eu também! - desabafou o ex-dono.


Jorge C. Chora

segunda-feira, 12 de abril de 2010

O Baile da debutante

A rapariga via as horas a passarem e mostrava-se nervosa. Olhava para o relógio, de início espaçadamente, mas agora de minuto a minuto consultava-o, embora nem visse de facto as horas. De modo inconsciente, quanto mais olhava, sabia que menos tempo faltava para a hora de saída e esta ,de certo modo, chegaria mais cedo.

Os colegas observavam-na, mas evitavam perguntar-lhe a razão do nervosismo. Sabiam por experiência própria as respostas tortas que ela dava quando se enervava, ou estava com os” azeites”, como ela dizia.

Os colegas, mesmo sem quererem, tinham os olhos presos no vai e vem rápido que ela executava, de uma ponta à outra do balcão. Por fim até dava pulinhos.

Semelhante agitação não passou despercebida ao seu chefe que parou ostensivamente de trabalhar para a fitar.

Sentindo-se observada com aquela intensidade, ficou a roer-se por dentro, contendo uma resposta menos própria.

Faltavam ainda 5 minutos para a saída. Tinha de fazer das tripas coração para não pedir para sair. Sabia que se o fizesse, perderia o tempo e o feitio, para além de inviabilizarem o pedido ainda receberia um sermão sobre as suas obrigações e, mais grave do que isso, sairia mais tarde. Alturas houve em que chegaram a dar-lhe mais trabalho…
Calada durante os segundos que faltavam, explodiu à hora exacta da saída:

-Quem advinha para onde vou?

Ninguém ousou adivinhar.

-Vá digam… eu ajudo… vou ter aulas… aulas de?

O chefe, com um sorriso velhaco, diz, fingindo muito interesse pelas actividades da gaiata de dezoito anos:

-Talvez para as aulas de catequese…

A funcionária ia morrendo com uma apoplexia. Nunca lhe passou pela cabeça responder-lhe que ia ter a sua primeira aula de condução.

Os colegas ficaram siderados. O silêncio entrecortado da respiração colectiva e ofegante dos colegas, adensou o clima de tempestade preste a explodir.
A jovem vira-se para o chefe e diz-lhe ,com a maior calma:

-Se fosse o senhor a dá-las, não faltaria por nada deste mundo… - e faz uma vénia como se estivesse num baile de debutantes.


Jorge C. Chora

sexta-feira, 9 de abril de 2010

Nem por encomenda!

Olhou para a mulher de modo disfarçado e ela suava. Não estava calor nenhum. Fazia frio e o Inverno ainda ia a meio.

Sabia perfeitamente a causa do nervosismo da esposa. Resolveu ver se a situação melhorava por si própria. Piorou. Os lábios dela tremiam-lhe e suava de modo intenso. Não podia, de modo nenhum, prolongar o sofrimento estampado no seu rosto. Resolveu suavizar o mal-estar:

-Estás mal disposta?

-Não… não…

-Esqueceste-te de alguma coisa em casa? - e abrandou a velocidade ,que já era pouca, e iniciou a manobra para parar a viatura.

-Hum… hum…. Desculpa-me, acho que deixei o ferro de engomar ligado… tenho essa impressão e não consigo lembrar-me de o ter desligado…

-Mas tu não estiveste a passar hoje…

-Olha … estou confusa… estou com um pressentimento de que o deixei ligado…

O marido estacionou o carro. Sorriu e disse-lhe:

-Um momento…. - e inclinou-se um pouco para trás, esticou o braço, remexeu de baixo do banco e puxou um saco, que abriu e mostrou …

-Trouxeste o ferro?

-Acalma-te. Ele está aqui.

-Obrigada - e um sorriso terno começou a despontar-lhe no rosto, mas logo desapareceu.

-Agora lembraste – te do ferro de viagem… e julgas que ele… - e o marido abriu um segundo saco, que se ocultava junto ao primeiro - e mostrou o pequeno ferro de viagem.

-Obrigada…

- Agora vais falar com o teu filho, que está em nossa casa, neste momento, pronto a responder-te às perguntas que lhe queres fazer…

-Ó filho diz-me se…

-O Gás está fechado, as torneiras e o quadro eléctrico também… Boa viagem – interrompeu o filho.

Finalmente, um sorriso rasgado, feliz e despreocupado assenhoreou-se da senhora, que desabafou:

-Ai se eu não tivesse tanta paciência com as tuas manias…

Queria um marido assim? Só nas histórias estimada leitora.

Jorge C. Chora

segunda-feira, 5 de abril de 2010

A Barbuda

Sentadas no banco do jardim, duas senhoras de meia idade, tricotavam. Acompanhadas pelos maridos e por um casal amigo, aproveitavam para se aquecerem ao sol. A conversa versava as frivolidades costumeiras que ajudam a passar o tempo e a matar o silêncio:

- O tempo está mesmo incerto…a humidade é terrível….

-Os meus ossos que o digam…

-Não há meio desta constipação me largar…

Um vozeirão ao lado, oriundo da esquina oculta do prédio, antes de se entrar no jardim, interrompeu-lhes a conversa:

-Minha barbuda…. … essa barba mata-me….tanto pêlo confunde-me…

Entreolharam-se os que apanhavam sol. Inclinaram as cabeças para não perderem pitada da conversa.

-Uma barba tão farta… ó meu amor, pode ser motivo de admiração para quem goste… ainda não decidi se ela te fica mesmo bem… - e o vozeirão desmanchava-se num riso portentoso, daqueles que atroam os ares e rivalizam com o trovão.
E o homem insistia:

-Minha barbuda… é uma barba indecente, de provocar inveja a um marinheiro regressado da campanha do bacalhau…

Colocando-se na pele da senhora que estava a ser alvo de tamanha grosseria, os senhores mexiam-se, incomodados, pedindo um castigo merecido para semelhante energúmeno:

-Não há direito de tratar ninguém deste modo…

-Nunca, mas mesmo nunca, tinha ouvido um tratamento tão repulsivo…

-Nos tempos que correm é possível acontecer tudo, mas mesmo tudo…

-O que uma mulher atura…meu Deus - queixaram-se revoltadas as senhoras que tinham parado de tricotar.

-Parece impossível… - concordaram os senhores.

E do lado oculto da esquina os mimos continuavam:

-Aí barbuda… o que vão dizer quando te virem… escondem-se … é o mais certo - e os ares vibravam com as estrondosas gargalhadas.

A situação tornava-se, a cada minuto que passava, mais penosa e inaceitável.
O vozeirão foi-se tornando cada vez mais audível e surgiu na esquina da casa um homenzarrão, de barba e cabelo hirsutos, com quase dois metros de altura que dizia:

-Anda barbudinha … estamos atrasados… eu não te vou levar ao colo - …- e trazia à trela uma cadelinha com uma barbaça que alto lá com ela.


Jorge C. Chora

quinta-feira, 1 de abril de 2010

O Engravatado

Dois jovens casais, sentados à mesa da esplanada de um café, pediam aos transeuntes que os auxiliassem a pagar o que lhes faltava da despesa que tinham feito:

-Só nos falta um euro para pagar a conta…

Aos que lhes pareciam mais pobres, pediam um euro, a outros dois e, aos que aparentavam maior importância, chegavam a pedir quatro ou cinco.

À passagem de um senhor de meia-idade, de barba grisalha, gravata de seda italiana e com um monograma visível na camisa, o choradinho refinou-se:

-Calculámos mal a despesa e veja Vexa. que, para mal dos nossos pecados…desculpe-nos dizer-lhe …estamos envergonhadíssimos …faltam-nos dez euros para fazer face à despesa…

Penalizado com o sofrimento dos jovens e solidário com a vergonha demonstrada, o cavalheiro apaziguou-os:

-Acontece aos melhores. Não se preocupem. Posso sentar-me um bocado convosco?

-Com certeza, faça o favor… -e piscaram, de modo disfarçado, o olho uns aos outros.

-Muito obrigado. Vou aproveitar para tomar o pequeno-almoço com a juventude…- e olhava para as duas jovens com um sorriso encantado e sedutor.

Quanto mais babado e delicado o senhor se mostrava, menos remorsos tinham os acompanhantes das jovens. “ O gagá quando vir como elas lhe mordem, vai ver quanto lhe custam os sorrisinhos”, pensaram os dois sabidos meliantes.

-Estejam à vontade, peçam alguma coisa mais… - ofereceu o senhor.

Não se fizeram rogados.

O empregado teve de interromper o alegre convívio do grupo:

-Peço-lhe mil perdões senhor doutor, mas o seu sócio está a chamá-lo ao telefone. Ele pediu-me que lhe dissesse que é por breves momentos…

Na sua ausência, os quatro aproveitaram para afinar estratégias.

Segundos depois de falar ao telefone, com um sorriso enorme nos lábios, pediu ao empregado que levasse para a mesa mais cinco sandes de presunto.

Enquanto o funcionário se dirigia ao balcão, o cavalheiro saiu pela porta traseira onde o esperava o autor do telefonema:

-Então…rendeu? Quanto é que os totós tinham?

-Vinte euros…mas foi difícil surripiá-los… dá para o gasto e a lição ficou-lhes barata…não há nada como realmente… Agora vão aprender mesmo a pedir e não a roubar … para isso cá estou eu…

-E eu também …ora os fedelhos - enxofrou-se o segundo engravatado.

Na mesa da esplanada, cada vez que passava um aperaltado, os quatro pediam, pianíssimo, em coro:

-Se nos desse cinco cêntimos…

Quando todos os pedinchões, os que estavam à mesa e o que já tinha saído, se preparavam para abandonar a área do restaurante sem pagar, os engravatados por trás e os jovens pela frente, surgiram-lhes os seguranças, que os conduziram ao patrão, em fila indiana.

À medida que iam entrando no gabinete, recebiam uma vassoura, uma esfregona e o respectivo balde e ainda um pano de louça.

Calculada a dívida e o trabalho necessário para a pagar, foram-lhes distribuídas tarefas:

-Varrer a esplanada, lavar o chão do restaurante e, após os almoços dos clientes, lavar a loiça e limpá-la…

- Mas o engravatado comeu mais do que nós… - refilaram as duas raparigas.

-Então, no final, fica a dar banho ao cão e as meninas a secá-lo…

Jorge C. Chora