quarta-feira, 25 de julho de 2012

Alucinações

A avó e duas netas, adultas mas ainda jovens, tomavam chá. A neta mais velha, revelando preocupação com o estado de saúde da ascendente, perguntou-lhe como iam as suas alucinações.

-A avó está com alucinações!? – surpreendeu-se a mais nova.

-Sim, são devidas aos medicamentos que toma…

-Bem…tomei… -tentou explicar a avó, logo interrompida pela neta.

-Está sim. Ainda noutro dia julgava que tinha um homem debaixo da cama.

-Ó Helena, isso era eu a julgar que estava num dia de sorte. Foi…como hei-de dizer, uma esperança a que se seguiu uma enorme decepção. Como vêem é algo que não chegou a acontecer… -e revirava os olhos de um modo coquete, associado a um ar de quem se estivesse a deliciar com a degustação de um chocolate da sua predilecção.

-Está a delirar avó? - questionaram as jovens, escandalizadas pelo arrojo demonstrado.

-Não, minhas netas… estou a sonhar alto… -e continuou, impávida, a barrar o “scone” com uma noz de manteiga.

Jorge C. Chora

terça-feira, 17 de julho de 2012

O Doze e os seus inimigos figadais


Entrou a bambolear-se, com um passo felino, cabelos soltos e um leve sorriso nos lábios. Luís surpreendeu-se por ser o único a observá-la. Ainda não percebera o que se passava, quando notou que muitas pessoas presentes na sala seguiam, como se estivessem hipnotizadas, um homem de meia estatura que entrara um bocado antes.

O que tinha o recém-chegado para atrair as atenções? perguntou-se. Talvez lhe tivesse escapado algum pormenor. Tornou a olhá-lo com maior atenção. Tinha um andar estranho: pernas abertas, braços pendentes, um balancear gingão e os olhos rodopiavam como que a procurar descobrir agulha em palheiro.

Acabou por se desinteressar da figura, continuando, no entanto, a verificar que o mesmo não acontecia com os outros que o seguiam de modo atento. Em definitivo, preferiu olhar para a senhora do andar felino. Quase de imediato, alguém lhe sussurrou um conselho:

-Não tire os olhos do Doze…

-Do Doze?

-Sim chamam-no assim por ter cumprido uma dúzia ou mais de sentenças…

Agradeceu mas não ligou ao aviso. A beldade impôs-se-lhe. À saída precisou de dinheiro e por muito que o procurasse, foi-lhe impossível encontrá-lo. Ao repetir pela enésima vez a busca infrutífera, o cavalheiro que o advertira antes, aproximou-se e murmurou-lhe:

-Tirou os olhos do Doze…Pois fique a saber que ele é o principal inimigo do fisco. Onde ele esteve o fisco recusa-se a ir, e o contrário também é verdadeiro. São inimigos figadais.

Jorge C. Chora

sábado, 7 de julho de 2012

Os lobos e os patos

Uma alcateia esfaimada tinha por hábito ir aos armazéns dos patos mudos, servir-se à vontade e deixá-los quase vazios. Habituara-se a viver à custa dos patos e a exigir-lhes que eles fossem de novo cheios, sem quaisquer contemplações, quer pelo esforço, quer pelo ritmo de trabalho a que os submetiam.

Um belo dia, a gula foi de tal modo desmesurada e engoliram tantas toneladas de alimentos e a uma velocidade tão alucinante, que acabaram por se engasgar e quase sufocaram. Aflitos, lembraram-se da história do
lobo e da cegonha, e vá de gritarem por socorro e de prometerem tornarem-se mais comedidos, caso os auxiliassem.

Os lobos alinharam-se ao longo de quilómetros, de bocas abertas, esperando ser salvos. Os patos, numa correria, procuraram salvá-los da asfixia, mergulhando os bicos nas suas gargantas para lhes retirarem o excesso de comida.

Acreditando nas promessas, a comunidade dos patos mudos não só os ajudou, como multiplicou os esforços para produzir mais, em menos tempo, para encher os armazéns, chegando a destacar alguns dos seus membros para melhor acomodarem os alimentos e assim aproveitaremos melhor os espaços disponíveis.

Livres da morte, os lobos, depressa se esqueceram das promessas. Passaram a comer e a exigir muito mais do que anteriormente.

Muito a custo, os patos mudos questionaram a alcateia sobre as promessas que lhes tinham sido feitas.

-E acham que nós não cumprimos? Pensem lá bem…não sejam ingratos… -resmungaram os lobos.
Os patos entreolharam-se. Algo lhes estava, decerto, a escapar…

-Então, o que nos dizem, senhores patos… -insistiram os lobos.

Os patos calaram-se. Por algum motivo eram mudos. Mais valia terem os bicos fechados do que debitarem um chorrilho de asneiras. Assim pensaram e assim fizeram.

A alcateia faminta depressa esqueceu o assunto, até que um dos patos mais sabidos, chegando-se ao pé de um dos lobos mais jovens o abordou como quem não quer a coisa:

-Olha lá jovem lobo…eu e alguns dos meus amigos fizemos uma aposta. Eu digo que vocês cumpriram a vossa palavra…quando nós vos salvámos…mas os meus amigos são de opinião contrária. Eles julgam que são mais espertos do que vocês.

O jovem lobo riu-se a bom rir. As suas gargalhadas ecoaram pelas redondezas e ele acabou por dizer:

-Quando tivemos as vossas cabeças nas nossas gargantas, podíamos ter-vos comido e não o fizemos. Afinal quem deve a vida a quem? Quem são os ingratos?

Calaram-se os patos. Não queriam acreditar no que ouviam. Só podia ser gozo.
Ainda nesse dia, a alcateia, insaciável, tornou a empanturrar-se de tal modo que se pôs a gritar por socorro…

E sabem que os patos voltaram a enfiar os bicos na garganta dos lobos,tantas vezes quantas foram necessárias?

Jorge C. Chora