sábado, 20 de outubro de 2012

Leitura às avessas

Com uma pontualidade invejável, a empregada chegava à praia, com duas gaiatas pela mão. Escolhia mais ou menos o mesmo sítio de sempre e espetava o frondoso chapéu -de -sol na areia, estendia as toalhas, colocava a cesta de verga com os lanches das pequenas, à sombra. Ajudava-as a despirem-se, dobrava-lhes a roupa, e só depois de as ver instaladas se acomodava.

Debitava, de seguida, o responso da segurança sobre o molhar dos pés e dos banhos de mar, acentuando o perigo mortal daquela última actividade, até porque ela não sabia nadar e não podia socorrê-las.

Cumprida a primeira parte do programa, retirava uma revista feminina do seu saco, suspirava, colocava-a à sua frente, muitas vezes de cabeça para baixo, e ficava assim, muda e queda durante horas.

-Olha que tens a revista ao contrário… -advertiam-na as crianças, que de parvas nada tinham e já soletravam.

- E eu não sei? É que assim levo mais tempo a ler e ocupo o tempo…- respondia, enxofrada.

Pelo sim, pelo não, as gaiatas fizeram-lhe uma bola na parte de cima da revista, e sempre que a Laurinda pegava nela ao contrário, diziam em uníssono:
- A bola para cima…
-E eu não sei? – e bufava de enjoo com a observação das patetas das miúdas.
A meio da manhã chegava um magala que se colocava estrategicamente uns metros à sua frente e ela fingia não ver. Só nessa altura é que a sua disposição melhorava a olhos vistos.

No pequeno rádio do soldadinho, soava a recente música de Nilton César”A namorada que sonhei” e a frase”…Receba as flores que lhe dou…” que ele acompanhava com o envio gestual de pequenos beijos repenicados.

Laurinda fazia cara feia mas ia retribuindo os sorrisos, às escondidas, com destinatário certo.

-Para te casares Laurinda, tens de aprender a ler... - e elas, terríveis, que não perdiam pitada, desatavam numa correria, bem a tempo de não ouvirem o chorrilho de asneiras proferidas pela Laurinda.

Num verão, as pequenas patroas, foram vestidas de branco ao casamento de Laurinda e do soldadinho. Quando o padre pediu que Laurinda lesse um pequeno texto, ela virou o missal de pernas para o ar, parou e ficou a olhar para as suas pequenas convidadas. As meninas sentiram o sangue gelar-lhes. Segundos depois a noiva colocou o livro de modo correcto, leu, e só se enganou em duas palavras.

-A malandra da Laurinda! – resmungaram, aliviadas, as meninas..


Jorge C. Chora

quinta-feira, 4 de outubro de 2012

O dedo de pau

Teve um acidente de carro e, por azar, ia tão agarrada ao cinto que acabou por ficar com o dedo polegar decepado. Guardou o pedaço religiosamente. A fé na reimplantação não a deixou desanimar. Quando chegou ao hospital apresentou duas coisas aos médicos: Um saco com a parte da polegar recolhida e um grande sorriso de esperança.

Examinado o corte e a parte separada do dedo, concluíram os profissionais que era impossível reimplantá-lo. Foi o princípio de um desgosto profundo, traumático e de uma revolta sem tamanho.

Regressada à sua terra e ao quotidiano, atrás do balcão da sua taberna, Beatriz olhava amiúde para o seu polegar incompleto. Tinha saudades da parte em falta. Subia-lhe um rubor às faces, um meio caminho entre uma apoplexia e um furor sem tamanho, pela incapacidade de aproveitarem o que guardara tão esperançosamente. Vinha-lhe à memória o momento, o maldito momento, em que o libelo, sem apelo nem agravo, a tinha sentenciado a ficar sem metade do seu querido, amado e imprescindível dedo.

No intervalo dos copos que aviava aos seus clientes, queixava-se amargamente da sua sorte, do membro perdido e que jamais poderia ser recuperado. Um desgosto inultrapassável.

Não havia vivalma, habitante local ou forasteiro, que não estivesse a par da sua grande queixa. Um belo dia decidiu passar ao ataque: Escrever ao ministro a pedir-lhe um dedo, nem que fosse um de pau.

Auscultou todo o mundo, procurando quem lhe escrevesse a dita carta, mas não conseguiu quem o fizesse. Um dia morreu. Morreu sem realizar o seu desejo: o de ter um dedo de pau.

Na vila ninguém a esqueceu e a vereação até lhe botou o nome numa rua. Tinha,certamente, qualidades humanas que aqui não se versaram e que a tornaram digna de memória.

Jorge C. Chora

segunda-feira, 1 de outubro de 2012

As bruxas de Benfica

Entrou e segurou a porta, pois ouviu atrás de si um tiquetaque de saltos altos. Não se enganou. Uma dama de nariz empinado e passo curto, de pequena estatura, sem sequer olhar para si, penetrou na igreja sem o cumprimentar e muito menos lhe agradecer, seguindo em frente, saracoteando-se.

Ainda com dificuldade em encaixar a situação, viu entrar de rajada mais duas senhoras que se comportaram do mesmíssimo modo. Perdeu a paciência e enquanto fechava a porta com uma certa força disse:

-É de mais!

Nesse momento elas gritaram:

-Ai as nossas caudas…que dor…

-Mil perdões…não imaginava….- balbuciou – e olhava a ver se via as caudas.

- Cego é quem não quer ver…toma que é para aprenderes… - e enquanto isto diziam, sopravam labaredas dirigidas aos seus pés.

Saltitando, ora para a esquerda ora para a direita, o infeliz conseguiu evitar ser assado. Cansado de tanto se esquivar, quase a sucumbir, ouviu um pequeno estrondo por cima da sua cabeça e viu três vassouras a voar. Agarrou-se a uma delas e conseguiu sair do alcance das malvadas.

Nesse preciso momento, o padre deu início à santa missa, benzendo-se e fazendo o sinal da cruz. Acto contínuo, apagaram-se as chamas e quando os fiéis disseram ámen, logo as três damas regressaram à sua real forma e natureza. Transformaram-se em três pequenas cabras que reclamavam:

- meeée´…méeeeee´

À porta, um pastor com um enorme cajado e um só corno, vermelho e retorcido, repreendeu-as com severidade:

-Quantas vezes é preciso dizer-vos que o vosso lugar não é na igreja! Não há palha e os bodes estão cá fora!

-Méee…mééé… -reclamaram furiosas, descendo as escadarias numa correria, batendo os cascos com uma tal violência, que as faíscas produzidas dariam para alumiar a noite mais negra.

Valha-nos Nossa Senhora do Amparo!

Jorge C. Chora