segunda-feira, 19 de setembro de 2011

A herança

Quando Jolie morreu ninguém ligou a mínima importância ao facto:

-Menos um bêbado…um vadio…

-Ora…não se perdeu nada…só um maricas – comentou desdenhoso o conquistador do bairro – enquanto imitava os trejeitos do falecido.

Semanas depois soube-se que afinal o “desgraçado” era riquíssimo e deixara indicações para que o seu último namorado secreto, herdasse a fortuna. Mesmo depois de pagar os devidos impostos, o bolo seria tamanho que poucos saberiam escrever correctamente a quantia.

O bairro agitou-se. Quem seria o herdeiro? Será que teria o descaramento de se apresentar? Alguns dias depois, soube-se que um enigmático testamenteiro, iniciaria as averiguações e quereria, com a maior brevidade, deixar o assunto resolvido. Para respeitar a privacidade, foi anunciado que existiriam entrevistas para apurarem a veracidade dos testemunhos.

Duas semanas após o início das “demarches” pouco ou nada se sabia do assunto.Com o decorrer do tempo caiu um manto de silêncio sobre o ocorrido.

Um belo dia, à porta do escritório, foi afixado um aviso:

“Agradeço, sem excepção, a todos os candidatos, o empenho demonstrado nas provas práticas realizadas. Lamento informar de que afinal houve um lapso e que o dinheiro deixado por Jolie não chega sequer para pagar as formalidades testamentárias. De qualquer modo, informam-se os candidatos de que existe uma lista de classificações, que pode ser requerida a pedido dos interessados.”

Mal acabara de ser afixado o aviso quando o conquistador do bairro, certificando-se de que ninguém o via, arranca furioso o papel e profere uma feroz ameaça:

- Aí se eu te apanho…grande aldrabão…

Desde desse dia, olha de soslaio para todos os que perguntam pelo testamenteiro e questiona-se em que lugar da lista teria aquele ficado.

Também quer candidatar-se à herança de alguém que nem conhece? Cuidado com as provas práticas!

Jorge C. Chora

Juro e torno a jurar

Malandro como ele, só ele próprio. Mentia tanto ou tão pouco que se convencia de que o que dizia era a pura verdade, quentinha, acabada de sair do forno e servida em salva de prata. Jurava por tudo e por nada. Dizia-se pobre e era rico e afirmava a pés juntos que se os amigos soubessem até iam pedir para lhe dar.

-Coitadinho! –exclamavam os ouvintes.

-Sou o mais humilde da minha rua… -lamuriava o ricalhaço.

-Ai se a falsidade matasse…

O malandro ria-se, contente com as suas petas e com o facto de ninguém as aceitar, comprazendo-se e valorizando-se pelos nãos.

Gabava-se da sua fealdade, coisa que ninguém desdizia por ser tão evidente, para logo de seguida, à boca cheia concluir:

-Mas nenhuma resiste ao meu enorme encanto secreto…não sei se me faço entender…neste caso tamanho é qualidade… -e esticava-se, mostrando um chumaço, um verdadeiro e quase ofensivo volume quase a rebentar-lhe as calças.

Ninguém se ria, contra factos não havia argumentos, resmungavam mas ninguém ousava dizer nem aí nem ui, perante a demonstração de virilidade do minorca, do malandro mor do bairro e das redondezas.

Ainda não acabara de se esticar e pavonear, quando a mulher, furiosa, lhe grita e o ameaça da janela:

-Anda cá trazer-me a cenoura que me roubaste! Todos os dias me roubas a maior e tu nem delas gostas!

-Não te apoquentes querida…foi para dar às pombinhas…

Jorge C. Chora

quinta-feira, 8 de setembro de 2011

A Perfumada

Amélia pavoneava-se no meio das colegas, dando-lhes a cheirar o pulso e o pescoço enquanto comentava:

-Acho este perfume que hoje estou a usar delicioso. Talvez um tudo-nada forte de mais…

As colegas não se faziam rogadas e cheiravam-na, dilatando as narinas e aspirando profundamente as fragrâncias. Algumas referiam as notas florais e outras identificavam as madeiras específicas que ajudavam a formar o conjunto e a dar-lhe a individualidade.

Amélia sorvia a admiração das colegas, regozijava-se com a atenção que elas lhe davam. Elas eram unânimes em reconhecê-la como louca por perfumes e a única que fazia gala em usar todos os dias um diferente.

Estavam ainda de narizes no ar quando entrou na loja uma senhora ainda jovem que exclama ao ver Amélia:

-Olá! Hoje não consegui perfumar-me lá no supermercado. Cheguei tarde. Qual foi o perfume que disponibilizaram? Foi bom ou nem por isso?

No dia seguinte, quando Amélia passou pelo supermercado antes de ir para o trabalho, encontrou todas as colegas na fila da perfumaria, para experimentarem as amostras das demonstradoras.

A loja onde trabalhavam ficou conhecida como o jardim dos aromas.

Jorge C.Chora

quinta-feira, 1 de setembro de 2011

A história de Tosse-Coff

Atiraram-no por cima do muro e caiu em cima da cadela Bá que alimentava cinco recém-nascidos. A cadela rosnou furiosa com a intromissão. No início não se apercebeu do que a tinha atingido. Ao ver um gato, o seu primeiro impulso foi o de o afastar das suas crias.

Quando o ia abocanhar notou que o gato era minúsculo e estava assustado. Não tinha ainda os olhos abertos. Ao sentir a aproximação do focinho, parecia um balão a deixar sair o ar: Pfff…pfff

Bá puxou o pequeno gato que tremia, aconchegou-o e colocou-o junto aos seus filhos, alimentando-o.

O tempo foi passando e o gato aprendeu a ladrar, ainda que de um modo bem estranho:

-Coff…coff…coff

Por muito que a mãe Bá se opusesse, a ninhada de cachorros chamava-o de Tosse-Coff.
Tosse-Coff não achava piada ao gozo dos irmãos de leite, muito menos quando lhe diziam que era parecido com um gato. Achava os ditos de um profundo mau gosto.

Um belo dia, a dona de Bá reparou na presença do gato e encheu-se de fúria ao ver que os cães não só não o perseguiam como ainda conviviam felizes com ele.
Expulsou-os todos de casa:

-Querem lá ver isto! Era o que me faltava! Fora…fora- e dava pontapés na Bá que ia protegendo como podia os filhos e o Tosse-Coff.

Do outro lado da rua estava D. Isabel que observava, espantada, o desenrolar da cena. Viu Tosse –Coff tomar a dianteira, colocar-se à frente de Bá e fazer frente às ameaças e agressões:

-Coff…coff… - e saltava, recuando logo de seguida, para logo saltar ao ataque, dando tempo a que Bá se afastasse em segurança.

Ao ouvir os gritos e acusações da agressora, logo percebeu o que se passava. Atravessou a rua e tentou acalmar a megera, sem qualquer sucesso:

-Leve-os para sua casa! Rua…rua…

D. Isabel sorriu, afastou-se um bocado, bateu na sua perna e disse:

-Anda Tosse-Coff, traz a tua família e vem para minha casa. São muito bem-vindos.

Jorge C. Chora