quarta-feira, 29 de dezembro de 2021

COVERSAS CELESTIAIS

Júlio sentava-se à soleira da porta da traseira de sua casa e ficava a contemplar a sua horta.  O tempo estava seco e ele perscrutava o céu em busca de sinais de chuva. As alfaces bem precisavam dela, assim como os pepinos e os pimentos.

-Um pouco de água vinha mesmo a calhar… - desabafou em voz alta.

O vizinho do andar de cima, bem mais novo do que o Júlio, foi buscar um borrifador, estendeu o braço para fora da janela e pôs-se a borrifar a água bem em cima do Júlio.

- Obrigado, Senhor! Ouviste o meu pedido e vieste em meu socorro…agora pode ser que me envies uma samarra para o inverno, que bem preciso dela!

E o vizinho, de olhos arregalados, não se conteve e disse:

-Julgas que eu sou o Pai Natal?

E o velho contemplador da horta, como quem não quer a coisa e falasse para o além:

- Desceste de categoria Senhor?

- Como assim? – perguntou irritado o homem dos borrifos.

-Há bocado falava com Deus e agora passaste a Pai Natal?

-Raios partam o velho que julgava estar a falar com o Senhor…  -abespinhou-se o aguadeiro improvisado

Diz-lhe que sim, diz-lhe que sim, pensou Júlio para os seus botões, acabando por lhe dizer:

- Já que não me ofereces nada, ofereço-te eu umas barbas falsas de Pai Natal.

 

Jorge C. Chora

29/12/2021

domingo, 26 de dezembro de 2021

A ALDEIA DO EMAGRECIMENTO GARANTIDO


No trajeto entre aquela aldeia e o mar surge sempre, de supetão, um enorme cabrão. É cabrão por ser um bode grande, mas este é duas vezes cabrão pois comporta-se no sentido que lhe dão, de verdadeiro cabrão.

Não há quem não tema e não trema ao vê-lo investir, saído do sopé da montanha, como um aterrador monstro mítico.

Muitos foram e são os sustos de quem levou marradas por não terem conseguido fugir a tempo, julgando que a investida não lhes era destinada, mas para outros mais feios do que eles.

Os aldeãos, após muito refletirem sobre o destino a dar ao animal, resolveram, de modo sábio, aproveitar os ímpetos maléficos do cabrão.

Aos inimigos de algum aldeão, levam-no a passear para aquele trajeto e para o respetivo castigo: umas boas e belas marradas ao indesejável.

Mas o aproveitamento não se ficou por aqui. Decidiram, por unanimidade,

que ele deveria dar rendimento à aldeia. Mas como fazer?

Levantou-se o mais anafado dos habitantes e disse:

-Lembram-se de quantos quilos perdi quando tive o mau encontro com esse cabrão? Da corrida de 5 quilómetros até ao mar? Dos 1oo metros que tive de nadar com o estupor do bode à minha espera na praia?

Fez-se luz. A aldeia tornou-se numa estância de emagrecimento: todos os dias levavam o(os) candidato(os), ao fatídico encontro com o bode. Para não acontecer nada de mal eram acompanhados por um jipe, no caso de não conseguirem correr mais do que o cabrão!

À entrada da aldeia, passou a figurar um grande cartaz:

Emagrecimento garantido em tempo recorde

Se tiver dificuldade em emagrecer, já sabe: uma ida a esta aldeia e já está!

 

Jorge C. Chora

26/12/2021

sábado, 25 de dezembro de 2021

ESCREVER É RESPIRAR


Escrever por prazer,

e oferecer

a quem quiser ler,

momentos de lazer,

sem a ninguém obrigar

a pagar seja o que for,

a opinar sem querer,

ou a apreciar quando se detesta,

é uma liberdade sem preço.

Escrever é respirar,

um sentir difícil de ser asfixiado,

um oferecer continuado,

quer seja ou não pago.

 

      Jorge C. Chora

       25/12/2021

quinta-feira, 23 de dezembro de 2021

O PESADELO DE MARIA JOSÉ


Maria José

santa não é,

demónio também não,

mas anda furiosa

e tem pesadelos

com os maus-tratos

de alguns colegas.

Tem desejos inconfessáveis

de lhes enfiar um chouriço

pelo sim senhor.

Um amigo desaconselhou-a:

- Estragas um chouriço

e eles ainda julgam ser uma

prenda de Natal!

Recomendo-te, no mínimo,

um abacaxi!

E Maria José,

não é demónio

mas santa também não é,

pediu para sair mais cedo,

foi à mercearia e escolheu

alguns abacaxis:

- Quero os três maiores por favor!

       Jorge C. Chora

             23/12/2021


quarta-feira, 22 de dezembro de 2021

O VENDEDOR DE ARTIGOS VOADORES


O bairro era habitado por inúmeros larápios: uns roubavam por necessidade, outros por vício. A maior parte pertencia à segunda categoria, a dos viciados.

Mas era exatamente nesse local que existia um lendário comerciante, que se intitulava de vendedor de artigos voadores. Vendia fruta e pequenos tapetes, sempre no mesmo local, há tantos anos que já   tinha perdido o conto.

Era às segundas-feiras que a freguesia abundava e havia sempre algum novato a iniciar-se nas lides do alheio ou um já batido, a tentar a sua sorte na confusão.

O azar batia-lhes à porta, tão depressa e tão certeiro, que nem eles esperavam. Uma maçã, laranja ou a fruta que ele estivesse a vender, era arremessada com tal precisão que se esborrachava nas suas cabeças ouvindo-se quase em simultâneo dois gritos:

- Ora toma -gritava o vendedor enquanto atirava.

-Ai – queixava-se o abafador, após apanhar com a fruta.

Tratando-se do tal bairro especial, recorde-se de que abundavam os viciados no roubo, depressa engendraram uma forma mais adequada de se apossarem do que não era deles.

Os roubos passaram a ser executados por dois meliantes. Um fazia a vezes de avançado e o outro de guarda-redes. Roubavam e ainda tinham o bónus da fruta que o vendedor atirava e o especialista encaixava.

O vendedor depressa engendrou o contra-ataque. Trouxe o boxer que tinha em casa e à ordem de avançar, mordia o que os ladrões tinham pendurado no meio das pernas. Com a atrapalhação, não apanhavam a fruta a tempo e levavam em cheio com ela.

Como a necessidade aguça o engenho, os viciados rapinaram coquilhas numa loja de desporto, e lançavam-se à fruta, com todo o à-vontade.

As ordens para o boxer mudaram:

- Morde o rabo!

E as reuniões dos meliantes, passaram a ser feitas de pé, numa praça, à vista de todos, uma vez que não conseguiam sentar-se.

 

Jorge C. Chora

22/12/2021

sábado, 18 de dezembro de 2021

DIZEM QUE DISSE


Dizem ter dito

e eu não disse,

nada do que disseram.

Afinal quem disse

o que eu não disse?

Alguém disse

que tu disseste

aquilo que agora dizes

não ter dito

e na altura disseste!

Mau, já vos disse

não ter dito,

o que disseram

que eu disse!

Entendido, não disseste

o que disseste,

dás o dito por não dito.

Não! quem disse que eu

disse o que não disse,

não conseguiu que eu dissesse

o que eu nunca disse!

Será que disse? Já nem sei

o que disse, de tanto

dizerem que disse

o que não disse!

 

Jorge c. Chora

18/12/2021

quarta-feira, 15 de dezembro de 2021

CONSELHO NUPCIAL


Se delicado(a) não for,

os seus dependentes

não souber acarinhar,

e no lugar do outro

evitar colocar-se,

recuse-o(a) como amigo(a),

como namorado(a),

e muito menos,

isso nem pensar,

como esposa ou marido!

 

Jorge C. Chora

15/12/2021

domingo, 12 de dezembro de 2021

A MATA-SETE

 


Ela só calça louboutins,

saltam-lhe as notas

dos bolsos,

e cada passo dado

é ritmado pelo tilintar

de muitas moedas.

Interiormente,

é feia como o diabo,

mas recusa todos os dias

um cabaz de namorados,

desejosos de com ela casar,

não sem antes

tirar as medidas a todos os recusados.

Os interessados interesseiros,

como dela casamento não conseguiram,

alcunharam-na de Mata-Sete,

e ela acha graça,

pois tendo matado mais de vinte,

quase se sente uma menina,

 com a fama de no papo ter só sete.

 

Jorge C. Chora

12/12/2021

quarta-feira, 8 de dezembro de 2021

A MINHA TIA- AVÓ


A minha tia-avó Ivana, há muito falecida, era pequena e leve como uma pena. O vento só não a levava porque ela não gostava de voar e tinha decidido ficar em terra, custasse o que custasse.

Para além da sua estatura, tinha um sinal no nariz, que lhe dava um ar travesso, talvez, como direi, um aspeto de pequena bruxa boa. Era dotada de um feitio especial e nunca se irritava: resolvia tudo a bem e o que não tinha remédio, remediado estava.

Adorava a criançada e nunca ralhava, aliás, como já disse, mas reforçar este aspeto, no caso dela, não é demais, como fica comprovado no episódio que vou contar e que me contou o meu pai, também há muito falecido.

Um dia a minha tia Ivana, não sei por que razão, teve de dar almoço a uma caterva de netos, sobrinhos e alguns dos seus amigos.

Sabia por experiência própria que a gaiatada adorava bifes, com batatas fritas e ovos estrelados.

À medida que fritava as batatas e as ia colocando numa enorme travessa, os miúdos entravam à vez na cozinha, iam comendo e saindo à socapa ou pelos assim achavam eles.

À hora da refeição, vieram os bifes, os ovos estrelados e a grande travessa de batatas fritas. Ficaram todos a olhar para a travessa: ela só tinha meia dúzia de batatas.

-Só isso? Tão poucas para tantos?

Impávida, a tia Ivana, contrapôs:

-Fritei tantas batatas quantas cabiam na travessa! Os meninos já as comeram na cozinha!

E a miudagem desencadeou um rol de críticas e acusações mútuas:

-Tu é que comeste mais…

-Eu? Só fui três vezes à cozinha…

-O que interessa não são as vezes que foste, mas a quantidade que comeste…

E a discussão ia já longa, quando a tia resolveu intervir:

-O que não tem solução solucionado…

-Solucionado está! - completaram em uníssono os comilões.

Então, para o futuro, para que o problema não se repita, o que é preciso fazer?

-Ninguém entra na cozinha para comer o almoço, antes deste ir para a mesa.

E nunca mais faltaram batatas fritas, nos dias dos bifes, batatas fritas e ovos estrelados.

A sapiência dos antigos era assim.

 

Jorge C. Chora

8/12/2021

domingo, 5 de dezembro de 2021

GRATIA PLENA

O café estava localizado a um passo da igreja.  Abrira recentemente e pretendia homenagear a Virgem Santa, da qual o proprietário era devoto. Podia ter-lhe dado o nome de “CHEIA DE GRAÇA”, mas achou que era mais fino intitulá-lo, em latim, de “GRATIA PLENA” e assim ficou.

Cada cliente que de lá saía, vinha cabisbaixo e a murmurar algo impercetível.

O vendedor ambulante, cujo poiso de vendas ficava quase à porta do estabelecimento, andava intrigado: não conseguia decifrar, por mais que se esforçasse, o que eles diziam.

Um dia encheu-se de coragem e quando um homem, ainda jovem, de lá saía e murmurava misteriosamente algo, lhe perguntou:

-Peço-lhe imensa desculpa, mas estou curioso… - e explicou-lhe que todos os que de lá saíam, murmuravam palavras ou frases misteriosas- Afinal o que significam? O que se passa?

E o senhor mostrou-lhe a fatura que tinha pagado por um café e um bolo…

-O vendedor arregalou os olhos e sem querer soltou, bem alto, um palavrão que se ouviu na esquina.

-Pois é meu amigo, eu sou mais contido e roguei à Virgem que rogasse por mim!

E vinha a sair nesse momento um senhor idoso, usando um colarinho clerical, que de mãos na cabeça dizia:

“…ora pro nobis peccatoribus nunc et in hora mortis nostrae, Amen”

E o jovem, sorrindo, informou o vendedor:

- O senhor padre deve ter recebido a conta do almoço e traduziu a frase, recordando-se dos seus tempos de seminarista:

“… Rogai por nós pecadores, agora e na hora da nossa morte, ámen”

E o vendedor ambulante, a partir daí, ao ver o padecimento dos clientes,

mostrava a sua solidariedade, dizendo, convicto, após os seus murmúrios: ámen.

Jorge C. Chora

5/12/2021

quinta-feira, 2 de dezembro de 2021

AS PATRANHAS D'OUTRORA


O dia pedia praia e Filipe não se fez rogado. Agarrou na toalha, vestiu o fato de banho, foi buscar a bengala e, num pulo, como quem diz, estava na praia.

Ficou perto de um casal desconhecido, com um miúdo de cerca de dez anos. Mais à frente, mas perto, duas amigas, a Laura e a Isabel, bem mais novas do que ele, já se douravam ao sol, como verdadeiras nudistas que eram.

Ao verem o amigo Filipe, acenaram-lhe. Laura levantou-se e foi ter com ele, nua, tal como estava, a pedir-lhe lume para acender o cigarro.

João, assim se chamava o miúdo, como Filipe veio saber, ao ver Laura exclamou:

-Não acredito! A senhora não tem um caranguejo naquele sítio! Que mentiroso!

O pai, surpreendido, perguntou ao filho:

-Que história é essa?

- O Victor lá da escola, diz que as mulheres têm um caranguejo …! – e nem terminou a frase, tal a indignação de ter vindo a ser ludibriado.

-Não meu filho…-ensaiou o pai.

E não teve tempo para mais nenhuma explicação, pois uma gargalhada monumental atroou os ares e interrompeu a tentativa de explicação do pai.

Era o Filipe que tremia de riso e mesmo assim, conseguiu pedir desculpa:

-Vocês desculpem-me, mas também eu, há mais de cinquenta anos, tinha um colega, o Zé das Petas, que que nos contava essa patranha do caranguejo!

E o João, furioso e vermelho, antecipava o momento de reencontro com o Victor:

-Eu dou-lhe o caranguejo…

Jorge C. Chora

2/12/2021