O PAI
I
Manuel e Rui eram amigos de longa data. Trabalhavam na mesma obra e viviam na mesma casa. Manuel tinha alugado um quarto na sua casa, ao seu amigo de infância. Filomena, a mulher de Manuel, era também da mesma aldeia e tinham andado todos na escola primária,onde tinham sido colegas de turma.
Após o trabalho, os amigos apressavam-se a ir buscar Filomena para uma ida ao café, e logo após a refeição, voltavam para tomarem a bica e conversarem com alguns amigos e conhecidos lá do bairro.
A vida corria-lhes tranquila , sem sobressaltos, numa rotina agradável.
Naquela terça-feira,o casal levantou-se cedo,tomaram o pequeno almoço quase a correr e com os olhos a brilhar, comunicaram ao Rui que o Manuel ia mais tarde para o emprego.
Rui,embora curioso, absteve-se de perguntar o motivo. Se os amigos não queriam dizer-lhe, era porque era um segredo que ao casal dizia respeito. Também não estava nada preocupado pois sabia que nesse mesmo dia, ficaria inteirado do que se passava, pois eles à noite contar-lhe-iam. Vira o amigo comprar uma série de bilhetes de lotaria. Era bom que lhes tivesse saído qualquer coisa que se visse. Fingiu estar de beicinho e o casal alinhou na brincadeira:
- Não sejas cusco …
Rui foi para a obra sozinho. Estavam a montar andaimes e de seguida iriam levar material para os andares superiores.
Manuel apareceu cerca das onze horas. Trazia um sorriso do tamanho do mundo. Transbordava de felicidade a olho nu. Rui, ao vê-lo naquele estado, ficou contagiado, mesmo sem saber o que se passava.
-Olha, nem sabes… - e não terminou a frase – um enorme barrote caiu do 5º andar, mesmo em cima do Manuel, desfazendo-lhe a cabeça.
II
Quando Filomena viu o Rui àquela hora da manhã sem o Manuel, soube de imediato que algo
de grave se passara.
Ela não disse uma palavra ao ouvir a notícia. As lágrimas correram-lhe semanas a fio. Rui escondia-se nos cantos da casa e chorava a morte do seu amigo e irmão. Manuel era como um irmão.
A tristeza de Filomena metia dó. Ao fim da quarta semana,ela desabafou:
- E logo agora que o Manuel ia ter maior alegria da sua vida…
Rui nada disse. Esperou que Filomena completasse a frase.
E Filomena repetiu:
-E logo agora que o Manuel ia ter a maior alegria da sua vida…
E Rui esperou de novo que ela recomeçasse,agora já um pouco impaciente,pois adivinhava algo muito importante.
-Estou grávida...Manuel ia ser pai…
Rui desabou. Compreendia agora a alegria do seu amigo!Morreu no momento mais feliz e importante da sua vida e da sua Filomena!
III
Rui não deixou que nada faltasse a Filomena. O mais difícil foi que ela aceitasse casar-se grávida, mas o facto do filho vir a nascer com um pai vivo,levou-a a agradecer e a aceitar a proposta de Rui.
Quando António nasceu, foi registado como filho de Rui e Filomena.
O casamento de Rui e Filomena só se consumou passados dois anos de casados. Foi só quando ambos se deixaram de sentir como irmãos e começaram a sentir-se atraídos como namorados, que a lua de mel se concretizou. Naquela tarde de Verão,ela aproximou-se dele e murmurou-lhe docemente ao ouvido:está na hora meu querido.
A delicadeza e a doçura de Rui, fizeram com que Filomena o amasse tanto como ele a amava.
O amor de Rui por ela foi tão grande, que respeitou o difícil pedido de Filomena, de não ter mais filhos para se poder dedicar por inteiro ao filho do Manuel. Rui vacilou mas percebeu a preocupação de mãe.
António foi educado com carinho , segurança e bons valores, por ambos.
Aos vinte anos já alcançara uma boa posição na pequena mas sólida empresa, de que viria a ser mais tarde o sócio principal.
IV
No dia que fez vinte e um anos e se tornava legalmente um adulto emancipado, Rui deu-lhe o dinheiro que levara a vida a juntar, para que ele conseguisse dar uma boa entrada para comprar uma casa. Deu-lhe um abraço apertado e disse-lhe:
- Há uma coisa muito importante que tens de saber. Eu e a tua mãe…
só te contamos porque há pessoas que sabem...não queremos que saibas por estranhos...
António franziu o sobrolho. Aquilo não lhe estava a agradar.
Ouviu sem respirar a história que os seus pais lhe contaram e reagiu:
-Ó pai porque é que me contaste isto! Não quero outro pai a não ser tu!Foste e és o melhor pai do mundo!
Rui viria a falecer anos depois e foi sepultado ao lado da campa de Manuel. Filomena, quando a sua hora chegou, ficou numa campa,que ela tinha previamente comprado, localizado no meio dos dois.
Jorge C. Chora
29/05/2021