sexta-feira, 27 de julho de 2018

A MINHA AVÓ ELEONORA



A minha avó Eleonora, de seu nome completo Eleonora D ’Abreu Ramos da Silva, viveu a maior parte da sua vida na Ilha de Moçambique. Era casada com um militar, o meu avô, e tiveram seis filhos, um dos quais, era a minha saudosa e falecida mãe Regina.

Ontem,26/7/18, faleceu a sua irmã mais velha, Branca Ramos da Silva Pereira e agora só me sobeja a minha tia Odete, a quem desejo mais saúde e força .

A minha avó Eleonora era um espanto. Ficou surda muito nova, após ter contraído uma constipação de alto lá com ela. Adorava conversar e tinha imensa pena de não conseguir ouvir. Lia os lábios dos interlocutores.

Na sua ânsia de escutar, nunca recusou testar aparelhos auditivos. Quando lhe perguntavam se já estava a ouvir com o novo aparelho que estava a testar, dizia logo que sim. Os médicos, alertados para as suas competências de leitura labial, colocavam-se nas suas costas e falavam-lhe. Era o mesmo que nada. Nunca conseguiu ouvir bem. Com muita pena sua, teve sempre de ler os lábios.

Ria com facilidade e o seu humor era contagiante e notável. Um dia, em Lourenço Marques, resolvemos, eu e o meu irmão, dizer-lhe que havia um cavalheiro de idade que rondava a casa e nós julgávamos que ele estivesse interessado em conhecê-la. Acrescentámos que o senhor era um militar e suspeitávamos que fosse um general…

- Oh! Um general? Coitadinho…ainda se fosse um tenente! - e ria-se a pensar no seu falecido marido, meu avô, um tenente coronel de antanho, que a encheu de filhos e morreu cedo.

Quando lhe nascia um bisneto(a) exclamava:

-Linda(o)! Também não tinha a quem sair feio!

Eleonora era muito meiga e beijoqueira. Adorava os netos e extasiava-se com os bisnetos, embora não os visitasse com a frequência desejada, pois mal conseguia andar. Morreu como viveu: com um sorriso nos lábios, enfrentando todas as adversidades.

Jorge C. Chora

27/7/18





terça-feira, 24 de julho de 2018

O MENINO E O CARANGUEJO


Com a cacimba
por agasalho
e o luar como companhia,
uma criança
à beira-mar viu
e sorriu a um caranguejo,
que fugia de uma onda do mar
e convidou-o:
--Anda para ao pé de mim,
que não te faço mal,
tomara eu que não me façam
 o que julgas
que te farei a ti.
E ao luar ficaram,
lado a lado,
como velhos amigos,
o menino e o caranguejo,
 até ao nascer do sol.

Jorge C. Chora
     24/7/18

segunda-feira, 23 de julho de 2018

LOUISE E IVANA


                                                 

Ivana e Louise eram irmãs, sendo Louise, a minha avó e Ivana a minha tia-avó. Estavam juntas todos os dias. À hora do lanche, pelas quatro da tarde, mais pontual do que o Big-Ben, Ivana aparecia. Morava talvez a uns duzentos metros.

Nos dias de muito vento, a deslocação era problemática. A minha tia-avó era muito pequena e leve como uma pena. Cosia-se de modo estratégico aos muros existentes entre a sua vivenda e a da sua irmã. Parava quando a ventania era mais forte e avançava com precaução quando ela abrandava. O certo é que chegava sempre, sem delongas nem desculpas, às quatro em ponto.

A minha avó era mais alta do que a irmã, mas tão magra como ela, embora um tudo nada, menos leve.

Tia Ivana era um doce. Tudo estava bem para ela. Nunca me lembro de a ter visto zangada ou dizer algo mais ríspido. Contou-me o meu falecido pai, que ele e os(as) primos(as), quando eram muito jovens, adoravam estar com a tia e almoçar em sua casa.

Enquanto ela cozinhava, iam passando pela cozinha e tirando batatas fritas ou que lhes apetecia, a seu belo- prazer, sem que ela os repreendesse uma vez que fosse. À hora da refeição, vinha para a mesa exactamente o que tinha sobrado. Disciplinaram-se num ápice. Não ralhou, ameaçou ou gritou. Era assim a minha tia-avó.

A minha avó era diferente. Para ela existiam regras e irritava-se, se algo acontecia fora delas. Não havia mas nem meio mas. Ela mandava e estava tudo dito. Havia horas para tudo. O meu avô era militar e ela habituara-se a governar a casa desse modo, mesmo após o seu falecimento.

O seu ritual nocturno, antes de dormir, impressionava-me. Arranjava as suas longas tranças com todo o cuidado, como se tivesse de ir a qualquer lado. Colocava o pó de arroz e fazia o resto da toillete. A primeira vez que a vi a preparar-se assim, perguntei-lhe porque o fazia e ela respondeu-me:

-Se eu morrer, não dou trabalho a ninguém, para além de saber como vou!

Na cozinha mandava ela e muito bem. Só de pensar nos seus pitéus, cresce-me a água na boca. Havia um senão: sopapos para quem deixasse comida no prato, principalmente para quem tinha tido mais olhos do que barriga ou falasse sem autorização. Havia também, verdade se diga, distribuição de belos chocolates pelos netos, com conta peso e medida. Descobrimos o esconderijo e havia aquilo que designávamos com o assalto ao comboio: comíamos muitos mais do que aqueles que ela tencionava dar-nos. Hoje suspeito que ela sabia perfeitamente das nossas tropelias, mas fazia vista grossa.

Tempos que já lá vão, numa cidade onde a terra e as acácias eram vermelhas!

Jorge C. Chora
23/7/18




sexta-feira, 20 de julho de 2018

A MULHER QUE REBUSNAVA


                                               
 Rebusnava e banhava de perdigotos os comensais: ora era o calor, ora era o aperto ou ainda a qualidade dos que tinham a infelicidade de a suportar. Queixava-se de tudo.

Produzia esgares à mesma velocidade com que estalava a língua e “tocava a burros”. De início, os que a rodeavam, fingiram não perceber, não ouvir e nada diziam.
Com a continuação do estranho concerto, o senhor que a acompanhava, o irmão, aconselhou-a:

-Se já almoçaste, aproveita e vai cumprimentar a família real…

-E onde é que ela está?

-Na tua barriguinha, querida mana… e não lambuzes a mão à princesa que é de mau tom.

Levantou-se, fez algo que ainda hoje se está para se saber se era uma vénia ou um trejeito e recuou até à mesa seguinte, onde quase derrubou a terrina da sopa.

-Oh! obstáculos no meio do salão….

E a criadagem da taberna apressara-se a trazer uma esfregona e um balde para que ela minimizasse os danos que eventualmente provocara.

Perdeu a oportunidade de cumprimentar a família real que saiu sem dar por ela, mas não se deu por achada: no dia seguinte, à mesma hora, entrou na refrega para apanhar um lugar nas longas mesas da tasca, onde a refeição completa era a seis euros.

Jorge C. Chora
   20/12/18



domingo, 8 de julho de 2018

A OFERTA



Fazia inveja ao mais pontual dos ingleses. À mesma hora, passava à porta da loja, com o seu cão e deixava que ele fizesse as suas necessidades, num pequeno montinho de ervas. Ia-se depois embora, sem limpar o local, como se nada fosse com ele.

Naquele dia, como sempre, quando se preparava para deixar o cão aliviar o intestino, a simpática dona da loja chamou-o:

-Se não se importa, entre…deixaram aqui um presente para o senhor…

-Para mim !? -surpreendeu-se o dono do cão- Quem deixou?

-Olhe, para lhe dizer a verdade, a senhora limitou-se a entregar-me a encomenda com a especial menção de lha entregar em mão…

O senhor recebeu a encomenda, um enorme embrulho, com um laço azul Desembaraçou-se do cordel que a envolvia e abriu-a. Um cheiro nauseabundo empestou o ar.

-O que vem a ser isto?-questionou com um ar enojado o dono do cão.

-São os presentes do seu cão. São só os desta semana! Não me diga que não gosta? São do seu cão…pode levá-los à confiança…

Agora, sempre que o homem finge esquecer-se de apanhar os cócós, há sempre quem o recorde:

-Olhe a prenda…

Jorge C. Chora
   8/7/18

sexta-feira, 6 de julho de 2018

FEIJOADA,SÓ MESMO QUENTINHA!


                        
 Na fila do “self­-service”, sempre que um cliente parava para se servir, uma senhora agarrava no seu tabuleiro e passava-lhe à frente.

Sempre que ela se servia e parava, os clientes ultrapassados retomavam os seus respectivos lugares.
Os olhos da mulher faiscavam e tornava, de forma ostensiva, a ir para os lugares que nunca tinham sido seus.

Quando chegou à caixa de pagamentos, lembrou-se de que lhe faltava o arroz doce e voltou atrás. Ao regressar, todos os que tinham perdido o lugar de modo abusivo, estavam à sua frente.
Os olhos chispavam. Um casal que já a conhecia de ginjeira e que ficara colado a ela, levantou o tabuleiro com a refeição e pediu-lhe:

-Se não se importa, por favor, aqueça-nos a feijoada…basta olhar para ela…

-Aqueço os pratos? O que quer dizer? - e enquanto olhava para a comida, ela começou a fumegar.

-Muito obrigado -agradeceu o casal que gostava da feijoada quentinha.

Se Deus desse a todas as megeras o mesmo dom que deu a esta, que bom seria passar a contar com elas!

Jorge C. Chora
     6/7/18



quarta-feira, 4 de julho de 2018

OS SAPATOS DE VERNIZ VERMELHOS


                           
 Desde que os viu, apaixonou-se pelos sapatos de verniz vermelho. Comprou-os. Foram e ainda são a sua paixão. Usou-os sempre que lhe foi possível. Hoje teve uma enorme desilusão: o sapato do pé direito rompeu-se na parte da frente.

Mirou-o e remirou-o. Não acreditou, nem aceitou, que se tivessem estragado. A ideia de ter de deixar de os usar, tornou-se insuportável.

Foi buscar o verniz vermelho e pintou as unhas do pé direito. Calçou o sapato, mexeu os dedos e deu-se por satisfeita:

-Quase não se nota…com sorte ninguém vai reparar!

Por favor, se vir alguém, com as unhas  dos pés pintadas de vermelho a saírem de um sapato  de verniz também vermelho, finja que não viu nada.

Jorge C. Chora
4/7/18




domingo, 1 de julho de 2018

NA BRANCA FOLHA



Na branca folha
bailam letras,
sílabas,
palavras
e frases,
beijos que selam
amizades e amores.
Na alva folha,
floriram beijos
e oxalá selem,
futuras
amizades e amores.

Jorge C. Chora
 1/7/18