domingo, 29 de janeiro de 2017

O"ABATANADO"

O “ABATANADO”
 Alcunharam-no de “Abatanado”, embora se chame Rafael. Desconfio que ele próprio já se esqueceu  do seu verdadeiro nome. A razão de o terem rebaptizado é simples: é o que mais pede que lhe paguem:

-Pagas-me um abatanado?

Não se aborrece se lhe recusam o pedido e substitui-o por outro:

-Dás-me dez cêntimos que me faltam para comprar um cigarro?

Nos intervalos da pedincha, cavalga  a sua bicicleta pelas ruas da Amadora, debitando em alta gritaria, músicas paridas por um grande rádio, protegido por uma caixa de plástico tubular, pendurado no guiador da ginga ou a tiracolo.

 Com o rádio protegido da chuva ou da inclemência solar, assenta arraiais, frente a uma churrasqueira, por sinal sempre a mesma, onde ninguém o maltrata. Arruma no beiral de uma janela o seu aparelhão de som, acompanhado por outros mais pequenos. Embebe-se de sonoridades, sejam elas quais forem, e dança, esquecendo-se do tempo, até que alguém lhe pague uma taça ou tenha a sorte de lhe oferecerem um abatanado. Sorri, sorri quase sempre, mostrando os poucos dentes que ainda lhe sobram, não condizentes com os vinte e cinco anos que tem.

Um idoso, enquanto  Abatanado pede cinco ou dez cêntimos para comprar um cigarro, cata beatas na rua. Ele não o faz. Na rua vive ele, numas arcadas de um prédio demolido mas não fuma beatas apanhadas na rua, como o senhor bem vestido, que em fim de vida passa o tempo a apanhá-las para poder fumar.

Aproxima-se um outro grupo e “Abatanado” avança, devagarinho como de costume, a ver se lhe chegam a brasa à sua sardinha:

-Pagas-me um abatanado?

E mesmo que nada lhe dêem, sorri.


Jorge C. Chora

terça-feira, 24 de janeiro de 2017

UM JORNAL MUITO REPETITIVO



Lia o jornal de fio a pavio. Protegia-o como se de um tesouro se tratasse. De duas em duas horas relia-o, pois havia sempre uma ou outra notícia que lhe podia ter escapado.

Detestava os colegas que lhe observavam o jornal por cima do seu ombro e irritava-se solenemente, quando um lhe pedia os classificados, outro as páginas do desporto e ainda um terceiro, a parte dedicada à cultura.

Um belo dia entrou um novo colega e esse, batia todos os restantes nos seus pedidos:

-Já leu, não é! Empresta-mo?

O novato retinha o matutino o resto do dia. Como não tinha coragem de lhe dizer que não, passou tormentos, por ficar uma boa parte do tempo sem ele. Após muito pensar, lembrou-se de algo, com o objectivo de se livrar de tão incómodo hábito.

Quando o novato lhe cravava o jornal, ele estendia-lho de imediato, com um sorriso nos lábios, como se nada lhe custasse emprestá-lo.

Ao fim de um mês, os pedidos de empréstimo cessaram. O dono do matutino, como se estivesse muito surpreendido, questionou-o:

-Então…fartou-se de ler as notícias?

-Por incrível que pareça, foi isso mesmo que aconteceu! Pareciam-me sempre as do dia anterior!

Não fosse o diabo tecê-las e o novato tornar ao velho costume, o jornal já estava preparado para ser emprestado: a capa era a do jornal do próprio dia e o interior constituído pelo jornal do dia anterior.


Jorge C. Chora

quarta-feira, 18 de janeiro de 2017

TER ASAS E NÃO VOAR



Ter asas e não voar
é como ter pernas
e não saber andar.
Para que servem as asas
e também as pernas
se recusarmos usá-las?
Bem pior do que não
as ter, é tê-las
e evitarmos usá-las,
por puro medo de falhar
ou, pior ainda,
por pura preguiça!
Observa o voo do albatroz  
ou a locomoção do caracol.
Mas o caracol não
tem pernas, dir-me-ás.
Pois não, mas mesmo assim anda!
E o albatroz? coitado !
Mas voa!


Jorge C. Chora

segunda-feira, 16 de janeiro de 2017

O MÉDICO QUE ACERTAVA SEMPRE


Na taberna, lá para as bandas de Alenquer, D. Alice, enquanto servia um branco ou um tinto, ia-se descuidando com estrondo e sem rebuço.

Quem a conhecia não estranhava e acabava por nem dar por isso, tamanho era a habituação ao estranho costume . Uma vez por outra, aparecia um cliente, não habitual, que arqueava as sobrancelhas perante os gases da proprietária.

Nessas ocasiões, D. Alice enchia-se de paciência e explicava:

-O Dr. Amaral, o meu médico, farta-se de me dizer para nunca guardar o que não me faz falta. Como o tenho em grande conta, jamais me passou pela cabeça desobedecer-lhe.

E sublinhava o esclarecimento com um traque gigante, que no verão tinha o condão de afugentar as moscas que teimavam em entrar-lhe no estabelecimento.

O Dr. Amaral era um santo para a população e gozava da fama de acertar sempre, em relação às grávidas, se elas teriam um rapaz ou uma rapariga. O exame era demorado. Palpava as barrigas de uma forma cuidadosa, muito demorada e, por fim, vaticinava:

-É um rapaz!

Enquanto isto dizia, registava na ficha o contrário do que tinha dito: rapariga.

Quando a criança nascia, caso fosse rapaz, estava tudo certo. Se tivesse nascido uma rapariga, ele mostrava a ficha e esclarecia:

-Está aqui, preto no branco, que era uma rapariga!


Jorge C. Chora

quinta-feira, 12 de janeiro de 2017

HIPOCRISIA


Imagens de crianças e
pessoas mortas,
à bomba e à metralha,
e em acidentes vários,
povoam jornais,
esgotam edições,
são cabeçalhos de revistas,
e sanguinolentas
aberturas de telejornais.
Também despertam,
verdade se diga,
a atenção para as chacinas
em guerras sem fim à vista.
Uma bola vermelha
no canto direito do ecrã,
resolve os pruridos do censor,
que as apresentam um sem
número de vezes, atestando
a desumanização em que
a humanidade caiu.
Uma mulher surge nua,
 saudável e bela
e eis que saltam,
tarjetas pudicas
que ocultam a púbis
e os seios,
como se de uma
peste mortífera
se tratasse, sepultando
a visão natural
no mais recôndito
e fétido buraco da censura.
Chegam a vestir-se esculturas
da época clássica,
referências culturais
do Ocidente,
para que não ofendam
os radicalismos retrógrados,
produto de religiosidades
 doentias e caducas
que só promovem
a intolerância e o retrocesso
cultural.
Impõe-se, desde já,
o regresso aos
valores humanos, à
civilização, e porque
não, ao nú, que nos
recorda que o Homem
não é só barbárie
e ainda pode
voltar a viver
sem ser de cócoras.


Jorge C. Chora

domingo, 8 de janeiro de 2017

A MORTE DE UM HOMEM GRANDE


Deu a cara,
ofereceu o peito
e prescindiu da sua
própria liberdade
nos combates
contra o regime único e
em prole da democracia.
Nunca pactuou com
tutelas, viessem elas
da direita ou da esquerda
anti- democráticas
e totalitárias.
Lutou por ideais,
dignificou Portugal,
honrou e foi honrado
pelos adversários,
ignorou as ignomínias
de inimigos rastejantes.
Morreu um Homem Grande,
um verdadeiro democrata,
Mário Soares de seu nome.
Viva a liberdade e a democracia.


Jorge C. Chora