O “ABATANADO”
Alcunharam-no de “Abatanado”,
embora se chame Rafael. Desconfio que ele próprio já se esqueceu do seu verdadeiro nome. A razão de o terem
rebaptizado é simples: é o que mais pede que lhe paguem:
-Pagas-me um abatanado?
Não se aborrece se lhe recusam o pedido e substitui-o por
outro:
-Dás-me dez cêntimos que me faltam para comprar um cigarro?
Nos intervalos da pedincha, cavalga a sua bicicleta pelas ruas da Amadora,
debitando em alta gritaria, músicas paridas por um grande rádio, protegido por
uma caixa de plástico tubular, pendurado no guiador da ginga ou a tiracolo.
Com o rádio protegido
da chuva ou da inclemência solar, assenta arraiais, frente a uma churrasqueira,
por sinal sempre a mesma, onde ninguém o maltrata. Arruma no beiral de uma
janela o seu aparelhão de som, acompanhado por outros mais pequenos. Embebe-se
de sonoridades, sejam elas quais forem, e dança, esquecendo-se do tempo, até
que alguém lhe pague uma taça ou tenha a sorte de lhe oferecerem um abatanado.
Sorri, sorri quase sempre, mostrando os poucos dentes que ainda lhe sobram, não
condizentes com os vinte e cinco anos que tem.
Um idoso, enquanto Abatanado
pede cinco ou dez cêntimos para comprar um cigarro, cata beatas na rua. Ele não
o faz. Na rua vive ele, numas arcadas de um prédio demolido mas não fuma beatas
apanhadas na rua, como o senhor bem vestido, que em fim de vida passa o tempo a
apanhá-las para poder fumar.
Aproxima-se um outro grupo e “Abatanado” avança, devagarinho
como de costume, a ver se lhe chegam a brasa à sua sardinha:
-Pagas-me um abatanado?
E mesmo que nada lhe dêem, sorri.
Jorge C. Chora