segunda-feira, 18 de abril de 2011

Não diga a ninguém...

Saltava no meio da multidão que aplaudia o chefe. Abanava-se, num frenesim, vivendo a apoteose como se ela se destinasse a si próprio. Sentia que um dia podia chegar longe. Argumentos não lhe faltavam. Aprendera a liderar assembleias. Exímio a cortar a palavra a quem incomodava, a desviar assuntos incómodos, a convocar reuniões às ocultas, tornou-se indispensável a quem mandava. A todo esse capital de artimanhas, somava uma boa presença e uma lábia incomensurável. Foi subindo, chegou a um lugar de destaque de uma instituição, infiltrou-se nas autarquias, transformou-se numa pessoa mais ou menos grada mas nunca o deixaram chegar a figura de primeiríssimo plano. Recebeu milhares de euros a que por descaso, ganância, quiçá incompetência, foram sumindo e nunca foram devolvidos a quem lhe pediu reembolsos. Nunca disse que não pagava mas nunca pagou. Desapareceu de circulação.

No meio da festarola dos apaniguados, um credor viu-o aos saltos. Gritou que nem um desalmado mas o barulho impediu-o de ser escutado. Furou pelo meio da multidão. Deu cotoveladas à esquerda e à direita, foi empurrado e empurrou, finalmente chegou ao pé do almejado e não esteve com meias medidas:

- Onde está o meu dinheiro?

-Calma…não o tenho aqui…

-Quando é que me paga o que me deve a mim e aos meus familiares?

-Bom…é que eu não sou o responsável…

Antes que a situação se descontrolasse, o credor contou até dez, respirou fundo, encheu-se de paciência e perguntou:

-Qual é a treta que me vai querer impingir desta vez?

-Acredite ou não, vou dar-lhe a morada do responsável. Está na campa 72…

Nesta fase da”explicação” o credor ponderou seriamente em deixá-lo sem dentes. Apercebendo-se disso o prestidigitador retomou a palavra:

-Sim, morreu e está na campa 72. Ele é o único culpado da situação, se quiser pode…

-Falar com ele? – interrompeu-o, furioso, o credor.

-Sim…tenho uma amiga que é médium …diga-lhe que vai da minha parte…mas não diga a mais ninguém…

Jorge C. Chora

sexta-feira, 8 de abril de 2011

Ai mano velho!

Após um dia de trabalho insano, já quase à porta de casa, depara com uma senhora com aspecto tão cansado como o dele. Ela faz-lhe sinais para parar. Hesita mas resolve praticar a boa acção do dia e pára o carro.

-Em que posso ajudá-la minha senhora?

-A paragem de autocarros é longe?

-Não … é relativamente perto…

-Se me levasse lá… - suplica-lhe com um ar de cachorrinha abandonada.

Condói-se a boa alma, não sem que antes tenha tentado esquivar-se, pois morava mesmo ali ao pé e não lhe dava jeito nenhum levá-la.

Pára no local indicado e deseja-lhe a continuação de uma boa tarde. A mulher lacrimeja, diz que está muito cansada e pede-lhe que a leve até casa, a um lugarejo que distava uns quilómetros dali.

O bom samaritano começa a aborrecer-se e por mais que insista ela não sai. Sente-se forçado a conduzi-la, perante as lágrimas que não cessam.
Quase a chegar ao destino a passageira desata a soluçar.

-Mas o que foi agora? - interroga-a, impaciente.

- É que preciso de medicamentos …só me faltam 5 euros…

Farto da situação puxa da carteira mas para seu azar só tinha uma nota de dez. Dá-lha.
Ela volta à carga:

-Também preciso de ir à padaria…se me desse…

O caldo entornou-se.

-Também quer que lhe vá fazer o jantar?

-Já agora…se for possível… - e sai, sem sombra de cansaço, em passo ligeiro, fresca que nem uma alface, lançando gritos que atroaram os ares:

-Iuu…iuu …iuuuu

E os burricos que estavam na pracinha, ao ouvirem os poderosos zurros, arrebitaram as orelhas e disseram para os seus botões:

-Ai mano velho… ela já te passou a perna!

Jorge C. Chora

terça-feira, 5 de abril de 2011

À procura de Afonso

São quinze horas e Manuela sai apressada do metro. Precisa de se dirigir, com urgência, à rua da Joaninha. Leva como missão contactar o sr. Afonso, pessoalmente. Não pode ser de outro modo. As instruções são rigorosas: entregar-lhe a documentação que leva, esperar que ele a analise e trazê-la assinada, se possível.

Desconhece a cidade mas sabe que é naquela estação que tem de sair. Calcula que seja fácil chegar à direcção que procura. O nome da rua é diferente do normal, toda a gente a deve conhecer por aquelas bandas. Tem cerca de uma hora para levar a bom termo o seu trabalho.

Aproxima-se da primeira pessoa com quem se cruza. Vai informar-se onde fica a rua que procura:

-A senhora dá-me … e fica com a pergunta a meio, porque ela se afasta como se estivesse na presença de uma leprosa numa fase terminal.

-O senhor dá-me… o senhor dá-me…por favor … - e um a seguir a outro, todos se afastam sem sequer a olharem, nem dizerem nada.

Começa a desesperar-se. Tinha passado a hora e não conseguira pura e simplesmente, uma reles informação. Entra num estabelecimento e não consegue melhor resultado:

-Tem de esperar pela sua vez… - e ela olha para a longa fila e sai.

De novo na rua, tropeça num homem apressado, que fedia a aguardente ordinária. Cai desamparada e os seus papéis espalham-se pelo chão.

-O senhor dá-me…

-Dou-te uma … - e dispara um chorrilho de asneiras e propostas infames, seguindo o seu caminho.

Levanta-se a custo, com os joelhos esfolados. Coloca as mãos nos rins e ajuda-se a endireitar, quando vê uma placa suja e gasta com o nome que procurava. Dá graças a Deus. Procura o número da porta e encontra-o com facilidade.

Entra pela luxuosa porta e encontra-se numa sala ampla, recheada de secretárias. Ao fundo, rodeado de funcionários, estava o homem que a derrubara, gritando com tudo e com todos e perante o qual todos se curvavam:

- Sim senhor Afonso…

-Será como ordena senhor Afonso…

-Como queira senhor Afonso…´

Manuela ficou estarrecida. O Afonso que procurava era aquele senhor arrogante e todo-poderoso. Tanto trabalho para encontrar o herdeiro de uma pequeníssima herança de uma idosa, tia-avó de Afonso, que ele nunca visitara em vida.

Retira-se. Já na rua, agarra no envelope destinado a Afonso e regista, a vermelho, em letras garrafais: Paradeiro desconhecido. Falecido?

Quem quiser que o descubra de novo, pensa Manuela com os seus botões.

Jorge C.Chora

sexta-feira, 1 de abril de 2011

A Amiga da Frederica

Havia algo de familiar na senhora que acabara de entrar na sala, embora não soubesse dizer bem o quê. Olhou-a e remirou-a de forma disfarçada mas continuou sem saber qual a particularidade que lhe chamava a atenção. Desistiu.

De repente o seu olhar tornou a procurar a senhora e fixou-se nas calças que ela trajava. O tecido era igualzinho ao do cortinado da sua sala. Aí estava a
malfadada familiaridade que o trazia confuso. Ela reparou no olhar fixo do cavalheiro, sorriu-lhe, passou a seu lado e disse-lhe:

- São iguais às cortinas da sua sala? – e agarrou com dois dedos as suas calças, puxando o tecido ligeiramente para o lado.

Assustou-se. Será que ela lhe tinha lido o pensamento? interrogou-se. Mal acabara de pensar nisso quando ela o tornou a surpreender:

-Está a pensar se eu li o seu pensamento? – e mostrou os seus dentinhos de autêntica fada sorridente.

Sentiu-se mal. O que lhe estava a acontecer saía do seu controlo. Ou ela lhe lia o seu pensamento ou ele era tão transparente que qualquer um o lia.

-Esteja descansado, o senhor não é tão transparente que qualquer consiga ler o que pensa! – declarou, transbordando simpatia.

Cada vez mais surpreso, incapaz de raciocinar e de falar, apoderou-se de si a indesejável gaguez dos momentos difíceis, que o faziam passar por maus momentos:

-Pe…pe …ço-lhe desculpa por…por…

-Não se atemorize… A sua esposa não se chama Frederica?

Ao ouvir o nome da esposa pronunciado pela desconhecida, temeu o pior. Estava perante quem? Nunca acreditara em bruxas, mas agora estava como os castelhanos”…mas que as há, há…”

A senhora avançou, determinada, na sua direcção , beijou-o em ambas as faces e tratou-o pelo nome:

-Esteja descansado senhor João…se bem me lembro é assim que se chama…

O homem ficou pálido, para logo de seguida ficar da cor de um tomate maduro ao ouvir o seu nome.Preparou-se para tudo.Que desfeita teria feito?O mais engraçado é que nem se recordava do seu nome,nem da cara,nem...

-É que eu e a sua esposa encontrámo-nos quando comprámos o mesmo tecido, na mesma loja. Achámos graça ao facto de eu querer o tecido para umas calças e ela para umas cortinas. Ao aprofundarmos a conversa, descobrimos que fomos colegas da escola primária e trocámos informações …

-Uf! – exclamou João, retribuindo os beijos à amiga da Frederica.

Jorge C. Chora