sexta-feira, 14 de janeiro de 2011

O Tobias

Mal a cabeça de Tobias assomou à porta, as conversas pararam no café. Todos os dias dizia ter uma profissão diferente. Que personalidade apresentaria hoje? A de cirurgião, de militar, polícia ou charlatão? A curiosidade fervilhava.

Tobias entrou com uma mão atrás das costas, barriga espetada, coçando o queixo, como se afagasse uma barba. Os presentes não perceberam qual o papel que assumira.

Pareceu-lhes, pelo ar altivo e sobranceiro com que olhava os clientes, uma espécie de…de…banqueiro.
Tentaram a sorte:

-Ó amigo…se o seu banco nos emprestasse algum dinheiro…

Olhou-os com um ar pensativo e acabou por anuir:

-É uma questão de negociarmos…de quanto precisam?

-Quaisquer cem mil euros chegam…

-Bom, então é só abrirem conta com cerca de duzentos mil. Faço-lhes uns juros à cabeça de 15% e nos primeiros seis meses pagam abaixo de 20%…melhor do que isto…
Entreolharam-se os “candidatos ao empréstimo” e retorquiram:

-Mau…nem mesmo um banqueiro negociava assim…quer dar-nos um chouriço em troca de uma vara de porcos!

-Têm toda a razão. Já fui banqueiro Agora sou só director-geral - e, com um ar abatido, dá meia volta e sai.

Jorge C. Chora

sábado, 8 de janeiro de 2011

O presente

A fila encaracolava, dava a volta à esquina e não andava. Perdão, era tão lenta que parecia parada. Três horas passadas e tinham sido atendidas cerca de quinze ou vinte pessoas.

Um tic, tic compassado de saltos altos, denunciou a presença da mesma dama que transitava pelo local pela quarta vez. Olhou de soslaio para a fila, como se de desgraçados se tratassem. Franziu o nariz e de repente, os olhos faiscaram-lhe. A fila tinha ganho vida. Começara a movimentar-se de um modo quase veloz e a desaparecer, como que engolida, pelas portas do luxuoso edifício.

De súbito, a senhora mudou de direcção e introduziu-se nos primeiros lugares da fila. Atrás de si estava um senhor de meia-idade, que além de nada lhe dizer, lhe sorriu de modo acolhedor. Olhou-o de soslaio e achou-o meio parvo. Ficara à sua frente e ele ainda a tratava como se ela estivesse a usufruir de um direito…. Agora só faltava ficar-lhe com o último brinde, haver para ela e nada para ele…então é que seria o bom e o bonito…

Foi recebida de modo caloroso por três senhoras:

-Bem-vinda à nossa organização. Neste momento estamos a precisar de completar a brigada de limpeza. Faça o favor de passar para a mesa da direita para receber o balde e a esfregona. O seu chefe vem mesmo aqui, atrás de si, e já a vai integrar…

E o senhor da simpatia inexcedível deu-lhe, de novo, a primazia:

-Vou tratar de si com todo o carinho. Como se chama Vexa?

Jorge C. Chora

quarta-feira, 5 de janeiro de 2011

Uma homenagem de sucesso

O seu andar assemelhava-se ao de um balão a quem retiravam o ar. Progredia aos saltos, a uma velocidade irregular. O pior era a sonoridade que acompanhava o seu problema de flatulência. Era uma autêntica metralha, só comparável aos ataques alemães da 1ª guerra.

A princípio incomodava-o imenso o problema de saúde e as suas consequências sociais. Depois, foi conseguindo um controlo maior, até porque se formara em medicina. Passou, com a idade, a conviver muito bem com o seu mal e adoptou um modo peculiar de avisar os incautos do que ia acontecer ou do que já acontecera, anunciando:

-Fora com quem não paga a renda! Rua, rua….rua…

- Valha-nos Stª Bárbara! – exclamavam apavorados, olhando para o céu à espera da queda dos obuses, aqueles que ainda não o conheciam.

Depois de o conhecerem limitavam-se a enumerar:

-E vão sete…oito….dez…

E a vida correu sem qualquer alteração, calçada abaixo, calçada acima, com a população a cruzar-se com o clínico, no percurso que este fazia entre a casa e o consultório, entrecortado por sonoridades e apelos a Stª Bárbara.

Um dia o homem morreu. Os seus conterrâneos discutiram a melhor forma de o homenagearem. Foram unânimes na decisão de lhe mandarem erigir um busto.

No dia da inauguração houve discursos e elogios. Ninguém bateu palmas porque sentiam que a cerimónia estava incompleta. Sem aviso prévio, desencadeou-se uma forte trovoada. A multidão, a uma só voz, clamou por Stª Bárbara. Seguiram-se fortes aplausos.

Nunca uma homenagem tivera tanto sucesso.

Jorge C. Chora

domingo, 2 de janeiro de 2011

Por quem é!

A saúde da avó preocupava-o. A teimosia era outra fonte de inquietação. Recusava-se a ir ao médico e a fazer análises. Para ela estava tudo sempre bem, embora fosse notório que isso, nos últimos tempos, não correspondia à verdade.

A muito custo, conseguiu que ela fizesse análises. Colocou de lado os pequenos tubos de análise que o laboratório lhe tinha facultado. Usou os grandes frascos a que estava habituada. O neto agradeceu a colaboração, depositou os recipientes numa bolsa elegante e dirigiu-se ao metro.

Enquanto esperava, colocou o saco entre as pernas e esperou. Sentiu algo de estranho. Olhou para onde o saco estava e não o viu: ele desaparecera. Mau, pensou, depois da trabalheira que tivera para convencer a familiar, não vinha nada a calhar…
Tornou a observar à volta e viu um cavalheiro a caminhar apressado em direcção às escadas, com a bagagem que era sua, na mão.

-Agarrem o ladrão do casaco aos quadrados - gritou apontando na sua direcção.

O vigilante que descia as escadas, lançou-lhe a mão e imobilizou-o.

-Olhe, simplesmente estou chocado com a sua atitude, não sei o que se está a passar! – protestou o cavalheiro, de modo agastado, olhando
para aquele pelintra de calças de ganga, vestido de modo vulgar, que tinha tido a ousadia de o interpelar daquele modo.

-Bom … - disse constrangido o jovem – é que esses frascos…

E o homem, dando uma rápida olhadela ao conteúdo, interrompeu-o:

-Os frascos são meus! Um tem licor de tangerina…

-E o outro?

-O outro, se quer que lhe diga, não me recordo, mas basta-me cheirá-lo e digo-lhe de imediato…

O jovem sorriu e concedeu-lhe o desejo:

-Por quem é! Faça o favor!

Jorge C. Chora

sábado, 1 de janeiro de 2011

Com os pés de fora

Acordou zangada.Com quem, com o quê? Não sabia. Pura e simplesmente acordou assim. Os da casa, pé ante pé, rasparam-se. Foi ao frigorífico e verificou que não havia quase nada.

A contra gosto foi ao supermercado. Teve de encher o carrinho para colmatar as falhas caseiras. Irritada foi-o empurrando, com brusquidão, até que este chocou, com estrondo, contra a caixa. À sua frente estavam alguns clientes que saltaram assustados. Gozou interiormente com o sucedido e acalmou-se um bocado. Foi enchendo com as suas compras o tapete rolante.

Quando chegou a vez de ser atendida, a jovem empregada olhou para a quantidade de produtos que a cliente tinha e, quase a medo, disse-lhe:

-Peço-lhe desculpa…esta caixa é destinada a quem tiver dez ou menos artigos…

-Essa agora…era o que me faltava…nunca me tinha acontecido… - e espumava de fúria.

Condescendente, a caixeira propôs-lhe uma solução:

-Vamos dividir as suas compras em grupos de dez e vai-os pagando, um a um, porque deste modo a caixa aceita o registo.

-Então tenho de pagar às parcelas …às pinguinhas?

-Sim, mas é preciso que as pessoas que estão atrás de si a autorizem…

-Mau… se eu estou primeiro do que elas… - interrompeu, sentindo a fúria crescer-lhe de novo.

A cliente logo atrás, apressou-se a dar-lhe o consentimento. A jovem funcionária, facturou os primeiros dez artigos.

Com um evidente mau humor e um sorriso sarcástico, a cliente retirou do fundo da sua carteira, uma enorme bolsa de pano. Abriu-a e foi despejando dezenas e dezenas de cêntimos enquanto ordenava:

-Vá fazendo as contas e pagando os lotes…

A jovem reprimiu uma gargalhada e respondeu-lhe:

-Agora é que eu não posso ajudá-la. Nesta caixa só se aceitam cartões de crédito ou de débito! – e apontou-lhe as regras escritas no letreiro.

Duas horas depois, a senhora continuava a recolher os cêntimos que espalhara pelo balcão, murmurando:

-Ora abóboras…ora abóboras…

Jorge C. Chora