A senhora arrasta-se, por assim dizer. Pernas e pés, só por
mero acaso lhe obedecem.
-E pensar eu que com estas e com estes- e aponta para as pernas e pés - ia a todo o
lado, descalça ou calçada, conforme me deixassem ou melhor, me autorizassem…
Fala para quem está ao pé. Faltam-lhe as forças. Devagar e em
voz muito baixa, desfia o rosário para quem a ouve ou finge ouvi-la. Embora
idosa, sente-se que a senhora está sobretudo cansada.
Aproveita o facto de se ter queixado dos pés e recorda a
história que tem em mente, lá do seu Alentejo:
- Houve um dia um baile lá na minha terra. Resolvi ir, mas
não podia comparecer descalça. O único par que tinha apertava-me de tal modo
que era já um suplício pensar em usá-los. Ainda por cima estavam todos molhados,
devido à chuva que tinham apanhado. Foi
necessário secá-los ao calor da lareira. Ficaram duros, muito duros, mas nada
de alargarem: encarquilharam-se. À força, consegui calçá-los e dirigi-me ao
baile.
-Então aí é que se fartou de dançar… - arrisquei.
-Qual quê…a minha mãe passou ocasionalmente pelo local,
viu-me e mandou-me ir para casa.
-Então todo o esforço foi inútil?
-Não…pelo contrário…
Nesse momento fiquei confuso. Dores nos pés, regresso a casa
sem usufruir o momento e tinha valido a pena?
-Sim…foi lá que vi, o homem que viria a ser o meu marido!
Não dancei, mas ficou debaixo de olho…
É caso para se dizer que desejo de alentejana é só um querer
adiado, à espera de ser concretizado. Bem concretizado, digo eu, que ainda
conheci o felizardo-catrapiscado.
Jorge C. Chora