Da copa das árvores choveram pequenos e rijos frutos
certeiros, dirigidos às cabeças dos rufias. Gozavam com a velha a quem chamavam
Bruxa, que adorava fazer as suas necessidades na mata e não notara a
proximidade daquela canalha.
Quando localizaram o local donde estavam a ser alvejados,
foi o bom e o bonito. Aos urros, começaram a galgar a árvore. Lá de cima, os
frutos pareciam rajadas. A cada insulto ela respondia com três, sem se mostrar
minimamente incomodada. Sabia que ia apanhar, mas tinha a certeza que ia dar
uma boa dezena de caneladas. Tinha nove anos e era criada ao Deus dará. Os
matulões tinham aproximadamente quinze e dezasseis anos.
Foi quando de repente ouviram um silvo, cuja proveniência
mais parecia vinda do inferno do que d’outro local qualquer. A Bruxa tinha
chamado os seus seis enormes cães que esperavam pelos rufias na base da árvore.
Tinham sido descuidados. Todos sabiam que ela andava sempre
acompanhada por aqueles cães infernais.
- Se quiserem sair ilesos, todos, mas todos, terão de beijar
os pés à menina!
-O quê? - insurgiu-se Ermelinda - Sujarem-me os pés que
estão tão limpinhos? E olhava-os, com um ar divertido para os seus pés, mais
porcos do que a esterqueira que tinha em casa.
A velha senhora só não fez chichi pelas pernas abaixo,
divertida com a cena, porque acabara de fazer.
Os perseguidores tiveram de correr quilómetros e de vez em
quando, um dos cães, ferrava-lhes os dentes nos fundilhos, embora sem os
aleijar.
Ao descer da árvore, Ermelinda questionou a velha senhora:
-Gosta de fazer chichi ao ar livre?
-Adoro e não é só isso! -Ermelinda deu uma gargalhada - eu também gosto, daquele ventinho nas
coisas…
A velha riu-se bem-disposta. Abraçou a petiza, suja e ainda
mais morena do que o seu falecido marido.
-Sabes que o meu marido era africano? Era médico. Quando
viemos para aqui, foi atropelado e morreu. Nunca foi identificado quem o
atropelou.
-Os meus sentimentos.
Também sou de África… os meus
sentimentos…
-Como acha que se sente quem o atropelou? - perguntou a
petiza por delicadeza.
- Arrepende-se todos
os dias de o ter morto…
Ermelinda deu-lhe um desconto. Coitada, o desgosto deu-lhe
volta ao miolo…
Seguiram ambas de braço dado até uma estranha vedação.
Colocou a mão num ramo e empurrou a cancela.
-Entras… ou tens medo de mim?
- Não, de si até gosto! É como eu! É meia selvagem…
Ermelinda não acreditou no que viu. Aquilo não era uma casa!
Um palácio ao pé do que via, e lembrou-se de vários de quando vivia em Lisboa!
Achou indelicado perguntar-lhe sobre o assunto. Continuaram
a ver-se. Tornaram-se amigas e as idas à mata, que ambas adoravam,
aproximaram-nas ainda mais.
Uma só condição lhe impôs a “Bruxa” para serem amigas: ir à
escola!
Durante seis meses não se viram! Ir à escola, isso é que era
bom!
Um dia os pais receberam a visita da “Bruxa”. Perceberam de
imediato, mesmo parecendo uma mendiga que estavam perante a dona das empresas
onde eles trabalhavam. Não era assim que ela aparecia. Ela surgia como uma
deusa, num automóvel gigante, preto e a brilhar, com um motorista sardento e
enorme.
A conversa foi breve:
- Amanhã, quero a vossa filha, com esta farda do colégio, à
minha porta, às 8.45m, com o banho tomado. Perceberam? Gosto dela como uma
filha, perceberam?
Quando o carrão preto, a brilhar, surgiu à porta do colégio,
os portões abriram-se de imediato e a diretora estava à espera da proprietária.
-Srª Diretora, apresento-lhe a Ermelinda que é como se fosse
a filha que não tenho. É inteligente e lutadora, mas insubordinada como eu. Ensine-a
a pensar e a avaliar as pessoas com rigor. Não a castigue. Quando ela se portar
mal, basta que não a deixe ir fazer as suas necessidades à mata!
-Ah, amiga de uma figa, agora é que me lixaste! -pensou
Ermelinda com a mão dada à amiga.
Jorge C. Chora
23/10/2022