terça-feira, 25 de maio de 2010

Os Indomáveis

A cabra escoiceia, furiosa, entrincheirada no seu reduto pedregoso, a intrusa que lhe quer ocupar o espaço. Um assobio estridente, agressivo, cortante, põe termo à refrega.

Pararam as cabras, com os pêlos eriçados, ao som do assobio do pastor Aníbal. O sardão que há horas se aquecia ao sol, sente que o sangue se lhe esfria num ápice. Terá de voltar a expor-se, de novo, ao calor solar para readquirir a temperatura perdida.

Aníbal tem o condão de ser obedecido. Obedecem-lhe os cães, os lobos, as cabras, mesmo as mais renitentes e ainda não nasceu quem lhe possa desobedecer.

Como não há regra sem excepção, só um animal nunca lhe mostrou medo, muito menos lhe obedeceu e, até obrigou Aníbal a estar de atalaia: um lobo acinzentado, sempre pronto a arreganhar os dentes e a mostrar o seu mau humor.

O único prazer de Aníbal era tocar flauta. Ninguém lhe ensinou. Começou por imitar o vento, o trovão, o farfalhar das folhas acariciadas pela brisa, a sua agitação em dias de tormenta, o bater das asas dos descarados pardais, os ataques das águias e milhafres…

Da sua flauta saíam sons que abraçavam a Primavera, repudiavam o Inverno, acompanhavam o baloiçar das folhas que caiam e chapinhavam nas águas frescas, frequentadas pelas deusas encaloradas das fontes.

Nestas ocasiões, o lobo aproximava-se. Sentava-se sempre do lado direito de Aníbal, sem qualquer receio. Por sua vez, o pastor sentia-se em paz, ladeado por aquele espectador tão especial, seu irmão indomável.

Mal estes momentos acabavam, arreganhavam os dentes um ao outro e partiam para as suas vidas.

Passaram-se os anos e o lobo, trôpego, escanzelado dirige-se para o lado direito de Aníbal. Este estranha. Não está a tocar. Percebe ou julga perceber o que está a acontecer.

Tocou como nunca. A seu lado o lobo sonhou que voltara a ser jovem, a perseguir as suas presas, a correr pelos montes…

Aníbal acabou de tocar. Olhou para o lobo. O seu amigo estava deitado e não mais arreganharia o dente a ninguém.

Jorge C. Chora

sexta-feira, 21 de maio de 2010

O Manitas d`Oiro

O seu pai era pianista e a mãe guitarrista. Bom, nem sempre foi assim: umas vezes trocavam e a mãe ficava ao piano e o pai à guitarra.

Filho de quem era, alcunharam-no, logo à nascença, de Manitas d`Oiro. Nem outra coisa se admitiu ou se poderia colocar como hipótese, até porque os avós de ambos os lados se dedicavam, como amadores, à música.

Credenciais com este peso poucos as podiam apresentar e vai daí a atribuição deste nome, que à partida coroaria um artista de eleição, no fim da carreira.

Manitas fez jus ao nome e às esperanças que nele depositaram? Sim e não. Mau. Parece que temos discurso político! Fez ou não fez?

Os anos correram lentos, arrastados, direi mesmo, de modo penoso:

-Manitas vai estudar… - ordenavam os pais.

-Sim …vou já… -e as horas passavam -se sem que ele se mexesse.

Alvo da chacota de colegas da mesma idade, dos mais velhos e, espantem-se, dos mais novos, torturavam -no sempre que podiam:

-Ó Manitas quando nos mostras o oiro?

-Ó Manitas dá-me o oiro…

-Ó Manitas já roubaste o oiro?

-Ó Manitas…. - e diziam-lhe o que lhes vinha à cabeça.

Manitas respondia -lhes à letra ,mas com uma bonomia tal, que quase os incentivava a continuar.

A descrença nas suas capacidades foi-se agudizando à medida que o tempo passava. Ele não tinha sucesso nos estudos ,para a música era uma negação, para o desporto nem se fala.

Passou a Coitado. O Coitado isto, aquilo e aqueloutro…

Um belo dia pediu aos pais dinheiro para se inscrever num curso. Deram-lho sem sequer perguntarem qual era.

Ia às aulas, trancava-se no quarto e estudava .Só aos pais disse que pretendia ser massagista e estes apoiaram-no.

Estabeleceu-se e a sua “arte” foi sendo elogiada e reconhecida. Hoje, os que o conhecem, recomendam-no a quem tem dores:

-Só O Manitas d`Oiro te pode livrar disso!

Caso o caro leitor estivesse à espera de um desfecho miserabilista, de acordo com os tempos que correm, desengane-se: ainda pode haver histórias de sucesso. Não acredita? Vá buscar uma lupa, muna-se de um potente foco e procure. Caso não encontre, é porque não o fez de acordo com as regras. Quais regras? Bom, aí é que a porca torce o rabo…mas que as há …

Jorge C. Chora

quinta-feira, 13 de maio de 2010

Que azar!

A festa foi pantagruélica. Os convites foram entregues, com a devida antecedência, às figuras gradas do povoado.

A vaca era desmesurada, tenra, suculenta. O espeto em que foi assada teve de ser feito.

Prepará-la foi o cabo dos trabalhos, tendo de ser chamados especialistas para o efeito.

Durante dias banquetearam-se, até enjoarem o pitéu, e concluírem que não conseguiam comê-la toda.

Reuniram-se e decidiram que mais valia partilhar o que sobrava ou tinham de deitar fora o que ainda havia.

As portas do recinto da festa foram abertas de par em par. As pessoas acotovelavam-se, desconfiadas de que o pouco que ainda havia não dava para todos.

A desconfiança era justificada. Alguns felizardos conseguiram, com recurso a empurrões, caneladas e sopapos, afastar os famélicos concorrentes.

Uns gramas de carne e fortes dores nas glândulas salivares foram o que conseguiram.

Mal a festa acabou, os vendedores da vaca apresentaram uma conta astronómica, justificada pela qualidade da vaca, pela forma como fora alimentada, pelas mordomias que lhe tinham sido prodigalizadas: passeios, massagens à japonesa para que a carne fosse tenra, cerveja misturada nos alimentos…

Reuniram-se de novo e decidiram, devido ao preço a pagar, que por uma questão de equidade, todos os habitantes do povoado deviam participar no esforço de pagamento.
Os que nem sequer tinham cheirado a vaca rebelaram-se:

-Que história é essa?

- Vivemos em comunidade, logo temos de fazer um esforço colectivo! - gritaram exacerbadas as figuras gradas.

-Vocês comem e nós é que temos a indigestão? – escandalizaram-se os deserdados do pitéu.

O pior é que, anos a fio, a cena se repetiu e as despesas a dividir foram cada vez maiores.

Hoje, o povo apresentou na assembleia municipal uma proposta para a alteração do nome do povoado: Tresanda a vaca!

Jorge C. Chora

sábado, 8 de maio de 2010

O remédio do Mindo

Mindo é homem de muitas viagens. Viajou e trabalhou a bordo dos navios nórdicos. Serviu no bar, aturou este mundo e o outro, viu e calou muita coisa. Entre Cabo Verde, os países do Norte da Europa e o resto do mundo foi ganhando calo e uma filosofia própria e adequada a cada um e às circunstâncias.

Em terra ao fim de uns anos, montou um bar. Sabe com rigor o que os clientes querem.
Atrás do balcão vê um patrício seu .Como é evidente, sabe o que ele deseja, e dá-lhe conversa:

-Está um vento que até nos põe a cabeça zonza …

-É verdade… tem aí o remédio?

-Claro - responde Mindo enquanto agarra no garrafão de grogue, que lhe escorrega da mão, mas logo consegue agarrá-lo com firmeza.

Enquanto isto se passou, a clientela repreendeu-o:

-Bô (você) tem de ter cuidado…

-Dá cá mais um antes que partas…e não fique nenhum…

Mindo volta ao ataque:

-Então e você compadre está melhor dos dentes?

-Nem por isso Mindo. Um grogue daquele para melhorar.

Dá um relance pela pequena sala. Está tudo nos conformes. Zé do gorgomilo alto,bochecha e dirige-se à porta , faz menção de deitar fora o grogue com que diz estar a desinfectar a garganta: o chão está mais seco do que o da ilha do Mindo.

No canto esquerdo da sala, está sentado oTreme-Treme,que está sempre com frio e ordena:

-Mindo, o meu copo está vazio…

-Estou a caminho…

Ao som da “sodade” de Cesária Évora, a clientela vai-se meneando e escorropichando
grogues. Exige que Mindo beba também um.

-Como não estou doente bebo à saúde e às melhoras de todos - e tira de baixo do balcão um copo,supostamente de grogue, previamente cheio de água, que bebe de um gole, e estala a língua com satisfação,enquanto diz - ah! grande remédio!

Jorge C. Chora

quinta-feira, 6 de maio de 2010

O Capeta envergonhado

Ninguém sabe ao certo quem o homem é. O que se sabe, e isso todos o afiançam, é que ele é como o fado: nasceu sabe-se lá onde, se em África ou no Brasil, suspeita-se também de que numa rua de Alfama, de uma mulher vivida e falada. Certeza, certezinha, é que vive cá, que aqui se fez e se faz.

Cresceu sem eira nem beira e especializou-se nas trapalhices de todo o género. Aprendeu o que não devia e irmanou-se ao desenrascanço. Não anda, desliza, ginga como um bailarino, serpenteia como uma surucucu e dá o bote quando menos se espera.
Esperam-no na feira da Ladra. Tem dívidas. Um ror delas, contraídas ao jogo, em farras e actividades pouco recomendáveis.

-As dívidas são sagradas…- ameaça de sobrolho franzido o Capeta- em representação do chefe.

- Verdade mais sólida e incontestável não há… dívidas são dívidas, são sagradas, nunca falaste tão bem… - respondeu-lhe o Maganão maneando as ancas, como um pugilista preste a atacar o adversário.

- Então vens para acertar as contas…não era sem tempo… - fungou, sobranceiro.
- Venho propor-te um jogo. Caso ganhes, fico a dever-te o dobro. Se eu ganhar, fico com a dívida paga…

- O chefe não aceita jogos…

-Mas ó chefe… neste momento o chefe és tu… estás é com medo dele … - arriscou o devedor.

- Medo? – e o Capeta, inchou o peito e concluiu - é coisa que nunca tive…

A mesa de jogo foi improvisada em cima de um caixote. Ainda o discípulo do demo não tivera tempo de piscar um olho e as cartas viciadas do Maganão ditaram-lhe não uma, nem duas, mas precisamente três derrotas.

Pediu a desforra e o Maganão, liberal, destilando mais veneno que a surucucu de quem era irmão, concedeu-lha:

-É um direito de quem perde, ter a possibilidade de desforra.

Seguiram-se mais duas derrotas do Capeta. O Maganão atirou-lhe:

-As dívidas são sagradas… tens uma semana para me pagares. Caso não me pagues, os juros serão diários…

Há quem tenha visto o Capeta a sair da igreja e tenha escutado o seu pedido ao Senhor:

- Peço-te, Senhor, que me reconduzas ao estatuto de anjinho … mais merecedor do que eu não há …

Jorge C. Chora