segunda-feira, 15 de novembro de 2010

O canto dos linguarudos

Reuniam-se no café e o único assunto que sabiam e gostavam de discutir era em torno do dinheiro, de quem tinha mais, do que este e aqueloutro tinham ou deixavam de ter. Todas as conversas, sem excepção, se encaminhavam para o referido assunto.

Naquele fim-de-semana, para não variar, o mesmo grupo, sentado no mesmíssimo lugar, discutia o tema de sempre: o dinheiro. A única diferença, se é que isso contava, era que se discutia quem tinha as maiores propriedades no concelho. Sicrano e Beltrano vieram à liça por diversas ocasiões e pela primeira vez a opinião foi consensual: sem dúvida eram os maiores.

Sentado na mesa ao lado estava o António, tão ou mais linguarudo do que os vizinhos, mas sem cabidela nos suas conversa devido ao sua falta de estatuto económico: era muito pobre. Desejoso por participar na conversa aclarou a voz e disse:

-Peço perdão…quem sou eu para discordar de tão ilustres senhores…

Entreolharam-se os interlocutores, surpreendidos com a intromissão:

- Falaste Tónio? Queres dizer alguma coisa?

-Se me permitirem…

-Despacha-te…diz lá… - remataram os linguarudos.

-Bom…o que eu digo e repito, para quem me quiser ouvir, é que eu estou de acordo com o facto de eles serem os maiores proprietários…mas nenhum tem uma propriedade que se estenda por três concelhos!

-Por três concelhos? Não há quem esteja nessas condições!

-Há sim… - contrapôs Tónio com um ar misterioso - Querem apostar?

-Tudo o que quiseres…

-Bem, como não sou ganancioso, se perder pago-vos um uísque e se eu ganhar passam a tratar-me por” senhor dos três concelhos” e a levantarem-se para me cumprimentarem…

Desataram a rir-se com a sua proposta mas aceitaram-na, saboreando antecipadamente as bebidas, já que conheciam há muito o Tónio.

-Lembram-se da ponte dos três concelhos?

-Sim, claro!

-Pois a terrinha que está na confluência dos três concelhos é minha…

-Isso é uma terra de nada, uns metrinhos que não valem nada… - apressaram-se a concluir.

-Não tenho a menor dúvida de que assim é… mas a aposta foi outra…

Os presentes no café testemunharam a vitória de Tónio.

Ainda hoje são muitos os que se espantam quando o esfarrapado Tónio entra no estabelecimento e os poderosos da terra se levantam e o cumprimentam:

-Como vai o senhor dos três concelhos?

Jorge C. Chora

sexta-feira, 5 de novembro de 2010

O segredo do senhor "von Kartoffel"

As gargalhadas sacudiam-lhe a jucunda barriga, os enormes peitos e a papada volumosa. De riso fácil e disposição alegre, o tintureiro Kartoffel fazia tudo com gosto e com uma arte e delicadeza irrepreensíveis.

A preparação dos químicos era um momento de verdadeiro espectáculo. As doses eram pesadas até ao miligrama, misturadas em frascos, provetas e vidrinhos. As preparações eram elevadas acima da cabeça e observadas à contra luz, olhadas como se quisesse vê-las à transparência. De seguida eram adicionadas nas tinas, em gestos suaves, harmoniosos, musicais. Quem via, julgava assistir a verdadeiros passos de ballet clássico, mesclado de enérgicas interferências de um bailado moderno, prenhe de inovação e colorido.

Aquelas poções, pese embora a roupagem quase mágica de que se revestiam, eram claras, matemáticas, rigorosas e tão simples que qualquer um podia copiá-las, registá-las,repeti-las.

Sempre que o tintureiro executava o seu trabalho, os proprietários da fábrica têxtil bebiam-lhe as porções, anotavam as quantidades, comparavam-nas com as anteriores.

Ágeis no cálculo, e de olho gordo nas poupanças que fariam se não tivessem de pagar o ordenado a “von Kartoffel”, despediram-no sem apelo:

-Von Kartoffel, agradecemos-lhe a sua contribuição na empresa, mas já não precisamos de si. Já sabemos todos os seus segredos e podemos poupar o seu salário.
O tintureiro sorriu e disse:

-Quando me tornarem a chamar, só aceitarei voltar com o dobro do ordenado…

Sonoras gargalhadas responderam ao desabafo do tintureiro.

-Que tonto…coitado…não tem onde cair morto… - comentaram após a saída do técnico.
Na manhã seguinte, reuniram-se os donos da fábrica. Nunca o mundo lhe sorrira como naquele momento.

Reproduzido todo o processo, sem esquecer as medidas, os pesos, as miscelâneas devidas e até os gestos, foram colhidos de surpresa: a tinta não deu os resultados esperados.

Discutindo o que podia ter corrido mal, chegaram à conclusão que não tinham mexido as tintas e os químicos com uma bengala como “von Kartoffel”costumava fazer. Utilizada a bengala de um dos sócios o resultado foi o mesmo.

Estavam as coisas neste pé, quando um dos melhores amigos do tintureiro, operário da fábrica, por ali passou e desatou a rir à gargalhada.

-De que te ris?

-É que o segredo de von Kartoffel residia na sua bengala…que era oca…

-E o que tem a ver isso com… -interrogaram-se dois dos três donos presentes.

Preparava-se para responder, quando o terceiro proprietário, caiu em si e exclamou:

-Ai que nos tramámos…a bengala tinha os químicos necessários para serem adicionados aos outros que nós conhecíamos…

Jorge C. Chora

segunda-feira, 1 de novembro de 2010

O perfume

Colocou uma gota de perfume no seu delgado pescoço. A reacção foi imediata: a sua pituitária ofendeu-se, o nariz quase se enrugou, e os poucos pêlos que existiam no seu corpo eriçaram-se-lhe.

Arrepiada com o que lhe estava a acontecer, ainda nessa tarde se desfez do fedorento líquido, oferecendo-o a uma amiga que por acaso fazia anos nesse dia.

Mil vezes agradecida lhe ficou a amiga, seduzida pela elegante embalagem que era, só por si, uma obra de arte, algo”retro”, definitivamente muito chique.

O pior estava para vir. Ao chegar a casa, inspirou, sôfrega, o “divino” aroma. Só por milagre não morreu ali mesmo, gaseada pelo terrível perfume, servido na bela embalagem que a levara ao engano.

O desagrado foi tamanho, que ainda hoje qualquer situação profundamente desagradável, tem aquele odor.

E então o que aconteceu ao frasco? Foi pela pia abaixo, dirão os mais bem-intencionados. Nada disso… a história ainda não terminou …

Combalida com o ataque nasal a que fora submetida, logo ali decidiu reagir, e fê-lo também no dia de anos da pessoa que lhe oferecera a prenda.

A oferta era acompanhada por um bilhetinho que rezava assim: Gostei tanto do perfume que me deste que acabei por te comprar um igual.
P.S.- Adquiri-o numa promoção e por isso não aceitam devoluções. Achas que há algum problema?

O bilhete, devido à proximidade do Natal, tinha estampado um querubim.

Jorge C. Chora