sábado, 23 de março de 2013

O dom do pequeno elefante


Quando nasceu, todos os familiares se surpreenderam com o tamanho das suas orelhas. Era natural que um elefante nascesse com essa característica, mas assim tão grandes é que ninguém se recordava.

À medida que o tempo passava, o mais letrado da manada, sossegava os restantes, contando-lhes a história de Dumbo, o elefante voador, e concluía:

-Quem sabe se não temos um segundo como ele…

Os ouvintes torciam a tromba, fingindo acreditar na possibilidade remota e um tanto idiota.

O pequeno orelhudo tinha uma vida difícil e a todos os momentos se recordava das suas especiais características anatómicas, porque passava a vida a tropeçar nelas. A mãe tinha de levantá-lo e fazia-o, enlaçando-o com a tromba de um modo suave. Sempre que isso acontecia, ela lançava uns olhares intimidativos ao seu redor e ninguém se atrevia a troçar do que sucedera.

Numa das deslocações da manada, em busca de melhores pastos, o elefante parou, obrigando a sua progenitora a fazê-lo também. Pós-se à escuta. Todos o imitaram durante um certo tempo. Ninguém ouviu nada.

-O que estás a ouvir? - perguntaram-lhe, impacientes, os restantes, cansados de nada escutarem.

-Ouço sons ao longe…uma espécie de correria de uma manada…

-Tem paciência, mas só tu é que escutas esse som… -E retomaram a sua pachorrenta marcha.

Percorridos uns bons quilómetros, aí sim, todos sentiram a terra tremer e, pouco depois, assistiram a uma manada de búfalos em debandada, perseguida por uma matilha esfomeada de leões.
Três dias depois, o pequeno parou e pôs-se de novo à escuta.

-O que foi agora?

-Sons estranhos. Parecem-me pequenos trovões. Não sei do que se trata…

Três horas após terem recomeçado a andar, cruzaram-se com um grupo de caçadores furtivos. Eles mataram um dos elementos mais velhos da manada para lhe tirarem os dentes.
A partir desse dia, sempre que o grupo o via parar e colocar-se à escuta, todos se imobilizavam. Só as moscas se atreviam a zumbir à sua volta. Evitaram deste modo muitos maus encontros.

Agora, todos o respeitam no grupo. Ao caminhar, tem sempre dois amigos, de ambos os lados, que o ajudam a amparar as suas duas preciosas orelhas. Ao longe, parecem trigémeos inseparáveis.
E tu, já descobriste o dom especial daquele teu colega que te parece estranho?

Jorge C. Chora

segunda-feira, 18 de março de 2013

Lágrimas de crocodilo


Os crocodilos reuniram-se com os seus associados e dependentes, caimões, jacarés,  aligatores e gaviais e planearam capturar a luz de sol. Executaram o golpe e aprisionaram-na numa enorme caixa forte. Na mesma caixa guardaram tudo o que era precioso, como as sementes que dariam origem aos alimentos, os pós de cócegas destinados a ser espalhados pelas pessoas mais tristes,  as liberdades dos povos e até os livros com as regras básicas para o entendimento dos seres pensantes.

A pouco e pouco, quando já eram horas dos raios solares aparecerem, a multidão veio para a rua à espera que o dia nascesse.

Pelas nove horas da manhã, ainda a noite não dera lugar ao dia. Às dez, as pessoas começaram a ficar alarmadas.

Foi mais ou menos por essa altura que os crocodilos apareceram e disseram:

-Não se preocupem. A luz há-de aparecer…

Os relógios registavam as diferentes horas e a luz do dia continuava sem despontar.
Os répteis que a tinham retido, voltaram a comunicar com os humanos:

-Não tenham receio. Vocês tinham um excesso de luz e não souberam aproveitá-la. Deixaram-na esgotar. A sua falta é benéfica, porque daqui a um tempo, quando ela regressar, saberão apreciá-la melhor.

E as horas iam-se esgotando, e o dia sem dar sequer um sorriso.

-O dia só retornará, se nós o conseguirmos trazer de volta. Como? Perguntarão. Fazendo sacrifícios, poupando, insistindo em poupar, juntando dinheiro para podermos comprar fatias do dia, queremos dizer, algumas horas de sol durante as 24 horas que o dia tem .- sentenciaram os jacarés.

As populações fizeram sacrifícios durante anos e pagaram, pagaram, cada vez mais caro, o acesso aos raios de sol que brilhavam cada vez, durante menos tempo. Socorreram-se os povos, de todos os bens que os pais e avós tinham junto para emergências.

Esgotadas as riquezas, os crocodilos e os seus sócios resolveram emprestar o dinheiro de que as pessoas precisavam, mas em troca de exigências tão grandes que ainda pioraram a situação.

Entretanto, por falta de luz, as plantas, as sementes e as colheitas diminuíram de tal modo, que provocaram a morte em massa de animais e indivíduos. Foi então que os crocodilos perceberam que já não valia a pena libertarem o sol porque deixara de haver quem lhes pagasse. Reuniram-se à volta da caixa forte e derramaram as suas famosas lágrimas que, como sabem ,são poucas e falsas: são lágrimas de crocodilo.

Jorge C. Chora


quarta-feira, 6 de março de 2013

Nos tempos que correm!


Olhava em redor, como que avaliando a possibilidade de encontrar, escondida, bem escondida, a falcatrua que procurava. Os olhos pareciam saltar-lhe das órbitas, tal a velocidade a que se deslocava , da direita para a esquerda, de alto para baixo e para todos os cantos do quarto.

Na mão trazia um metro articulado, de madeira, que ia abrindo e fechando, brandindo no ar, apontando em todas as direcções como se de um ponteiro se tratasse. Todas as residentes naquele quarto, assim como  as dos outros,  sabiam do que se tratava. Ninguém ignorava o que se ia passar dentro de pouco tempo. Pelo arfar audível, cada vez mais intenso, sabiam as presentes de que estava para breve, muito breve mesmo, o desencadear da acção.

O momento aconteceu. A senhora lançou-se para o chão, de modo atlético, fazendo uma flexão, sustendo o seu peso num só braço, levantando com o outro a colcha da primeira cama, do lado direito do quarto.

-Ah! Cá está a malandra! - exclamou vitoriosa – Puxando a extensão eléctrica do aparelho de aquecimento, guardada em baixo da cama.

Capturada a extensão, puxava-a para si, esticava o fio e media-o com todo o cuidado. Do bolso da enorme saia, até aos pés,  que trajava, retirava um lápis, melhor dizendo, um coto de lápis, e anotava religiosamente os metros que media a extensão.

-Vocês sabem perfeitamente que quanto maior é a extensão, maior é o consumo de electricidade!

Calavam-se as presentes. Estavam cansadas de lhe dizerem que não era assim.

-Eu é que sei!- respondia, zangada.

De cama em cama, de quarto em quarto, o tamanho dos fios das extensões era anotado, de modo fervoroso e sem qualquer engano.

No final do mês, quando as residentes iam  fazer as contas, lá estava a senhora, acompanhada do seu caderninho de notas:

-Tens a extensão mais pequena. Faço-te um desconto de dez tostões na tua conta.

-Tu e tu …tendes as maiores extensões. Não posso fazer-vos nenhum desconto. Dou-vos estes santinhos de STª Bárbara, para ver se ela vos alumia…

Não vou prosseguir esta história, não vá dar-se o caso de chegar aos ouvidos de algum membro do governo ou da direcção da EDP e…truca, nascer mais um imposto: o do comprimento das extensões.

Nos tempos que hoje correm!

Jorge C. Chora

sexta-feira, 1 de março de 2013

A gamela do Tónio


                                               
Comia feijoadas dia sim dia sim. Era o que a mulher lhe trazia do restaurante onde trabalhava, por especial favor do magnânimo gerente. Em troca prestava pequenos serviços. Varria, servia à mesa, quando faltava alguém, e fazia recados.

Em tempo de crise, escassearam os clientes. Lembrou-se o gerente das habilidades do Tónio. Bastava-lhe levantar a perna e desencadeava-se um verdadeiro festival sonoro. Reforçou-lhe a dose de feijão diário e o Tónio passou a dinamizar, no átrio traseiro do restaurante, concursos sonoros. As apostas eram feitas em uísques: quem perdia pagava rodadas a todos os presentes. O negócio prosperou.

O tempo foi passando e  Tónio, farto de feijoadas, mas sem ter outra opção, foi comendo sem qualquer queixa o que o magnânimo gerente lhe propiciava na gamela diária.

Os concursos passaram a acontecer também à tarde e os proventos económicos foram crescendo: vendia dúzias de garrafas de uísque, ao copo, diariamente.

Um belo dia Tónio deu uma bufa tão grande, tão poderosa, que há quem diga que fez ricochete na parede e derrubou o gerente. O certo ,é que ele caiu ao chão, quiçá por ter tropeçado.

Os espectadores bateram palmas. Tónio aproveitou para disparar uma rajada de salvas de canhão e obrigar o gerente a lançar-se ao chão uma série de vezes, sob fortes aplausos da assistência.

A partir desse dia, Tónio teve direito, para além do feijão, a um copo de vinho e a uma maçã às refeições, caso não repetisse a brincadeira com o gerente.

PS:Todos somos Tónios.
Jorge C. Chora