terça-feira, 29 de dezembro de 2015

A REAL E INSÓLITA FUNÇÃO DE UMA ANTIGUIDADE

                         
Gosto de ir a feiras de antiguidades. Este fim-de-semana, ao visitar uma, vi uma molheira bastante antiga que me fez recordar um episódio com elas relacionado.

Numa das vezes que fui ao Museu de Arte Antiga, detive-me num expositor em que existiam peças variadas de porcelana e faiança. Uma delas chamou-me a atenção pois, parecendo uma molheira, achei estranho que fosse maior do que aquelas que conhecia e tivesse um bico demasiado largo e aberto para cumprir bem essa função.

Isto foi há uns anos mas, lembro-me bem de ter andado à roda do expositor, ter mirado e remirado a peça, sem chegar a nenhuma conclusão. Não desisti e acabei por consultar o conservador, responsável por aquele departamento.

Contou-me uma interessante história, que não recordo com todos os pormenores, pois já se passaram um ror de anos, mas que em traços gerais ainda consigo relembrar-me. A peça era um urinol portátil, usado pelas damas da corte francesa há uns séculos, quando tinham de assistir aos longuíssimos sermões de um conhecido e respeitado abade.

Uns anos depois deste episódio, um casal amigo com quem jantei, contou-me que passara um enorme martírio num almoço a que fora, pois os anfitriões serviram o molho numa “molheira”idêntica à do museu, que lhes tinha custado os olhos da cara num antiquário.

Questionei-o sobre o que tinha feito e ele disse-me:

-Tive uma gastrite súbita! E nem precisei de fingir!


Jorge C. Chora

quinta-feira, 24 de dezembro de 2015

UM NATAL ÀS AVESSAS

                                                                                 
Nos finais da década de cinquenta, eu e o meu irmão tivemos um Natal inesquecível. Na altura, teria sete anos e o meu irmão cinco e estávamos na Beira, Moçambique, cidade onde nascemos.

Na véspera do Natal mal contínhamos a ansiedade, antevendo as prendas que receberíamos no dia 25. Deitámo-nos muito cedo e tentámos dormir com um olho aberto, na esperança de conseguirmos surpreender o Pai Natal na sua visita.

Pelas cinco da manhã, já era de dia, saltámos da cama e corremos à sala de visitas, onde se montava a árvore de Natal. À volta da árvore não havia nada, nem uma única prenda. Com a respiração suspensa, voltámos a olhar e vimos ao lado do sofá, dois pares de sapatos velhos, daqueles que se compravam na Rodésia e com os quais pontapeávamos tudo o que nos surgia à frente, fossem pedras, latas ou bolas.

Sem proferirmos uma só palavra, vasculhámos várias vezes a sala, até nos convencermos de que nada, mas mesmo nada lá estava. Recolhemos ao nosso quarto, encostámos a porta, sentámo-nos nas camas e o meu irmão, muito baixinho exclamava:

-O filho dum cão do Pai Natal…é mesmo cão…

Eu, sem um pingo de sangue, aprovava com a cabeça o adjectivo empregue, esperando que ninguém ouvisse o que lhe chamávamos.

Que bem nos sabia designar assim o estupor que se esquecera de nós, embora o disséssemos baixinho, pois sabíamos que de outro modo teríamos de suportar o piripiri na língua, castigo que nos seria aplicado, mesmo que os pais não estivessem presentes, pela nossa adorada e rechonchuda ama, chamada Lina.

Depois de muito padecermos, ainda com a fúria em alta, lá pelas sete da manhã, surgiram os nossos pais que, fingindo-se surpreendidos com o que acontecera, sugeriram que, caso não nos tivéssemos portado mal, talvez o Pai Natal se tivesse enganado na sala e os tivesse deixado noutra.

Mal ouvimos falar nessa possibilidade, voámos casa fora e descobrimos na sala de jantar, os brinquedos cobiçados.

E a Terra voltou a girar!


Jorge C. Chora

quarta-feira, 23 de dezembro de 2015

O REGRESSO A LM

                       

Por volta de 1966,os meus pais tiveram, ao fim de muitos anos de trabalho, direito a gozar uma licença graciosa. Vieram eles e viemos nós, eu e o meu irmão.

Logo no início das férias o meu pai teve de tratar de um assunto em Lisboa, creio que de seguros, numa morada algures no Bairro Alto.

Depois de calcorrearmos ruas e vielas, de subirmos e descermos, de perguntarmos a muitos transeuntes se sabiam indicar-nos a malfadada morada, ouvimos quase sempre a mesma resposta:

-Desculpem mas não somos daqui… -E miravam-nos, a mim e ao meu irmão, enormes(para a época) e eu, um autêntico texugo, mas de pouca idade, de calções como era o hábito em Moçambique, como se estivessem na presença de dois extraterrestres.

Nunca tínhamos estado numa terra em que não encontrássemos os naturais. Continuámos com a busca até que o meu pai, exasperado exclamou:

-Estamos perdidos…se  ao menos soubesse onde estamos!

-Ó pai, mas isso sei eu!

-Então diz, já ajudas em alguma coisa… - e esboçou um sorriso de esperança.

Não me fiz rogado:

-Estamos na rua dos cansados!

O meu progenitor engasgou-se, abriu os olhos desmesuradamente e…por fim, comentou:
-Esse teu humor ainda me mata!

E foi quando vislumbrámos, por acaso, o nome da rua que tanto procurávamos. Encontrado o número da porta, obtivemos uma informação inesperada: a companhia mudara para um local bem longe dali, para os lados de Santos, julgo eu.

No dia seguinte, antes de partirmos à descoberta da nova direcção, fui advertido:

-Não venhas de novo com a história da rua dos cansados…

-O pai tem razão, aqui não é como lá…lá andamos trezentos quilómetros para beber um café e ajudar a fazer a digestão. Aqui andamos uns metros e achamos que fizemos uma viagem de circum-navegação…

-Mau..é a nova versão da rua dos cansados?

E não sei se foi por esta e por outras, que eu e o meu irmão ficámos internos no Colégio de S. José e Stª Maria, em Mangualde, e eles regressaram felizes e contentes a LM
.
Só dois anos depois é que voltámos a LM e a atenazar os “velhotes”.

Jorge C. Chora


domingo, 20 de dezembro de 2015

AS "PORTAS LARGAS" OU A "EMBAIXADA DO CARTAXO"

                                                                                               
 Ambos os nomes designavam a mesma taberna, situada na esquina da Rua Elias Garcia com a Av. Miguel Bombarda, perto dos Bombeiros da Amadora. Era um pólo de atracção para quem gostava de bons petiscos e melhor pinga. Conhecida como “Portas Largas”, (as portas de entrada eram de facto enormes) a sua fama estendia-se à região de Lisboa, e entre os seus fregueses contavam-se jovens, menos jovens e os da terceira idade. Foi assim durante décadas.

Entre os locais, muitos designavam-na como “Embaixada do Cartaxo” e, perdidos e achados era lá que, entre uma delícia gastronómica e outra, jogavam ao dominó e às cartas.

Há muitos anos, precisei de realizar obras em casa. Contratei um pedreiro, cliente assíduo do espaço.
No dia e à hora marcada para o início da empreitada, esperei em vão pela chegada do profissional. Passaram horas e eu sempre na esperança da sua vinda, aguardei, sereno, pela sua chegada: algo se tinha passado.

Pela hora do almoço, dei um pulo a sua casa e a esposa informou-me de que o marido tinha comido mais cedo e voltara para o seu escritório, vulgo,”Embaixada do Cartaxo”. Resolvi lá aparecer e o senhor garantiu-me que daí a meia hora estaria em minha casa. A meio da tarde, voltei à “Embaixada” e não tive coragem de o interromper: banqueteava-se com um prato de caracóis.
Retirei-me sem ele me ver mas encontrei na rua a sua mulher:

-Não me diga que ele não apareceu em sua casa! Se o quiser apanhar tem de ser logo de manhã, quando ele sair de casa. Vou dizer-lhe que está à porta pelas 9h,mas esteja meia hora antes.

Dito e feito. Às 8.30 h do dia seguinte, quando ele saia sorrateiro de casa, tinha-me à sua espera. Só foi comigo depois de lhe prometer ir, à tarde, lanchar à “Embaixada”.

À hora marcada, com uma pontualidade de fazer inveja ao mais pontual dos britânicos, marchámos os dois para a “Embaixada”. Um lanche na “Embaixada” era coisa demasiado séria para haver atrasos.

Jorge C. Chora




terça-feira, 15 de dezembro de 2015

BOAZINHA


A idosa senhora apresentava dificuldades em deslocar-se. Pediu à jovem e roliça vendedora da mercearia, se fazia o favor de lhe escolher uma fruta boazinha.

-Boazinha, boazinha… isso sou eu… - brincou a comerciante.

Gavião, o velho marido da idosa, de bigode eriçado e apoiado numa bengala que mais parecia um cajado, resmungou:

-…Zinha, ela é… uma zona e muito zona!

A esposa franziu a testa mas, quase de imediato, esboçou um sorriso e disse-lhe:

-Há muito que não me elogiavas Gavião! Com essa disposição, posso ter esperança na tua ressurreição?

Gavião fechou-se em copas mas resmungou de novo:

-Posso não ter ressuscitado…mas que ela é zona…é zona!

Bom, pode ser que ela se transforme numa espécie de código postal, pensou a esposa, recusando-se a aceitar o fim da subida aos céus.

Jorge C. Chora

                                                 

sábado, 12 de dezembro de 2015

O CHÁ FRIO E A ELEGÂNCIA NAS ESPLANADAS DE LM

                     O
Elegantes e bronzeadas senhoras, entre muitas outras, povoavam as esplanadas dos cafés de LM, na década de sessenta e princípios da de setenta.

Nas férias tinha o hábito de ir à baixa, nomeadamente ao café Continental, entre outros, em que ouvia algumas damas pedirem:                                                                                                                                                                                                                                      
-Por favor, um chá frio …

Intercalavam os goles de chá com fumaças aromáticas, pois o fumo dos cigarros da época, diferentemente dos actuais, cheirava bem. Na altura fumava e não lhes gabava o gosto desta alternância entre o tabaco e o chá.

Um dia sentei-me numa mesa acabada de ficar vaga, em que as chávenas de chá ainda não tinham sido retiradas e cheirou-me a uísque. Quando o empregado veio, um dos mais antigos da casa, perguntei-lhe se serviam a referida bebida em chávenas. A velha raposa sorriu-me, fez-me um sinal com o indicador como a pedir-me silêncio, e disse-me em voz baixa:

-O chá frio é assim…

Na mesa ao meu lado, um senhor já entradote, que eu só conhecia de vista, fez que sim com a cabeça e disse-me, exagerando propositadamente a pronúncia:

-Em “Bijeu”, que é a minha terra, isto também acontece, só que é vinho branco, o que algumas damas bebem em chávenas…

O sábio de Viseu ainda me ensinou uma frase, caso fosse necessário proteger as discípulas de Baco que cambaleassem:

-Depois do acidente, nunca mais conseguiu recuperar…

Agradeci e daí em diante, nunca mais estranhei as dificuldades de locomoção apresentadas por algumas senhoras, após o consumo de várias chávenas de chá frio.

Jorge C. Chora




O RITUAL DOS CUMPRIMENTOS DIÁRIOS ENTRE MANEL E ALFREDO


-Bom dia camarada! –  cumprimenta Manel num tom de voz que ecoa no café de Alfredo.

A resposta de Alfredo não se faz tardar:

-Vai marrar com um comboio!

 Ser chamado de camarada provoca-lhe alergia. Alfredo teme o dia em que os pêlos do corpo lhe caiam todos com semelhante tratamento.

Manel não desarma:

-Vá lá, despacha-te… e com bons modos…o trabalho dá saúde…

-Se é assim por que estão os hospitais cheios de trabalhadores!? Tem calma… -responde-lhe Alfredo.
-Pouca conversa…despacha-te… -insiste Manel.

Consumidos e pagos os produtos solicitados, despede-se:

-Olha Alfredo. não te vás embora que eu ainda volto…

-Hum… -resmunga Alfredo., condenado a ficar no café até às 2oh, mas não diz mais nada, não vá  Manel dar-lhe mais da avinagrada música matinal.

E sabem que mais? Manel vai várias vezes por dia ao café e sempre que entra diz:

-Camarada…

Hoje vi e ouvi alguém, sem ser o Manel, entrar no café e dizer- lhe:

-Bom dia camarada…

É caso para ter pena  …mas penas têm as galinhas… e Alfredo sabe bicar… e bem…

Jorge C. Chora


MEMÓRIAS DE LM


Nos idos de sessenta, ou no ano de setenta , a fama de Ravi Shankar estava em alta em LM. Vem isto a propósito de um filme que vi, em que ele e outros convidados, demonstravam o domínio instrumental do sitar e da música indiana.

O filme passou no velho cinema Scala, cuja centralidade fazia esquecer a sua antiguidade e uma certa falta de conforto, se comparado com o de outras salas existentes na cidade.

O espectáculo foi longo, demasiado longo para os meus dezassete ou dezoito anos. Embalado pela música, pelo calor e pela inactividade forçada, acabei por ir cabeceando,  e logo a seguir adormecendo por breves períodos. Quando acordava, olhava ao meu redor: não era o único que dormia. Relaxei e deixei-me ir na onda, acompanhado pelos dois espectadores que me ladeavam.
À saída vi um dos senhores, que me tinha acompanhado no abraço a Morfeu, comentar:

-Que espectáculo magnífico! Um tributo a Euterpe!

E um senhor indiano que ainda vinha meio a dormir e os conhecia, corrigiu:

-Um tributo a Sarasvati, que essa é que é a deusa da música …

Atravessei a rua, sentei-me na esplanada do Continental e bebi duas imperiais: uma em homenagem a Euterpe e outra a Sarasvati.

E se mais deusas houvesse, mais “Laurentinas”  tinham marchado…


Jorge C. Chora

O NOVO SINBAD



Há uns anos, quando me dirigia a um dos cafés do bairro, uma idosa pediu-me ajuda para atravessar a passadeira de peões. Prontifiquei-me a ajudá-la.

Com uma força inesperada, prendeu o seu braço ossudo ao meu, apertando-o como se estivesse a afogar-se.

Atravessada a estrada, desejei-lhe um bom dia e despedi-me:

-Minha senhora, já cá está sã e salva deste lado...

-Salva estou… quanto ao sã, quem me dera estar…

A senhora continuava a pressionar-me o braço, sem dar qualquer sinal de abrandamento e disse-me:

-Caro jovem, agradeço a sua simpatia e peço-lhe que me leve até à esquina… -e apontava-me a casa bem ao fim da rua.

A ver as horas de entrada ao serviço a aproximarem-se, sorri um pouco encavacado e, com vergonha de dizer não, segui até à esquina indicada.

É claro que os leitores já adivinharam que o meu tormento não chegara ao fim.

-Para dizer a verdade, meu dilecto amigo, eu vou ao Centro de Saúde…se não se importasse de me acompanhar …

Não acreditei no que ouvia. O Centro ainda era bem longe do local onde nos encontrávamos. Pensei em mim como num novo Sinbad, escravizado pelo velho que se encavalitara em torno do seu pescoço e o dominava com as pernas, transformadas em galhos secos que o asfixiavam. Recordei a artimanha do marinheiro para se libertar do jugo: embebedar o velho…

De modo quase inconsciente, avaliei a propensão para a pinga por parte da idosa e não vi sinais de vermelhidão na ponta do nariz, nem cheiro a álcool. O único cheiro que ela exalava era a pó de arroz…

Estava eu nesta indecisão quando passou uma vizinha que me libertou:

-Ora venha daí Dona…vai para o Centro de Saúde não é…continua a saber escolher quem lhe apara os golpes…

E as duas senhoras seguiram, uma pendurada na outra, para o mesmo destino.

Jorge C. Chora


A GATA DOUTORA

                                               
Tenho uma gata pequena, amarela e mimosa. De acordo com um médico ucraniano que por acaso a viu, estes gatos, na sua terra, são designados como gatos doutores: não saem de perto dos doentes.
Quando ele me deu a informação não a contestei, pois foi exactamente isso que aconteceu em relação aos últimos tempos de vida da minha sogra. A gata não a deixava, mas na altura não estranhei, já que ela gostava de gatos. Nos seus últimos dias, já perto dos 97 anos, acamada, tinha a companhia permanente da Bli, assim se chama a minha amarelinha.

Vem isto a propósito de nos últimos tempos ter andado adoentado. Consultados os médicos e realizados os exames prescritos, foram unânimes no diagnóstico: necessidade urgente de um pacemaker, sob pena de poder suceder-me algo que eu espero só aconteça daqui a alguns anos.
E não é que a gata, que sempre gostou de estar ao meu colo, passou a andar dia e noite atrás de mim e por mais voltas que eu desse nunca me largava! Cheguei a enxotá-la:

-Vai agourar para outro lado! –E ela, ouvidos moucos, vinha roçar-se, ronronar com o dobro de intensidade, embrulhar-se nas minhas pernas, mesmo quando eu voltava à carga -  Ó Bli, larga-me que eu não tenciono ir desta para melhor!

E não é que, já com o pacemaker implantado e de regresso a casa, ela não me liga nenhuma! Deus seja louvado!

Jorge C. Chora



quarta-feira, 2 de dezembro de 2015

OS PRÍNCIPES EXISTEM?


 O Mundo está cheio
de pequenos príncipes
e princesas!
Não dos de fantasia,
dos de cabeças coroadas,
mas dos verdadeiros,
dos de carne e osso,
daqueles que nos lambuzam de chocolate
e nos deixam nas faces
as marcas dos seus beijos.

Jorge C. Chora

terça-feira, 1 de dezembro de 2015

AO SABOR DAS MARÉS


Rabisquei na areia da praia,
ao ritmo das marés,
uns versos a pensar em ti.
Vieram as gaivotas e
com os seus bailados,
teceram-lhes uma moldura
feita de pegadas entrelaçadas
como se os quisessem preservar.
Veio o mar e levou-os.
Perante a minha tristeza
murmurou e disse:
Sossega, as tuas palavras
não se perderam,
embalo-as no meu seio
e todos os dias as ofereço,
como almofadas falantes,
aos que se amam por esses areais.


Jorge C. Chora




Jorge C. Chora


segunda-feira, 9 de novembro de 2015

VESTIDA DE SOL


Brilhas de dia,
vestida de sol,
trajando sorrisos,
calçando as asas da liberdade.
És pétala orvalhada,           
gota que sacia,
um grito de amor
para quem,
como eu,
dele necessita.


Jorge C. Chora

domingo, 8 de novembro de 2015

O QUE É A FELICIDADE?


Perguntaram-me o que era
e não soube responder,
porque nunca nisso pensara.
Insistiram e disse, que era
uma sucessão de pequenos nadas.
Como assim? Interrogaram-me.
E voltei a falar:
É acordar ao lado
 de quem gostamos,
beijar quem amamos.
Trivialidades!? Surpreenderam-se.
Pois aí está! A felicidade
não é senão uma enorme
sucessão de trivialidades,
em que não pensamos,
mas sem as quais
teríamos uma vida infeliz.
Desculpem, mas tocaram
à porta e a esta hora,
…a esta hora,
não estou para ninguém,
só para o meu amor
que aí vem!

Jorge C. Chora



sábado, 7 de novembro de 2015

OS ENJOOS DO VIGÁRIO


Sebastião era o vigário de uma pequena vila, cujos habitantes se benziam à sua aproximação. Não era santo nem milagreiro e muito menos a encarnação do demo. Então por que reagiam assim os seus paroquianos?

O padre tinha de prestar os seus serviços em diversas aldeias do concelho, mas havia algo inultrapassável: enjoava ao andar de carro.

Ao seu serviço tinha um velho jipe que conduzia pelas ruas estreitas das aldeias. À medida que conduzia, ia vomitando, conspurcando a batina com pedaços das refeições, agarrado ao volante, como se conduzisse um zepelim. Nunca recusou assistência a ninguém, nem a nenhum dos povoados. Sempre que alguém se cruzava com ele na estrada, benzia-se e saía do caminho, o mais rápido possível, esperando sobreviver ao encontro.

Quando entrava na vila, os habitantes apressavam-se a esconder-se onde podiam. Um visitante estranhou o comportamento dos locais, nomeadamente as fugas e a procura aflitiva de esconderijos, quando o cura surgia ao fundo da rua a conduzir o “tanque de guerra”.

- Ninguém me diz o que se passa? – gritou o incauto.

-Esconda-se…depressa…

E o “turista” agachou-se atrás de um contraforte, mesmo a tempo de ver uma parte do apoio do edifício ser arrancada pelo jipe, com o vigário ao volante a vomitar a batina.

Depois de muito discutir, a população que tinha o maior respeito pelo vigário, achou a solução: falar ao sacristão e convencê-lo a telefonar aos bombeiros, sempre que o reverendo saia, informando-os da hora do seu previsível regresso.

Desde essa época, sempre que ele saia e a sirene tocava, o vigário reclamava:

-Deus me perdoe, mas estes bombeiros contraíram o vício de ligar a sirene! Ainda por cima não há vivalma nas ruas! Terra tão estranha como esta nunca conheci…Perdoe-lhes Senhor que eles não sabem o que fazem!

Jorge C. Chora


sábado, 24 de outubro de 2015

UMA RESPOSTA DO FUNDO DAS ENTRANHAS


 O senhor esperava pela sua mulher que andava às compras nas estreitas ruelas do burgo algarvio. Soprando de impaciência, o marido resignou-se a esperá-la e fê-lo do lado oposto à loja onde a esposa entrara.

Minutos após se ter postado ao lado da montra de uma loja, surge-lhe do seu interior, espécie de gruta de alibábá, um lojista inglês, desvairado, que num português macarrónico o invectiva:

-Eu pagarr imposto, sair da frrente do meu loja!

O cavalheiro olha para o abstruso comerciante e só percebe o que ele lhe diz, após o “poliglota”lhe ter repetido, furioso, a troglodita e esforçada frase, de certo produto de uma custosa aprendizagem, sabe-se lá com quantos anos de um suado esforço.

O cavalheiro olhou-o, incrédulo, e sentiu o sangue a ferver-lhe perante a desfaçatez do comerciante. Conseguiu controlar-se, esboçou o seu melhor sorriso e, de repente, produziu um fortíssimo estrondo intestinal, enquanto proferia as seguintes palavras:

-Embora o senhor só diga asneiras, ofereço-lhe, um presente vindo bem do meu interior, um presente do coração…

E foi aí que o génio, com os dedos apertando o nariz, teve um acesso de boa educação e agradeceu:

-Thank you…

-Nothing at all … – e, logo de seguida, uma nova, estonteante, ruidosa e fedorenta ventania, presenteou o grosseiro” bife” que desandou gritando:

-My God… my God…

Jorge C, Chora



Jorge C. ChoraJorge

segunda-feira, 19 de outubro de 2015

BIGODE RONHOSO


Um bigode traiçoeiro
é uma verdadeira chatice,
eriça-se a propósito do pior e do melhor:
de fúria, quando lida com inimigos,
de prazer ao vê-las bonitas
e muito prazerosas
e quanto mais bonitas são,
Ó meu Deus quão eriçado fica.
Como vê muitas e belas,
anda sempre eriçado.
Mas, como todo o mundo
sabe o que com ele se passa,
é um  bigode ronhoso,  
cuja perfídea  consiste
em denunciar o seu dono,
mal ele perde a tramontana.
Jorge C. Chora


sábado, 17 de outubro de 2015

O CHICO DAS MÚSICAS MANSAS


Foi criado em casa do padre. O cura, nos seus tempos livres, ensinou-o a ler e a escrever, e não se coibiu de lhe dar alguns calduços quando o apanhava distraído. Aprendeu até meia dúzia de termos latinos que empregava para embasbacar os da mesma idade e endrominar os adultos que se deixavam ir na cantiga.

Prestava alguns serviços, como pequenas reparações, carregar e descarregar mercadorias, trabalhos agrícolas…. Amoedava tudo o que lhe pagavam. O pecúlio angariado era guardado numa pequena lata com um único objectivo: comprar um gira discos.

À noite sonhava que estava no baile da aldeia e que dançava, dançava até cair de cansaço, ora com a Madalena ora com a Laura. Ao acordar caía na dura realidade: nunca dançara com nenhuma.

Ninguém aceitava os seus convites para dançar. Passaram-se anos e as recusas mantiveram-se. Para além de o considerarem o oposto de um Adónis, as raparigas sabiam-no pobre, aliás, muito pobre. A primeira característica ainda desculpavam, pois havia-os tão feios quanto ele mas os dois atributos juntos, aniquilavam-no por completo.

Num verão escaldante, conseguiu concretizar o seu sonho: comprou um gira discos  Philipps que funcionava a pilhas e a corrente eléctrica. Na primeira oportunidade, deslocou-se a uma loja de discos e iniciou uma pequena colecção,  subordinada aos seus dois grandes critérios: os de música mansa e os de música brava. Os primeiros, os da mansa, eram discos em que se podia dançar agarrado; os outros, implicavam o afastamento dos pares e saltos endemoninhados.

No terreiro à beira do palheiro, passaram a realizar-se bailes todos os fins-de-semana. Quando o Chico ligava a geringonça, estalavam palmas, ouviam-se vivas e o baile começava. Nas primeiras vezes tentaram marginalizá-lo e a reacção foi imediata:

-Ou as moças dançam comigo ou não há baile! – e, logo a seguir, desligava o aparelho, fechava-o e fazia menção de sair. Impediam-no de se ir embora e ele dançava, depois de colocar as músicas mansas e escolher a parceira.

Quando as dançarinas de que ele gostava não estavam a bailar consigo, Chico aproximava-se do toca- música e colocava um disco de música brava.

E, foi assim que o antigo patinho feio se tornou o cisne da aldeia e conseguiu que algumas o levassem ao palheiro e ele ficasse a conhecer, pelo menos de vista,o extraordinário e belo mistério que as mulheres escondiam.

Enquanto viveu, nunca se esqueceu de nas suas orações, agradecer e pedir ao Senhor, a renovação destes verdadeiros milagres e, à cautela, finalizar dizendo: sei que não mereço mas não me desampares…

E nos dias de baile, ia perfumar-se à adega, com o cheirinho a maçã camoesa, vindo do cimo dos pipos, e cantava imitando o Zeca na canção da Beira Baixa:
"...
Cheira à flor da laranjeira,
Nossa Senhora da Póvoa,
Minha boquinha de riso,
Minha maçã camoesa
Criada no paraíso.”

Jorge C. Chora




terça-feira, 6 de outubro de 2015

CULTURA E PENÚRIA/O ARQUIVO DISTRITAL DE FARO



 Fui ao arquivo distrital de Faro na companhia da minha mulher e, logo à entrada, surpreendemo-nos  ao ver uma enorme escadaria com trinta e três degraus e um patamar a meio.

Após termos vencido o inesperado Gólgota, fomos atendidos por duas simpáticas funcionárias, uma da recepção e a outra da sala de leitura.

O material pedido foi entregue sem demora e procurámos uma mesa que tivesse um candeeiro para nos sentarmos.

Havia nove  mesas com candeeiros mas, surpresa das surpresas, quatro não tinham lâmpadas e uma, embora a tivesse, não funcionava. Restavam quatro mesas, mas uma não contava, porque estava ocupada e aí sim, conseguíamos ter três a funcionar com lâmpadas que acendiam !

Desconheço o preço das lâmpadas, mas será que a penúria dos serviços públicos é tal que não conseguem repor esse material ? Foram esses serviços, uma vez que se trata de cultura, condenados ao esquecimento ?

É certo que a cultura, pelo menos em Portugal, costuma andar de braço dado com a penúria, e há muito que está divorciada da riqueza, mas assim deste modo é um bocado de mais.
Que se faça luz, o mais depressa possível, no Arquivo Distrital de Faro!


Jorge C. Chora

quinta-feira, 1 de outubro de 2015

GOLPADA À ITALIANA NA AMADORA


Hoje, cerca das onze horas e trinta minutos, o condutor de uma carrinha volkswagen de cor escura, acenou-me de um modo efusivo, acompanhando os acenos com buzinadelas, enquanto eu atravessava a passadeira de peões.

Retribuí os cumprimentos, embora não tivesse reconhecido o automobilista. Este parou a viatura logo após a passadeira e quando me aproximei, estendeu-me a mão e declarou que fazia 32 anos. Apertei-lha, dei-lhe os parabéns mas, avisei-o de que não o conhecia. Continuou a tratar-me como se fosse um velho amigo.

Saiu do carro, abraçou-me e deu-me uma forte palmada nas costas, comunicando-me que abrira uma loja no Babilónia, destinada a vender pólos e têxteis. Abriu a bagageira, repleta de pólos ainda embrulhados, pediu-me que segurasse num saco plástico e atirou duas embalagens para o seu interior, dizendo-me que eram”oferecidas”. Recusei a “doação” e o “aniversariante” deixou passar alguns segundos e colocou mais quatro pólos dizendo:

-Ofereço-lhe duas e só me paga quatro.

Recusei de novo.

-Só são dez euros! - insistiu.

-Não obrigado. Além disso não tenho dinheiro…

-Então quanto tem?

-Nenhum…dei à minha mulher o dinheiro que tinha, para ir à mercearia…

Pegou no saco, atirou-o para a bagageira e partiu sem se”despedir”.

Golpadas como esta, via-as há muitos anos em Roma, com a diferença de que, os meliantes não diziam ter nascido naquele dia.


Jorge C. Chora

quarta-feira, 30 de setembro de 2015

CALOTES E PAULADAS

                                                                                
Há cerca de cinquenta anos, os alunos internos do colégio de S. José e Stª Maria em Mangualde, faziam as compras necessárias ao dia a dia, na loja do senhor Nuno,(se a memória não me falha, era assim que se chamava)bem próxima do colégio, quase na esquina que dava para a rua principal. Para além dos sabonetes, pasta de dentes e desodorizantes, comprávamos o tabaco (Definitivos, Porto, Português Suave e tabaco de enrolar…).

Quando as compras excediam a semanada, o sr. Nuno continuava a fornecer-nos o que precisávamos, anotando num livro o valor daquilo que se ia adquirindo.

À medida que íamos tendo dinheiro, pagava-se o que se devia e o sr. Nuno riscava, à nossa frente, a dívida saldada. Melhor ou pior, o método ia funcionando sem males de maior. Acontecia, no entanto, que o dono da loja, para além da paciência que tinha em nos aturar, não revelava a mínima pachorra, sendo mesmo intolerante, face às asneirolas que alguns colegas insistiam em usar. Virava bicho, agarrava no metro com que media as fazendas, saía do balcão e ai de quem permanecesse na loja. Ficava deserta num ápice.

Este puritanismo do sr. Nuno, em breve foi aproveitado por alguns dos estudantes mais velhos e gastadores, nomeadamente os que tinham tido azar à lerpa ou se tinham alargado nas despesas em relação às “moscas”  aos bagacinhos ou aos” licores d’ouro” na pousada. No dia de pagamento das dívidas, formava-se uma fila à porta do estabelecimento. De repente, alguém proferia um chorrilho de asneiras bem alto. Segundos depois, brandindo o metro, surgia o sr. Nuno, provocando uma debandada generalizada.

Os alunos só compareciam na semana seguinte e as palavras eram sempre as mesmas:

-Na semana passada estive cá mas tive de fugir…

-Pois é, peço desculpa, mas fico desorientado quando ouço asneiras… -justificava-se, pesaroso, o sr. Nuno.

À porta, fingindo-se muito penalizados, os matulões da asneirada perguntavam:

-Podemos entrar? Hoje já está bem disposto?

Jorge C. Chora


sábado, 26 de setembro de 2015

SE OS TEUS BEIJOS FOSSEM LEILOADOS



Se os teus beijos
fossem a leilão,
não faltariam licitadores,
e os lances seriam tantos
que para os cobrir teria
de abrir falência.
Fá-lo-ia de bom grado,
se preciso fosse,
mil vezes faliria,
e, só de pensar
que alguém que não eu
te poderia beijar,
declaro-me desde já falido
e cubro   todos os lances
mesmo os que ainda não foram feitos.


Jorge C. Chora


sexta-feira, 18 de setembro de 2015

FORA!

          
As leituras fazem -lhe mal,
causam-lhe urticária,
obrigam-na a pensar,
enrugam-lhe a testa,
ferem-lhe os olhos,
estragam-lhe a cútis,
afundam-na em preocupações,
aborrecem-na mortalmente.
Deusifica a ignorância
que a liberta
do peso dos outros,
das chatices do mundo,
das obrigações que não sente ter,
nem nunca foram dela.
Abaixo a cultura,
fora com a solidariedade,
abaixo os  refugiados,
que se lixem os outros
que não fazem cá falta nenhuma.
Ai de quem me aponte o dedo e diga:
-São seres humanos como tu!
Isso é que era bom!
Como eu? Eu não fui parida,
nasci de uma deusa, fui iluminada
ab initio, por divindades, a insensibilidade
foi-me dada a beber
e nem uma gota deixei,
fui investida na sabedoria,
definitiva, completa e inteira,
e só por uma enorme injustiça e prepotência
me impõem seres de outras culturas
que não a minha
e grito para que todos ouçam:
Fora com os refugiados!

Jorge C. Chora





domingo, 13 de setembro de 2015

MEIO CORTE

                                                           
A senhora ao chegar ao seu prédio, viu uma cobra adormecida à entrada. Arrepiou-se e gritou por socorro, enquanto fugia a sete pés. Um grupo de jovens acorreu aos gritos mas quando viu do que se tratava, escapuliu.

Um idoso que vinha a passar, apoiado numa bengala, aproximou-se e num golpe forte e certeiro, esmagou a cabeça do réptil.

-Já pode entrar minha senhora. A cobra veio deste matagal à sua porta. É necessário alertar os serviços municipais para que este canteiro, com ervas até à cintura, seja limpo.

Mal entrou em casa, mesmo antes de pousar a carteira, telefonou aos serviços que lhe prometeram actuar.

Alguns dias depois, ao chegar a casa teve de esfregar os olhos, certificando-se que não estava a sonhar: o canteiro que abrangia dois prédios, o espaço entre as entradas, estava todo limpo do seu lado mas do outro, continuava com a erva até à cintura.

Um vizinho que morava no prédio do matagal deu uma gargalhada e disse:

-Talvez consiga ainda hoje resolver o assunto…

-Era bom que assim fosse…-respondeu-lhe sorrindo a vizinha – pensando que seria difícil a um homem pobre e sem influência resolver o problema
.
Pela tardinha, qual não foi o espanto da senhora, ao verificar que uma brigada limpava com todo o rigor a metade do canteiro que fora deixada sem intervenção da outra vez. A comandá-los estava um homem com a metade direita do cabelo cortado e, do lado esquerdo uma farta cabeleira. Ao seu lado, em amena cavaqueira, o seu vizinho, o tal que prometera solucionar a questão.

Completada a tarefa, percebeu como se tinha resolvido o assunto tão depressa, ao ouvir o diálogo entre o chefe e o seu conhecido do prédio ao lado:

-Então vamos lá completar o corte do seu cabelo…

-Já não é sem tempo… -desabafou o chefe da cabeça semi-rapada.

Jorge C. Chora


sábado, 12 de setembro de 2015

COGNATA

                                                                                                                                 
Entre as belas da aldeia, Cognata era a mais bela. Pelo nome, só por ele, quem não a conhecesse, seria incapaz de prever quão bela ela era de facto. Não sendo rica, nem sequer remediada, quem podia trajar roupa lavada, sentia-se um degrau acima, o que naquele tempo fazia toda, mas toda a diferença.
Na localidade, raro era o dia em que não lhe recordavam que era pobre, suja e dependente do mais pobre dos habitantes. Cognata sabia que não era bem assim. O prato de sopa com que muitas vezes lhe pagavam os serviços, dividia-o com outras meninas em piores situações do que a dela . Quando descobriram que o pouco que lhe davam ela ainda partilhava, ameaçaram-na:

-Se o que te damos ainda dá para dares aos outros, é porque te damos em demasia…

Cognata prometeu nunca mais distribuir o que lhe “ofereciam”. Colocava-se à esquina, escondendo o prato atrás de si, de modo a que não a vissem, e as protegidas, assim podiam  molhar pedacinhos de pão na sopa que ela continuava a partilhar.

Cognata chegou à idade adulta e candidatou-se a um emprego numa instituição de solidariedade social. Foi recusada. O motivo alegado, veio escarrapachado numa folha de papel couché: Sem hábitos comprovados de solidariedade.

A recusa vinha assinada por uma das senhoras que prometera cortar-lhe a sopa por achar que lha davam em demasia…

Jorge C. Chora



sábado, 5 de setembro de 2015

EUROPA DESMEMORIADA



Face à metralha e às bombas,
aos gritos lancinantes dos
que vêem os filhos esfacelados,
e procuram salvação,
a Europa responde-lhes com um não:
fora daqui, não vos queremos cá!
Erguem-se muros que os evitem,
burocracia que os encalacre,
enxotam-se para outras fronteiras,
e os diferentes países sacodem-nos como podem
e cada um espera que seja o outro a resolver.
Alguns, que ajudaram a agravar a situação,
viram-lhes as costas e com o maior desplante do mundo
dizem:
Nada tenho a ver com isso,
eles que resolvam a situação,
que se amanhem!
Continuam os pais a fugir,
procurando salvar os filhos,
muitos ao colo,
da bestialidade de quem os extermina,
para morrerem sufocados em comboios e camiões,
ou como Aylan, afogados e embalados pelas ondas
que rebentam em praias sepulturas.
Evapora-se a tolerância,
crescem os instintos assassinos e xenófobos,
condutas que envergonham a Europa
e serão recordadas ao longo dos séculos,
como marcas identitárias de um continente
que perdeu o Norte
e a que a acção esclarecida de alguns políticos,
ainda não conseguiu pôr termo.
Corremos o risco de nos esquecermos dos
valores humanos,
de nos tornarmos insensíveis.
Oxalá isso não aconteça!

Jorge C. Chora



sexta-feira, 4 de setembro de 2015

O MERCEEIRO E O CASMURRO

                                               
Quinze minutos antes de a mercearia abrir, já o velho Maurício estava à porta. Gostava de ser o primeiro a ser atendido. Podia escolher à vontade e apalpar a fruta antes de a comprar. É certo que ouvia reprimendas, todos os dias:

- O senhor Maurício não pode mexer na fruta…

E Maurício fazia-se de surdo e murmurava:

-Querias meu patife… tu apalpavas e eu comprava… -E logo em seguida, apanhava o pano com que o merceeiro puxava o lustro à fruta, e fingia que a limpava de novo, escolhendo aquela que mais lhe convinha.

O proprietário da loja acabou por desistir dos ralhetes, deixar de limpar a fruta e atribuir essa tarefa ao Maurício que, em troca do serviço, poderia escolher a melhor para si.

Quem quer ver Maurício feliz e contente, logo pela manhã, é vê-lo a puxar o lustro aos melões e a advertir a clientela:

-Nada de tocar na fruta…para isso estou cá eu…

E quando alguém não liga ao que diz, repreende-os:

-Para surdo, basto eu!

Jorge C. Chora




quarta-feira, 2 de setembro de 2015

A MENINA DA TRISTE FIGURA

                                                                                                
 Chamou-me hoje a atenção, na Amadora, uma condutora jovem com um ar triste, numa viatura pequena e velha, parada num sinal luminoso. Quase instintivamente, sorri-lhe.

A mulher olhou-me, fez uma cara feia, largou o volante e apressou-se a trancar o carro, tudo isto numa fracção de segundos. Primeiro achei graça, pois a resposta da jovem mulher a uma mensagem que pretendia ser de simpatia e compreensão, foi absolutamente inesperada. Depois, num relance muito rápido, verifiquei que ela era pequena, não devia nada à beleza, que o ar que eu identificara como tristeza, seria o reflexo de um interior pobre, preconceituoso e triste.

Que culpa tinha ela, se a vida a tornara assim? pensei, enquanto segui o meu caminho para a mercearia, por passeios com altos e baixos.

E foi assim que hoje, dia 1 de Setembro de 2015, perdi alguns segundos, com uma menina feia, triste e convencida de que o mundo girava à sua volta.


Jorge C. Chora

domingo, 30 de agosto de 2015

A SENHORA QUE BABAVA DESDÉM

                                                                                                                      

A senhora babava desdém: à sua volta ninguém lhe merecia consideração, ou porque não vestiam marcas de referência ou pura e simplesmente por não comprarem na Av. da Liberdade. A sua exigência contemplava as refeições tomadas em restaurantes de luxo e, mesmo dentro dessa categoria, poucos a satisfaziam plenamente.

Às terças levava a sua filha mais pequena a passear. Foi numa dessas ocasiões que se cruzou com uma conhecida que lhe louvou a filha:

-Mas que linda ela é! Uma autêntica princesa…

-Muito obrigado minha senhora…- respondeu-lhe a criança.

-E o que é que ela gostava de ser? -  perguntou, dirigindo-se à mãe, enquanto acariciava a cabeça à criança.

-“Ela” gostava de ser cabeleireira… -respondeu-lhe a miúda com um sorriso malévolo.

-Disparate…que disparate Ermelinda! Cabeleireira!? …Esta minha filha é uma brincalhona… 

-Deixa-te de brincadeiras e diz lá que é médica o que queres ser….

-Sim mamã, é o que tu dizes… -concedeu Ermelinda.

-E médica de quê? - inquiriu a senhora.

-Médica de linguarudas! - respondeu de rajada a gaiata.

E eis que a mãe, descalça o sapato, e dá um grito idêntico aos que ela dava na sua juventude, no bairro onde vivia:

-Anda cá minha cabrita, que já vais ver como elas te mordem!

Jorge C. Chora




quinta-feira, 27 de agosto de 2015

O FIEL AMIGO/O RABO EM TRIÂNGULO OU EM W ?

                                                                                                       
As diferenças entre o bacalhau e outros peixes, que mesmo não o sendo, são apresentados e vendidos como tal, era o tema de conversa de dois amigos ao balcão de uma tasca.

Ambos estavam agradecidos a um inspector de pescado de uma lota, que lhes explicara como distinguir o que era considerado o verdadeiro bacalhau, caso do Gadus Morhua,(do Atlântico) e do Gadus Macrocephalus (do Pacífico),de outros peixes como Saithe, o Ling e o Zarbo.

Tinham aprendido que o verdadeiro, para além da cor palha, da pele que se soltava com mais facilidade, da ausência de manchas escuras ,  era identificado , quase de imediato, pelo rabo: o legitímo tinha a terminação do rabo quase direita, em triângulo, e o falso terminava em W.

A conversa foi interrompida pelo empregado do estabelecimento que levantou um alguidar de plástico com bacalhau de molho, com os rabos bem à mostra e disse:

-Pois é , quem não sabe é comido! Vejam o que é um bom bacalhau..  – e apontou para os rabos em “ W” que mostravam que o peixe era tudo menos o fiel amigo.

Entreolharam-se os amigos e disseram em uníssono:

-Quem sabe, sabe…

E despediram-se do homem que nascera com duas bocas e sem ouvidos, que de alguidar ao colo continuava a mostrar aos clientes um” bacalhau” de  arromba.


Jorge C.Chora

segunda-feira, 24 de agosto de 2015

O PESO DO ARREPENDIMENTO

                                                                                                                  

Um velho e sabido falsário, trapaceiro quase desde o berço, foi apanhado em flagrante delito, após anos de impunidade. Identificado como o mentor de uma extensa quadrilha, foi julgado com toda a pompa e circunstância.

 Servindo-se das suas artimanhas, entrava no tribunal, caminhando como um”velhinho” trôpego, com os lábios trémulos, fazendo vénias consecutivas a todos os que lá se encontravam. Quando respondia às perguntas, era de modo vacilante e desconexo. Causava dó vê-lo e condoíam-se os presentes.

O juiz foi alertado para a marosca do cabecilha, por um funcionário da instituição que o via chegar todos os dias, longe do olhar do público, de automóvel, do qual saia de modo ágil, dirigindo-se do mesmo modo ao tribunal.

Confrontado com a situação pelo juiz, o falsário respondeu de forma compungida:

-Saiba V. Exª que eu ao entrar nesta veneranda e respeitável casa, começo a pensar no que fiz… e o peso do arrependimento apossa-se de mim. Espero que V.Exª leve em linha de conta este meu arrependimento, quando proferir a sentença… - Enquanto pensava para si próprio -  Espero que acredites, meu trouxa,  que eu tenho mais que fazer e encomendas de dólares para satisfazer…
E o juiz, com um sorriso matreiro, dizia-lhe:

-Com certeza…com certeza…tudo será levado em linha de conta…pode contar com isso…

E mais não se diz sobre este falsário, sob pena de estarmos a instruir, inadvertidamente, outros sacripantas…


Jorge C. Chora

sábado, 22 de agosto de 2015

A SAGA DA FAMÍLIA POMAR

                                                                                                         
O senhor estava reformado e era importante na aldeia. Amante do bom vinho, do assim-assim e também do mau, quando não havia outro. Tinha a particularidade de nunca andar aos ziguezagues: caminhava direito que nem um fuso, embora não evitasse os obstáculos. Gostava de ser útil e uma das tarefas de que se incumbia era a de fazer os registos de nascimento da aldeia e de os levar até à vila, pois estava-se já no tempo da república.

Por vezes ou melhor, a maior parte das vezes, preenchia a certidão ou prestava as declarações já na vila, e nem sempre os nomes coincidiam com o que lhe tinha sido dito.

Uma família, farta de ver trocados os nomes, recomendava ao escriba:

-Veja caro senhor que nós somos Laranjo de apelido. Pedimos-lhe que se recorde…

-Caros amigos, não sei eu outra coisa…é mais fácil esquecer-me do meu do que do vosso…

-Muito obrigado. Faça vossa mercê boa viagem e que Deus lhe pague…que da nossa parte também já contribuímos…

Quando a certidão regressava com os selos legais, os pais descobriram, da primeira vez, que tinham tido um Pereirinha e não um Laranjo. E durante muitos anos a cena repetiu-se do mesmo modo: da 2ª coube-lhes receber uma Figueira, depois um Pessegueiro, seguiu-se uma Nespereira e um Laranjal e por fim uma Ameixeira e um Damasqueiro.

A família bem tentou mudar os apelidos, mas quem os recebeu, após ouvir as reclamações, inchou o peito e sentenciou:

-Ou fica tudo na mesma ou ficam a chamar-se a família Pomar!

Não mudaram os nomes, mas o que é facto é quando realizavam as suas reuniões e almoços de confraternização, a vizinhança resumia o acontecimento:

-Mais uma festa da família Pomar!

Jorge C. Chora



sexta-feira, 21 de agosto de 2015

FLOR

    
Quis dar uma flor
ao meu amor,
mas o problema
foi tentar encontrar
uma à sua altura
e não conseguir achá-la.
Depois de muito pensar,
com celofane envolvi
o meu amor,
pois flor como ela, outra não há.


Jorge C. Chora

quarta-feira, 19 de agosto de 2015

DONALD?

   
Numa nação de
imigrantes,
Donald Trump
não se sente
como tal.
Se não é índio
nem deles descende,
e se por eles não
foi convidado,
é um ilegal,
mas nem por isso foi
escorraçado.
Numa nação multicultural,
que quer ser
um farol de liberdade,
e exemplo  mundial,
é no mínimo estranho,
que um candidato “snob”
não veja que,
não é sapato
para tão grande pé
e que os republicanos
não lhe dêem, desde já,
 o que ele merece:
um grande pontapé.

Jorge C. Chora



domingo, 16 de agosto de 2015

O SINO



O sino chamou-lhe a atenção, entre os vários objectos existentes na prateleira da loja: pequeno, sem ser minúsculo, de bronze e com um apoio para poder ser fixo. Era ideal para a sua futura casa de campo.

Inteirou-se do seu preço e arrepiou-se. Temeu não ter consigo o dinheiro suficiente. Rebuscou os bolsos e foi à justa que conseguiu comprá-lo.

Passados alguns anos construiu a almejada casa. À entrada, no pilar esquerdo do portão, pendurou o sino. Sempre que saía ou entrava, tangia-o e quase o acariciava. Adorava o som e à medida que o tempo passava mais dele gostava. Quando chovia, apressava-se a limpá-lo.

Um belo dia, ao regressar a casa, deu pela sua falta: tinham-no roubado, assim como ao respectivo apoio.

Meses depois, uns amigos contaram-lhe que numa determinada terra havia um sino, em tudo semelhante ao seu, com fama de ter sido roubado. Acontecia no lugarejo um estranho fenómeno, pois a população tocava-o de hora a hora. Os “donos” do sino, furiosos com a questão, envolveram o badalo num pano, mas isso não evitou que ele continuasse a ser tocado  às horas e meias horas. Mudaram-no para as traseiras da casa e ainda foi pior, porque ele soava para além das horas anteriores também aos quartos de hora.

Saturados com o que se estava a passar, os falsos proprietários, após uma rápida troca de opiniões, resolveram desmontá-lo e deixá-lo à porta da casa do verdadeiro dono.

O legítimo proprietário ao vê-lo, recolheu-o e colocou-o numa varanda a que só ele e a família tinham acesso. Agora todas as manhãs faz soar o sino para comemorar o magno acontecimento diário: o nascer do sol.

A família, exasperada com o toque de alvorada, pensa seriamente na hipótese de dar sumiço ao maldito sino,não falando na vizinhança.


Jorge C. Chora

sábado, 15 de agosto de 2015

A PROPÓSITO do SIGNIFICADO da PALAVRA "ALGODIO"


A praia do Algodio é uma das praias da Ericeira. Desde há muito que tenciono saber qual o significado da palavra”Algodio”. Tenho-a procurado nos mais diversos dicionários ,incluindo os enciclopédicos, “O Elucidário” de Sousa Viterbo, nos livros sobre a Ericeira, junto de entidades culturais locais e também dos residentes, mas sem sucesso.
Vem isto a propósito de me ter dirigido, muito recentemente, a um residente bastante idoso, já com dificuldade em andar, sem nenhum dente à vista, diria mesmo, com algum exagero, um rival de Matusalém e lhe ter colocado a minha velha questão e recebido a resposta:
-Isso é uma praia daqui da Ericeira!
-Desculpe-me, o que eu queria saber era qual o significado da palavra “algodio”.
-Oh! Isso só uma pessoa muito, mas muito mais velha é que o poderá informar!
Mais uma vez fiquei sem saber o significado do termo e pelo andar da carruagem, encontrar alguém ainda mais idoso do que o meu simpático interlocutor, afigura-se-me uma tarefa dificílima…mas quem sabe!
Enquanto há vida, há esperança…
P.S.- A minha mulher, Maria Adelaide Chora, também interessada nesta matéria, acabou horas depois, por consultar o Dicionário de Arabismos da Língua Portuguesa, da autoria de Adalberto Alves, Imprensa Nacional-Casa da Moeda e encontrou o termo:
Algodio - Top.(Mafra) = Algodeia
Algodeia –Top. (Setubal)=do árabe al-qut’a,”a fracção de terra”,”o lote de terreno”
Tomo como bom o significado, até aparecer prova em contrário.

Jorge C. Chora


sábado, 1 de agosto de 2015

O PROFETA


Largou o calhamaço em cima da mesa e esta vergou devido ao seu peso. Pousou a mão sobre ele, afivelou um ar sério e num tom de voz tonitruante falou assim à assembleia:

-Com a autoridade que me dão as minhas leituras e reflexões, cabe-me esclarecer, bom povo aqui presente, que há só um modo de vencer a crise: é pelo trabalho árduo, pelo suor derramado. Mas este suor de que venho falar-vos, é mais do que uma figura de estilo. É ele que vos vai ajudar a ganhar, desde este momento, o dinheiro que tanta falta vos faz.

A assembleia agitou-se e redobrou a atenção.

-Como fazer? Tomem o máximo de atenção, pois é preciso cumprir algumas normas. O primeiro passo é inscreverem-se naquela mesa e pagarem uma quantia simbólica. O segundo é comprarem, por um preço acessível, uma proveta com a qual recolherão todas as gotas de suor possíveis, sejam vossas ou de outrem. A que se destinam essas gotas de suor? Devem ser entregues na fábrica de essências, pois com elas se farão perfumes, bastando inscreverem-se como compradores dos mesmos, para constarem na lista de fornecedores da matéria-prima. Os primeiros mil a inscreverem-se, terão direito, mediante o pagamento de uma módica quantia, a serem vendedores da fábrica.

Uma multidão desesperada avançou para a mesa de inscrições de modo desordenado, lançando o cartapácio ao chão. O neto de um dos assistentes, mira o alfarrábio e grita sem parar:

-O livro não tem nada escrito! Nem uma linha!

Quando a multidão tornou a olhar para a mesa do orador, já ele lá não estava e pairava no ar um cheiro a enxofre.


Jorge C. Chora

sábado, 11 de julho de 2015

O HOMEM QUE RECUSAVA DAR



Fui ao parque esticar as pernas,
mas foram os braços e os ouvidos
 os que mais se cansaram, tantos os
pedidos de moedinhas que ouvi,
e alguns a que atendi.
O pior estava para vir, ao ver
a mendigar, um homem que nos cafés
costumava bradar,
mesmo para quem o não desejasse ouvir,
que não dava nada a ninguém,
pois bastava ter saúde para trabalhar,
e só não o fazia quem não queria,
e se ria quando lhe perguntavam:
-E onde é que há trabalho ?
-Procure que encontra…-respondia.


Jorge C. Chora


terça-feira, 7 de julho de 2015

MARIA BARROSO


A morte bateu-lhe à porta,
mas foi  advertida
de que as lutadoras não morrem:
Deixam o exemplo das suas vidas !
D. Liberdade, D. Igualdade, D. Justiça
 e a D. Democracia, por saberem
como ninguém, da importância
desses valores, não deixam de estar
enlutadas,  por uma das filhas dilectas
na defesa dessas  causas, a quem
o seu amor sempre disse:
Presente!


Jorge C. Chora

segunda-feira, 6 de julho de 2015

OXI

                
Contorce-se furiosa
a Europa de Golias,
tal a pedrada
certeira
do pequeno David.
Às ameaças várias,
a pequena grande Grécia,
sem se amedrontar
 respondeu:
Oxi !
Às injúrias e ataques
peçonhentos,
 ergueu-se e disse:
Oxi !
Aos acordos dignos,
 que respeitem
o seu desenvolvimento,
 saberá  responder:
Nai!
Aos outros, aos da
submissão, ficou,
desde já,
sem temor, nem tibiezas
o aviso do povo grego.
Oxi!

Jorge C. Chora


terça-feira, 16 de junho de 2015

O PORCO SUJO



.A casa era pobre, térrea e pequena. Em frente existia um pequeno quintal, cheio de ervas, sem qualquer muro ou vedação a separá-lo da rua. Lá morava um homem, cuja idade ninguém conhecia. Andava sempre de camisola interior e só era visto de dois em dois dias. Era conhecido como Porco Sujo devido ao seu aspecto andrajoso e pouco limpo.

Pese embora o seu aspecto e a pobreza da habitação, tinha fama de ser rico ou melhor, riquíssimo. À noite, espreitavam-no e viam-no a escavar um buraco, às escuras, de modo silencioso. Adivinhavam-lhe os gestos, os ritmos da escavação e o arfar de cansaço.

-É ali que ele enterra o dinheiro! Ou o ouro e as jóias… - comentavam os vizinhos.

O tempo foi passando e, pela noitinha, a vizinhança, de atalaia, via-o repetir, sem qualquer falta, a mesma tarefa. Mortos de curiosidade e ganância, resolveram investigar.

Numa das suas ausências, foram observar se a terra naquele local, que tão mal se via ao luar, estava ou não remexida. Mal a pisaram ela cedeu um bocado. Confirmadas as suspeitas, retiraram-se e combinaram, daí a dois dias, a altas horas da noite, quando o homem estivesse a dormir, irem escavar o buraco e apropriarem-se do tesouro do” Porco Sujo”.

Nomeados três homens para executarem a tarefa e combinada a hora da incursão, três da manhã, retiraram-se todos para as suas respectivas casas.

No dia aprazado, munidos de pás, iniciaram os trabalhos de escavação. O terreno estava mole e, de repente, cedeu e abriu-se um buraco enorme no qual caíram os três. Ficaram atolados numa papa mole e fedorenta, sem se conseguirem mexer.

Com o passar das horas, os que os esperavam concluíram: fugiram com o tesouro! Resolveram ir todos, pé ante pé, em fila indiana, saber o que se passava. Um após o outro caíram no buraco, sem um grito para não alertarem o proprietário do tesouro.

Até de manhã, debateram-se, sem sucesso, para conseguirem sair do local malcheiroso, onde o”Porco Sujo” despejava os seus dejectos.

Quando o proprietário se levantou e se deparou com o espectáculo da vizinhança atolada nas suas fezes exclamou:

-Oh meu Deus! Querem ver que a vizinhança veio ajudar-me a limpar o meu terreno e logo por azar caiu na minha fossa? Peço mil perdões.

E passou o resto do dia a tirá-los, com a ajuda de uma corda, e a repetir por cada um que saía:
-Os senhores perdoem-me, mas parecem uns autênticos “Porcos Sujos”…

Jorge C. Chora  

sábado, 6 de junho de 2015

O HOMEM DE NENHURES QUE ERA DE ALGURES


Fez-se um silêncio súbito na assembleia. O orador deixou de ser apupado. Centenas de pessoas presentes escutaram sons estranhos vindos, não sabiam se de longe se de perto, nem de onde. Escureceu. De repente levantou-se uma enorme ventania. Voaram cadeiras, papéis, mesas, pessoas e o orador que estava a ser objecto das vaias.

A muitos quilómetros deste local, numa outra reunião, o lugar da presidência estava vago. Eis que do céu caiu, no dito espaço, o orador voador vindo de nenhures. À sua frente tinha um microfone e na mão cinco pequenos papéis que apanhara no ar. Refez-se do baque e falou assim:

-Meu bom povo. Dispenso-me das saudações e agradecimentos iniciais que todos vós sabeis quais são. O que prometo, cumpro. -E vendo que do céu caíam peixes, continuou - Começo por vos oferecer uma abundante refeição gratuita, pese embora, me tenha custado uma fortuna.

Uma estrondosa ovação interrompeu o discurso. Com um ar compungido acenou, com ambos os braços, como se estivesse a ordenar o pouso de uma ave, que se fizesse silêncio.

Pegou nos papéis e leu as vinte promessas, quatro por cada papel que tinha na mão e recolhera ao acaso.

O espanto percorreu a assistência e a energia do orador teve o condão de a electrizar.

-O estranho ao poder! – gritaram,  entusiasmados, os fãs instantâneos.

-Aceito, bom povo, a vossa vontade soberana e esclarecida. Retiro-me agora para os meus aposentos, se tiverem a bondade de me indicarem onde são.

E a multidão, acompanhou o novo governante ao palácio. Mesmo antes de se instalar, escreveu um bilhete e colocou-o num envelope lacrado. A carta rezava assim:

Amigos,
Estou de novo instalado. Dou-vos a nova direcção. Apressem-se. Quando chegarem terão de novo tudo o que perderam nesse local maldito.

O governador,

DIGOQUEFAÇOESÓFAÇOAOSAMIGOS


Jorge C. Chora




segunda-feira, 1 de junho de 2015

A VINGANÇA DO MELRO E DA NUVEM

  

Lourenço foi ao parque passear, levando na mão um balão. Encontrou uma corneta no banco onde se sentou. Pôs-se a tocá-la e os pássaros começaram a chilrear de modo alegre e harmonioso.

Minutos depois foi admoestado pelo guarda do jardim:

-É proibido fazer barulho.

-Bom …isto não é propriamente barulho…- respondeu-lhe Lourenço a medo.

-A esta hora perturba quem cá está!

-Mas aqui não há ninguém! E são dez horas da manhã… -ripostou, de modo tranquilo, Lourenço.

-Após as nove é proibido. Já passa uma hora das nove… -disse o guarda com ar de poucos amigos.

-Mas isso é no horário nocturno e não no diurno – contrapôs o jovem.

-Quem decide se é de noite ou de dia sou eu! - berrou o vigilante.

Nesse mesmo instante, um grande melro aliviou os intestinos, enquanto o vigilante tinha a boca aberta.

-Está multado, por associação criminosa com o pássaro porcalhão… - vociferou, enquanto cuspia, furioso, pedaços de cócó do atrevido melro.

E uma nuvem cuja dança fora interrompida, tornou-se carrancuda, liquefez-se e desabou inteira sobre o homem que não gostava de alegria, de crianças, e muito menos de música.


Jorge C. Chora

sexta-feira, 22 de maio de 2015

O ANTIGO SURDO OU O HOMEM QUE OUVIA A BARBA A CRESCER


Fartou-se de ser surdo. Percorreu seca e meca, gastando fortunas para ouvir melhor. Aparelho grande, pequeno ou médio, todos comprou, na esperança de resolver o seu problema.

A ânsia era tal, e sempre que experimentava um, jurava a pés juntos que “agora sim, conseguia ouvir” e comprava a geringonça.

O armário das geringonças transbordava de aparelhos imprestáveis, para desespero de sua esposa. Ela bem tentava auxiliá-lo nas consultas:

-Ó senhor doutor, ele lê-lhe os lábios. Fale-lhe por trás e pergunte-lhe o que disse…

Ele interrompia-a de imediato:

Ó mulher, se eu te digo que com este ouço, é porque ouço…

Um belo dia acertou e comprou um aparelho com o qual conseguia de facto ouvir. O seu sorriso tornou a surgir. Voltou a conversar e a sua disposição, essa, tornou-se exuberante.

-Então o senhor chama-se Vetónio?

-António… -corrigia o interlocutor.

-Pois, Vetónio, eu ouvi da primeira vez….Sabe, já fui surdo mas agora, o diabo seja cego surdo e mudo se não consigo ouvir a minha barba a crescer!

E, logo a seguir, acrescentava, com a mulher dizendo em simultâneo, tantas vezes tinha ouvido a mesma tirada:

-E ainda o comboio está a sair do Rossio e eu já o ouço na Amadora!

Será este o surdo que consegue ouvir a economia a crescer? Também ouve? Que aparelho comprou V.Exa?


Jorge C. Chora

terça-feira, 19 de maio de 2015

LISBOA CONSPURCADA

Lisboa meu amor,
fedes que nem uma cortesã barata,
infestada de proxonetas imprestáveis,
escroques e crápulas
 que são como pústulas,
nas tuas ruas grafitadas
que a urina e fezes
cheiram, salpicadas,
a qualquer hora
de imundícies
que se amontoam
nas tuas ruas,
que só não são belas porque
és povoada e frequentada
 por alguns que não te amam
e te desmerecem.

Jorge C. Chora


terça-feira, 12 de maio de 2015

ESTA GENTE COMPRA TUDO!


De dedo em riste e cachucho a brilhar no dedo, entrou na sapataria e comprou umas botas de couro de cano alto. Logo a seguir, entrou noutra e pagou um cachecol. Entretanto, ao observar uma série de compradores transportando pequenos sacos, não se conteve e exclamou:

-Esta gente compra tudo!

Palavras não eram ditas e adquiriu um enorme casaco. Depois de o mirar e remirar achou que ele ficava bem com uma pulseira que vira no início da sua incursão aquisitiva. Não ficou a remoer a decisão: trouxe-a.

Enquanto a vendedora a auxiliava a colocar a pulseira, escandalizou-se com duas ou três pessoas que escolhiam peças da ourivesaria:

-Esta gente compra tudo!

Enquanto caminhava ao longo dos compridos corredores do centro comercial sentiu fome. Reparou nos restaurantes desertos e resmungou:

-Compram tudo e depois não têm dinheiro para comer!

Ao passar por um pequeno espaço de comida rápida, acercou-se do balcão e pediu:

-Um cachorro, daqueles da promoção, e um copo de água…

Enquanto comia, congratulava-se por estar a poupar dinheiro e ser diferente da gentalha que comprava tudo.

-Que gente… compram tudo e nada poupam!

À saída, viu um apito metálico exposto numa montra de desporto e não resistiu.

-Não podia deixá-lo escapar… - suspirou, encantada, apitando três vezes, antes de repetir – Esta gente compra tudo!

Jorge C. Chora



segunda-feira, 4 de maio de 2015

D. BRAZIA E A DESPACHADA BARBEIRA

        
D.Brazia foi internada na véspera de uma operação . Na manhã seguinte recebeu a visita da barbeira. Surpreendida viu-a colocar os seus instrumentos de trabalho na sua cabeceira.

-Ora bom dia! Vamos a isso? – perguntou, sorridente.

A doente encolheu-se e quase a medo perguntou:

-A isso? Não sei ao que se refere!

-Aos pelinhos…

D.Brazia gagejou:

-Não estou a perceber…

-Ah! Será que já está depilada?- questionou a barbeira, quase pedindo desculpa.

-Não, não …eu vou ser operada à tiróide…

A barbeira olhou para a doente e estremeceu a rir:

-Ainda bem que me disse! Julgava que ia ser operada às partes baixas …

-Não …é à tiróide – repetiu.

-Bom, já que aqui estou, não quer aproveitar? – perguntou a barbeira, antes de arrumar o material de trabalho e sair.

A partir desse dia D.Brazia passou a ter pesadelos, sonhando que se transformava em franga, perseguida pela sorridente barbeira, de tesoura e máquina em punho e que lhe gritava:

-Tem mesmo de ser, não pode ir assim para a operação!

Jorge C. Chora