terça-feira, 29 de dezembro de 2015

A REAL E INSÓLITA FUNÇÃO DE UMA ANTIGUIDADE

                         
Gosto de ir a feiras de antiguidades. Este fim-de-semana, ao visitar uma, vi uma molheira bastante antiga que me fez recordar um episódio com elas relacionado.

Numa das vezes que fui ao Museu de Arte Antiga, detive-me num expositor em que existiam peças variadas de porcelana e faiança. Uma delas chamou-me a atenção pois, parecendo uma molheira, achei estranho que fosse maior do que aquelas que conhecia e tivesse um bico demasiado largo e aberto para cumprir bem essa função.

Isto foi há uns anos mas, lembro-me bem de ter andado à roda do expositor, ter mirado e remirado a peça, sem chegar a nenhuma conclusão. Não desisti e acabei por consultar o conservador, responsável por aquele departamento.

Contou-me uma interessante história, que não recordo com todos os pormenores, pois já se passaram um ror de anos, mas que em traços gerais ainda consigo relembrar-me. A peça era um urinol portátil, usado pelas damas da corte francesa há uns séculos, quando tinham de assistir aos longuíssimos sermões de um conhecido e respeitado abade.

Uns anos depois deste episódio, um casal amigo com quem jantei, contou-me que passara um enorme martírio num almoço a que fora, pois os anfitriões serviram o molho numa “molheira”idêntica à do museu, que lhes tinha custado os olhos da cara num antiquário.

Questionei-o sobre o que tinha feito e ele disse-me:

-Tive uma gastrite súbita! E nem precisei de fingir!


Jorge C. Chora

quinta-feira, 24 de dezembro de 2015

UM NATAL ÀS AVESSAS

                                                                                 
Nos finais da década de cinquenta, eu e o meu irmão tivemos um Natal inesquecível. Na altura, teria sete anos e o meu irmão cinco e estávamos na Beira, Moçambique, cidade onde nascemos.

Na véspera do Natal mal contínhamos a ansiedade, antevendo as prendas que receberíamos no dia 25. Deitámo-nos muito cedo e tentámos dormir com um olho aberto, na esperança de conseguirmos surpreender o Pai Natal na sua visita.

Pelas cinco da manhã, já era de dia, saltámos da cama e corremos à sala de visitas, onde se montava a árvore de Natal. À volta da árvore não havia nada, nem uma única prenda. Com a respiração suspensa, voltámos a olhar e vimos ao lado do sofá, dois pares de sapatos velhos, daqueles que se compravam na Rodésia e com os quais pontapeávamos tudo o que nos surgia à frente, fossem pedras, latas ou bolas.

Sem proferirmos uma só palavra, vasculhámos várias vezes a sala, até nos convencermos de que nada, mas mesmo nada lá estava. Recolhemos ao nosso quarto, encostámos a porta, sentámo-nos nas camas e o meu irmão, muito baixinho exclamava:

-O filho dum cão do Pai Natal…é mesmo cão…

Eu, sem um pingo de sangue, aprovava com a cabeça o adjectivo empregue, esperando que ninguém ouvisse o que lhe chamávamos.

Que bem nos sabia designar assim o estupor que se esquecera de nós, embora o disséssemos baixinho, pois sabíamos que de outro modo teríamos de suportar o piripiri na língua, castigo que nos seria aplicado, mesmo que os pais não estivessem presentes, pela nossa adorada e rechonchuda ama, chamada Lina.

Depois de muito padecermos, ainda com a fúria em alta, lá pelas sete da manhã, surgiram os nossos pais que, fingindo-se surpreendidos com o que acontecera, sugeriram que, caso não nos tivéssemos portado mal, talvez o Pai Natal se tivesse enganado na sala e os tivesse deixado noutra.

Mal ouvimos falar nessa possibilidade, voámos casa fora e descobrimos na sala de jantar, os brinquedos cobiçados.

E a Terra voltou a girar!


Jorge C. Chora

quarta-feira, 23 de dezembro de 2015

O REGRESSO A LM

                       

Por volta de 1966,os meus pais tiveram, ao fim de muitos anos de trabalho, direito a gozar uma licença graciosa. Vieram eles e viemos nós, eu e o meu irmão.

Logo no início das férias o meu pai teve de tratar de um assunto em Lisboa, creio que de seguros, numa morada algures no Bairro Alto.

Depois de calcorrearmos ruas e vielas, de subirmos e descermos, de perguntarmos a muitos transeuntes se sabiam indicar-nos a malfadada morada, ouvimos quase sempre a mesma resposta:

-Desculpem mas não somos daqui… -E miravam-nos, a mim e ao meu irmão, enormes(para a época) e eu, um autêntico texugo, mas de pouca idade, de calções como era o hábito em Moçambique, como se estivessem na presença de dois extraterrestres.

Nunca tínhamos estado numa terra em que não encontrássemos os naturais. Continuámos com a busca até que o meu pai, exasperado exclamou:

-Estamos perdidos…se  ao menos soubesse onde estamos!

-Ó pai, mas isso sei eu!

-Então diz, já ajudas em alguma coisa… - e esboçou um sorriso de esperança.

Não me fiz rogado:

-Estamos na rua dos cansados!

O meu progenitor engasgou-se, abriu os olhos desmesuradamente e…por fim, comentou:
-Esse teu humor ainda me mata!

E foi quando vislumbrámos, por acaso, o nome da rua que tanto procurávamos. Encontrado o número da porta, obtivemos uma informação inesperada: a companhia mudara para um local bem longe dali, para os lados de Santos, julgo eu.

No dia seguinte, antes de partirmos à descoberta da nova direcção, fui advertido:

-Não venhas de novo com a história da rua dos cansados…

-O pai tem razão, aqui não é como lá…lá andamos trezentos quilómetros para beber um café e ajudar a fazer a digestão. Aqui andamos uns metros e achamos que fizemos uma viagem de circum-navegação…

-Mau..é a nova versão da rua dos cansados?

E não sei se foi por esta e por outras, que eu e o meu irmão ficámos internos no Colégio de S. José e Stª Maria, em Mangualde, e eles regressaram felizes e contentes a LM
.
Só dois anos depois é que voltámos a LM e a atenazar os “velhotes”.

Jorge C. Chora


domingo, 20 de dezembro de 2015

AS "PORTAS LARGAS" OU A "EMBAIXADA DO CARTAXO"

                                                                                               
 Ambos os nomes designavam a mesma taberna, situada na esquina da Rua Elias Garcia com a Av. Miguel Bombarda, perto dos Bombeiros da Amadora. Era um pólo de atracção para quem gostava de bons petiscos e melhor pinga. Conhecida como “Portas Largas”, (as portas de entrada eram de facto enormes) a sua fama estendia-se à região de Lisboa, e entre os seus fregueses contavam-se jovens, menos jovens e os da terceira idade. Foi assim durante décadas.

Entre os locais, muitos designavam-na como “Embaixada do Cartaxo” e, perdidos e achados era lá que, entre uma delícia gastronómica e outra, jogavam ao dominó e às cartas.

Há muitos anos, precisei de realizar obras em casa. Contratei um pedreiro, cliente assíduo do espaço.
No dia e à hora marcada para o início da empreitada, esperei em vão pela chegada do profissional. Passaram horas e eu sempre na esperança da sua vinda, aguardei, sereno, pela sua chegada: algo se tinha passado.

Pela hora do almoço, dei um pulo a sua casa e a esposa informou-me de que o marido tinha comido mais cedo e voltara para o seu escritório, vulgo,”Embaixada do Cartaxo”. Resolvi lá aparecer e o senhor garantiu-me que daí a meia hora estaria em minha casa. A meio da tarde, voltei à “Embaixada” e não tive coragem de o interromper: banqueteava-se com um prato de caracóis.
Retirei-me sem ele me ver mas encontrei na rua a sua mulher:

-Não me diga que ele não apareceu em sua casa! Se o quiser apanhar tem de ser logo de manhã, quando ele sair de casa. Vou dizer-lhe que está à porta pelas 9h,mas esteja meia hora antes.

Dito e feito. Às 8.30 h do dia seguinte, quando ele saia sorrateiro de casa, tinha-me à sua espera. Só foi comigo depois de lhe prometer ir, à tarde, lanchar à “Embaixada”.

À hora marcada, com uma pontualidade de fazer inveja ao mais pontual dos britânicos, marchámos os dois para a “Embaixada”. Um lanche na “Embaixada” era coisa demasiado séria para haver atrasos.

Jorge C. Chora




terça-feira, 15 de dezembro de 2015

BOAZINHA


A idosa senhora apresentava dificuldades em deslocar-se. Pediu à jovem e roliça vendedora da mercearia, se fazia o favor de lhe escolher uma fruta boazinha.

-Boazinha, boazinha… isso sou eu… - brincou a comerciante.

Gavião, o velho marido da idosa, de bigode eriçado e apoiado numa bengala que mais parecia um cajado, resmungou:

-…Zinha, ela é… uma zona e muito zona!

A esposa franziu a testa mas, quase de imediato, esboçou um sorriso e disse-lhe:

-Há muito que não me elogiavas Gavião! Com essa disposição, posso ter esperança na tua ressurreição?

Gavião fechou-se em copas mas resmungou de novo:

-Posso não ter ressuscitado…mas que ela é zona…é zona!

Bom, pode ser que ela se transforme numa espécie de código postal, pensou a esposa, recusando-se a aceitar o fim da subida aos céus.

Jorge C. Chora

                                                 

sábado, 12 de dezembro de 2015

O CHÁ FRIO E A ELEGÂNCIA NAS ESPLANADAS DE LM

                     O
Elegantes e bronzeadas senhoras, entre muitas outras, povoavam as esplanadas dos cafés de LM, na década de sessenta e princípios da de setenta.

Nas férias tinha o hábito de ir à baixa, nomeadamente ao café Continental, entre outros, em que ouvia algumas damas pedirem:                                                                                                                                                                                                                                      
-Por favor, um chá frio …

Intercalavam os goles de chá com fumaças aromáticas, pois o fumo dos cigarros da época, diferentemente dos actuais, cheirava bem. Na altura fumava e não lhes gabava o gosto desta alternância entre o tabaco e o chá.

Um dia sentei-me numa mesa acabada de ficar vaga, em que as chávenas de chá ainda não tinham sido retiradas e cheirou-me a uísque. Quando o empregado veio, um dos mais antigos da casa, perguntei-lhe se serviam a referida bebida em chávenas. A velha raposa sorriu-me, fez-me um sinal com o indicador como a pedir-me silêncio, e disse-me em voz baixa:

-O chá frio é assim…

Na mesa ao meu lado, um senhor já entradote, que eu só conhecia de vista, fez que sim com a cabeça e disse-me, exagerando propositadamente a pronúncia:

-Em “Bijeu”, que é a minha terra, isto também acontece, só que é vinho branco, o que algumas damas bebem em chávenas…

O sábio de Viseu ainda me ensinou uma frase, caso fosse necessário proteger as discípulas de Baco que cambaleassem:

-Depois do acidente, nunca mais conseguiu recuperar…

Agradeci e daí em diante, nunca mais estranhei as dificuldades de locomoção apresentadas por algumas senhoras, após o consumo de várias chávenas de chá frio.

Jorge C. Chora




O RITUAL DOS CUMPRIMENTOS DIÁRIOS ENTRE MANEL E ALFREDO


-Bom dia camarada! –  cumprimenta Manel num tom de voz que ecoa no café de Alfredo.

A resposta de Alfredo não se faz tardar:

-Vai marrar com um comboio!

 Ser chamado de camarada provoca-lhe alergia. Alfredo teme o dia em que os pêlos do corpo lhe caiam todos com semelhante tratamento.

Manel não desarma:

-Vá lá, despacha-te… e com bons modos…o trabalho dá saúde…

-Se é assim por que estão os hospitais cheios de trabalhadores!? Tem calma… -responde-lhe Alfredo.
-Pouca conversa…despacha-te… -insiste Manel.

Consumidos e pagos os produtos solicitados, despede-se:

-Olha Alfredo. não te vás embora que eu ainda volto…

-Hum… -resmunga Alfredo., condenado a ficar no café até às 2oh, mas não diz mais nada, não vá  Manel dar-lhe mais da avinagrada música matinal.

E sabem que mais? Manel vai várias vezes por dia ao café e sempre que entra diz:

-Camarada…

Hoje vi e ouvi alguém, sem ser o Manel, entrar no café e dizer- lhe:

-Bom dia camarada…

É caso para ter pena  …mas penas têm as galinhas… e Alfredo sabe bicar… e bem…

Jorge C. Chora


MEMÓRIAS DE LM


Nos idos de sessenta, ou no ano de setenta , a fama de Ravi Shankar estava em alta em LM. Vem isto a propósito de um filme que vi, em que ele e outros convidados, demonstravam o domínio instrumental do sitar e da música indiana.

O filme passou no velho cinema Scala, cuja centralidade fazia esquecer a sua antiguidade e uma certa falta de conforto, se comparado com o de outras salas existentes na cidade.

O espectáculo foi longo, demasiado longo para os meus dezassete ou dezoito anos. Embalado pela música, pelo calor e pela inactividade forçada, acabei por ir cabeceando,  e logo a seguir adormecendo por breves períodos. Quando acordava, olhava ao meu redor: não era o único que dormia. Relaxei e deixei-me ir na onda, acompanhado pelos dois espectadores que me ladeavam.
À saída vi um dos senhores, que me tinha acompanhado no abraço a Morfeu, comentar:

-Que espectáculo magnífico! Um tributo a Euterpe!

E um senhor indiano que ainda vinha meio a dormir e os conhecia, corrigiu:

-Um tributo a Sarasvati, que essa é que é a deusa da música …

Atravessei a rua, sentei-me na esplanada do Continental e bebi duas imperiais: uma em homenagem a Euterpe e outra a Sarasvati.

E se mais deusas houvesse, mais “Laurentinas”  tinham marchado…


Jorge C. Chora

O NOVO SINBAD



Há uns anos, quando me dirigia a um dos cafés do bairro, uma idosa pediu-me ajuda para atravessar a passadeira de peões. Prontifiquei-me a ajudá-la.

Com uma força inesperada, prendeu o seu braço ossudo ao meu, apertando-o como se estivesse a afogar-se.

Atravessada a estrada, desejei-lhe um bom dia e despedi-me:

-Minha senhora, já cá está sã e salva deste lado...

-Salva estou… quanto ao sã, quem me dera estar…

A senhora continuava a pressionar-me o braço, sem dar qualquer sinal de abrandamento e disse-me:

-Caro jovem, agradeço a sua simpatia e peço-lhe que me leve até à esquina… -e apontava-me a casa bem ao fim da rua.

A ver as horas de entrada ao serviço a aproximarem-se, sorri um pouco encavacado e, com vergonha de dizer não, segui até à esquina indicada.

É claro que os leitores já adivinharam que o meu tormento não chegara ao fim.

-Para dizer a verdade, meu dilecto amigo, eu vou ao Centro de Saúde…se não se importasse de me acompanhar …

Não acreditei no que ouvia. O Centro ainda era bem longe do local onde nos encontrávamos. Pensei em mim como num novo Sinbad, escravizado pelo velho que se encavalitara em torno do seu pescoço e o dominava com as pernas, transformadas em galhos secos que o asfixiavam. Recordei a artimanha do marinheiro para se libertar do jugo: embebedar o velho…

De modo quase inconsciente, avaliei a propensão para a pinga por parte da idosa e não vi sinais de vermelhidão na ponta do nariz, nem cheiro a álcool. O único cheiro que ela exalava era a pó de arroz…

Estava eu nesta indecisão quando passou uma vizinha que me libertou:

-Ora venha daí Dona…vai para o Centro de Saúde não é…continua a saber escolher quem lhe apara os golpes…

E as duas senhoras seguiram, uma pendurada na outra, para o mesmo destino.

Jorge C. Chora


A GATA DOUTORA

                                               
Tenho uma gata pequena, amarela e mimosa. De acordo com um médico ucraniano que por acaso a viu, estes gatos, na sua terra, são designados como gatos doutores: não saem de perto dos doentes.
Quando ele me deu a informação não a contestei, pois foi exactamente isso que aconteceu em relação aos últimos tempos de vida da minha sogra. A gata não a deixava, mas na altura não estranhei, já que ela gostava de gatos. Nos seus últimos dias, já perto dos 97 anos, acamada, tinha a companhia permanente da Bli, assim se chama a minha amarelinha.

Vem isto a propósito de nos últimos tempos ter andado adoentado. Consultados os médicos e realizados os exames prescritos, foram unânimes no diagnóstico: necessidade urgente de um pacemaker, sob pena de poder suceder-me algo que eu espero só aconteça daqui a alguns anos.
E não é que a gata, que sempre gostou de estar ao meu colo, passou a andar dia e noite atrás de mim e por mais voltas que eu desse nunca me largava! Cheguei a enxotá-la:

-Vai agourar para outro lado! –E ela, ouvidos moucos, vinha roçar-se, ronronar com o dobro de intensidade, embrulhar-se nas minhas pernas, mesmo quando eu voltava à carga -  Ó Bli, larga-me que eu não tenciono ir desta para melhor!

E não é que, já com o pacemaker implantado e de regresso a casa, ela não me liga nenhuma! Deus seja louvado!

Jorge C. Chora



quarta-feira, 2 de dezembro de 2015

OS PRÍNCIPES EXISTEM?


 O Mundo está cheio
de pequenos príncipes
e princesas!
Não dos de fantasia,
dos de cabeças coroadas,
mas dos verdadeiros,
dos de carne e osso,
daqueles que nos lambuzam de chocolate
e nos deixam nas faces
as marcas dos seus beijos.

Jorge C. Chora

terça-feira, 1 de dezembro de 2015

AO SABOR DAS MARÉS


Rabisquei na areia da praia,
ao ritmo das marés,
uns versos a pensar em ti.
Vieram as gaivotas e
com os seus bailados,
teceram-lhes uma moldura
feita de pegadas entrelaçadas
como se os quisessem preservar.
Veio o mar e levou-os.
Perante a minha tristeza
murmurou e disse:
Sossega, as tuas palavras
não se perderam,
embalo-as no meu seio
e todos os dias as ofereço,
como almofadas falantes,
aos que se amam por esses areais.


Jorge C. Chora




Jorge C. Chora