Tivemos na Beira, eu e o meu irmão, duas cadelas, uma
chamada Carriça e a outra Lady. A primeira, foi um primo nosso, o Viriato, que
a trouxe. Viu-a no mato e apaixonou-se por ela. O focinho preto denunciava uma
boxer, jurava ele a pés juntos, assumindo o estatuto indiscutível de “grand
connaisseur”. Comprou-a por 15 escudos, o que na época, convenhamos, não era nenhuma
pechincha, tratando-se de um miúdo. O dono também lhe poderia, eventualmente,
ter assegurado que a Carriça, assim se viria a chamar a cadela, era uma boxer
puro sangue, prontificando-se a atestar a sua linhagem, por escrito, caso
soubesse escrever, ou por impressão digital no notário, se preciso fosse e para
tal tivesse dinheiro.
A Carriça era, afinal, uma rafeira de perna e pêlo curto,
uma meia-leca desavergonhada, sempre grávida e que paria filhos lindos, às
dúzias. Embora vadia, era uma mãe extremosa e educadora ríspida, sempre pronta
a arreganhar o dente quando não era obedecida e os cachorros se afastavam.
A Lady, essa foi-nos oferecida no Garuso, uma localidade
próxima da fronteira da Rodésia, pelo dono de uma “farm” que criava cães. A
bicha era produto de um devaneio de uma perdigueira que acasalara com um leão
da rodésia. Era loura a bichana, com um porte de princesa e uma meiguice digna
de nota. Trouxemo-la para nossa casa no Macúti/Beira, perto da praia.
A Lady, ao contrário da Carriça, era enorme e a sua ternura
era directamente proporcional ao seu tamanho. Passava a maior parte do tempo
connosco na praia. Se ocasionalmente não nos tivesse acompanhado, logo que
desse pela nossa falta, ia lá ter.
Na praia, os seus instintos protectores encontravam-se em
estado de alerta. Os seus olhos seguiam-nos quando jogávamos futebol, vólei ou
outra coisa qualquer. Mal entrávamos na água, levantava-se e ia para a beira
mar mantendo-se sempre de pé a observar-nos. À medida que nos afastávamos, ela
entrava na água e ia ter connosco. Nadava à nossa volta e só sossegava quando
lhe agarrávamos a cauda e ela nos trazia para a praia, ora agora um, e logo de
seguida o outro, caso lá se deixasse estar.
Os seus serviços não se esgotavam com o transporte efectuado.
No areal deitava-se de lado e ajeitava-se, de modo a oferecer-nos a barriga
como almofada.
Já em casa agradecia-nos o banho de mangueira que lhe
dávamos, lambendo-nos as mãos e não se sacudia de imediato, evitando
salpicar-nos.
Enquanto vivemos na Beira, nunca conseguiu ter filhos vivos,
mas cuidava dos da Carriça, quando ela não estava, e deixava-se morder, sem se
defender, quando ela regressava.
Só conseguiu ter filhos, só um ou dois de cada ninhada,
quando nos mudámos para LM e arranjou um pai, quase tão grande como um pónei e
mais feio que o demo.
A Carriça não nos acompanhou na deslocação, pois, os
rodesianos com que ela engraçava, a levaram para o seu país, de acordo com quem
a viu ser “transportada” e porque deixou que a levassem já que, não tenho
qualquer dúvida, ronhosa como era, ninguém a levaria contra a sua vontade.
Jorge C. Chora