segunda-feira, 25 de agosto de 2014

A cavalo dado...

                                                                                                                                

Ardiam-lhe os pés. Há quatro dias que andava descalço. Uma pequena distracção, ao refrescar-se no fontanário, fora a causa de ter ficado sem os sapatos. Ao seu lado, dois colegas sem-abrigo, executaram a mesma tarefa do que ele, segurando-os numa das mãos.”Era o que eu deveria ter feito”, culpabilizou-se.
Este percalço trazia-o enervado. Era mais um a acrescentar à estranha semana que passara: fora expulso do seu local de pernoita, perdera o apoio do restaurante onde lhe davam as sobras das refeições, pois tinham decidido dá-las a outro:

-Não podemos apoiar sempre o mesmo! Temos de variar!

Ao escolher outro sítio onde dormir, acabou por acordar com uma dor violenta num braço, seguida de uma ordem ensurdecedora:

-Daqui para fora…rápido … -e o agressor apontou-lhe uma direcção vaga.

-Para onde posso ir?

Ainda mal acabara a frase e já estava a levar uma pancada tão forte como a primeira.

A semana fora para esquecer. Tomou a direcção de um balneário público, rezando para que conseguisse, ao menos, uns chinelos.

À entrada, cruzou-se com alguém cuja cara não lhe era desconhecida. Olhou-lhe para os pés e soube de imediato de quem se tratava: do ladrão dos seus sapatos.

Não conseguiu deitar-lhe a mão. O larápio evaporou-se.

O funcionário do balneário ao vê-lo entrar descalço exclamou:

-Todos os diabos têm sorte! O cavalheiro que acabou de sair deixou uns chinelos muito velhos…mas a cavalo dado… ou é daqueles que só querem coisas novas?

Não lhe respondeu. Limitou-se a olhá-lo sem o ver. Virou-lhe as costas e saiu não sem que antes o funcionário ensaiasse umas desculpas esfarrapadas.

Estava decidido a encontrar o ladrão e a reaver o que lhe pertencia. Ao fim da manhã encontrou-o a experimentar sapatos numa loja. O homem que o atendia era o mesmo que o agredira durante a noite. Entrou, recolheu os seus sapatos que se encontravam postos de lado e, já à porta, gritou:

-Olha ò sem-abrigo…o dono da loja tem a mania de dar sovas aos que dormem na rua! Vê se escolhes o melhor calçado que ele te vai dar!

O dono parecia picado por um aguilhão. Deu um salto de corça e fez menção de apertar o pescoço ao falso cliente. Ainda mal tocara no chão quando foi projectado para fora da loja e se estatelou no passeio.
O “cliente” escolheu dois pares de sapatos, mas voltou atrás e tirou um terceiro que deu à sua vítima do fontanário:

-Desculpa lá “pá” pelo incómodo que te causei…

-Obrigado mas…

-Se não queres, vai lá devolver. Aproveita para lhe pedir para ele te dar mais uns murros…

Deu dois passos, voltou-se para trás e arremessou-os para a porta da loja:

-Fazem-te mais falta a ti do que a mim!

- Onde vamos parar! Agora os aristocratas vivem na rua! Onde é que isto já se viu! – berrou, incrédulo e furioso, o ladrão de sapatos.

Jorge C. Chora


sexta-feira, 1 de agosto de 2014

A terra por onde passou o tio de Maria Bonita

Maria Bonita era a menina dos olhos de seu tio. Educado nos melhores colégios do antigo império, homem de brios e honras, era  senhor de muitas viagens e seguidor dos antigos códigos de cavalaria. A sua sobrinha era a filha que nunca tivera. Embora o homem não fosse velho, fora atingido por uma velhice precoce e sofria da doença do “alemão”, como diziam na vila.

Maria não era só bela mas também namoradeira. Sempre que encontrava o tio este apertava-lhe as bochechas e perguntava-lhe:

-Minha linda, como estás ? Tens-te aplicado na escola?

Maria sorria e dava-lhe um beijo repenicado na face e seguia o seu caminho sob o olhar protector do tio. Maria já tinha trinta anos.

Fora perto da praça que ouvira pela primeira vez alusões malévolas acerca do comportamento da sua Maria. O homem que as proferira, ainda hoje não sabe se levou um coice de uma mula ou de um cavalo. Sabe, isso sabe-o bem, que ficou desdentado. Episódios como este repetiram-se várias vezes antes que os linguarudos percebessem que não deviam proferir gabarolices.

Um dia chegou à vila um homem mau e mal-educado, vindo sabe-se lá de onde. Dizem-nos que dos quintos–do-inferno. Postou-se em frente ao tio de Maria e desatou a dizer-lhe mal da sobrinha. Fiado na sua gigantesca estatura, ria-se enquanto debitava as insanidades. Acordou no hospital, com dores violentas nas partes. O médico que o assistiu,  fora aluno do tio de Maria,   perguntou-lhe :

-Se tivermos de lhe retirar os testículos, pode escolher a vagina que quer neste catálogo… - e deixou-lhe um grosso volume para uma escolha mais adequada.

Ainda hoje, quem passar por uma vila com muitos desdentados e malcriados de vozes fininhas, fica a saber que por lá passou o tio de Maria Bonita.


Jorge C. Chora