domingo, 19 de agosto de 2012

A contra-ordem


Quando os trabalhadores lhe surgiam com multas de trânsito, o homem enfurecia-se:

-As regras são para se cumprirem! - e o vozeirão enfurecido ecoava pela empresa.

O resto do dia, passava-o a remoer o valor das coimas, o desperdício de dinheiro e a inconsciência dos condutores. Mandava descontá-las nos salários dos trabalhadores até ao último cêntimo e, quando se tratava dos filhos, cortava, nas mesadas, as verbas pagas.

Recusava-se a ouvir as queixas de que havia excesso de zelo, de que iam só a meia dúzia de quilómetros a mais, numa recta sem movimento. O industrial torcia o nariz. Pareciam-lhe difíceis, inacreditáveis tais factos.

Um belo dia, ao volante da sua viatura foi mandado parar e autuado na fatídica recta, exactamente como lhe tinha vindo a ser contado pelos outros. Que havia um pequeno excesso, havia. Nada a dizer. Não sorriu, não reclamou, limitou-se a pagar. Regressou à empresa.

Sentado à sua secretária, agarrou no telefone e ordenou a vinda de dois camiões cheios de pedras e mandou despejá-las na clareira onde eles se escondiam. O terreno era seu e acabava-se o esconderijo.

Foram santos os dias que se seguiram. Uma semana depois, ao regressar a casa, na mesma recta, cruzou-se com dois carros que vinham a uma velocidade tal que o empresário ficou sem saber de que marca eram as viaturas.

Regressou à empresa, tornou a pedir a vinda de dois camiões, desta vez, para levantarem as pedras. Mandou ainda instalar no esconderijo, uma mesa e bancos de pedra para que os profissionais tivessem mais condições de trabalho. Pensou melhor e ordenou que a mesa e os bancos fossem amovíveis, não fosse dar-se o caso de querer controlar a situação de modo rápido e estar impedido de o fazer.

Jorge c. Chora

quinta-feira, 16 de agosto de 2012

A prova do sacristão

Na aldeia pouco havia que fazer após o trabalho. Os homens reuniam-se na taberna, pagavam e bebiam rodadas. Todos participavam e, por isso, eram inúmeros os copos que bebiam, quer lhes apetecesse ou não, pois ficavam mal vistos e arredados do convívio aqueles que se mostrassem renitentes.

Um dia, o sacristão, que fazia parte da roda e estava farto de beber, resolveu moderar o consumo dos discípulos de Baco. Propôs que só podiam continuar a beber os que estivessem sóbrios depois do 4º ou 5º copo de vinho.

- Estamos todos bem! –berraram alguns.

-Veremos. Quem conseguir subir ao púlpito da igreja velha, sem se apoiar, estará em condições de beber mais do que quatro copos … - sugeriu o sacristão.

Em silêncio, dirigiram-se ao templo. Em fila indiana, alumiados pelos isqueiros, esperaram a respectiva vez de subirem. Os degraus de acesso ao púlpito eram sete, grandes e irregulares, enroscados a uma das colunas da igreja, sem guarda nem corrimão, e muito distantes das paredes.

Metade dos presentes apoiou-se no pilar e foram impedidos de prosseguir a prova. A outra metade tombou da escada no quinto ou no sexto degrau.

-Estamos conversados… - concluiu o sacristão.

-Mas como diabo te lembraste disto? - interrogaram, furiosos, os excluídos.

-Isso agora… é segredo… -defendeu-se o sacristão.

-Mau…ou te confessas ou a prova fica sem efeito! – reclamaram os presentes.

-Porque é que, quer eu quer o senhor padre, andamos, de vez em quando, de braço ao peito?

Jorge C. Chora

segunda-feira, 6 de agosto de 2012

Desenrascados


Ana e Isabel, em Nova Iorque, entraram num restaurante e escolheram a refeição num extenso e complicado menu, após um jogo de empurra do escolhe agora tu que eu já escolhi ontem, que se vinha a desenrolar há vários dias.

Quando a refeição foi servida, Isabel notou que lhe faltava um guardanapo e era preciso pedi-lo.

-Olha lá Ana, como se diz guardanapo em inglês?

-Por acaso sei, mas… estás sempre atida a mim e é altura de te desenrascares…

Dito e feito. O gesto é tudo. Isabel levou as mãos à altura da boca e imitou o acto de limpar os lábios.

-Napkin?- ajudou o empregado.

-O.K- transmitiu Isabel com o polegar levantado.

Nesse momento, na mesa ao lado, um senhor de certa idade, sem dizer uma única palavra, apontou para a lista das comidas, batendo os braços arqueados, simulando um bater de asas, enquanto cacarejava.

-Chicken? – ajudou o empregado.

Ana e Isabel, de sobrancelhas franzidas perante a cena, tiveram como que uma revelação e perguntaram ao idoso:

-Português?

-Sim minhas senhoras!- retorquiu o homem que cacarejava, levantando-se respeitosamente.

-Ora abóboras!-exclamou o empregado.- Podíamos todos ter falado na nossa língua!

Jorge C. Chora

quarta-feira, 1 de agosto de 2012

A gata costureira

De dois em dois minutos a gata salta-lhe para o colo e ronrona. É ronha, pura ronha, pois ela sabe que vai ser corrida dali para fora. Tenta dar-lhe a volta a ver se a deixam ficar, se o dono amolece com as suas demonstrações de afecto. Sabe-a toda, mas mesmo toda!

Neste momento ela acabou de lhe saltar, pela sexta vez, para o colo. Antes que a ponham a mexer, tira a unhas e agarra-se às pernas, cravando-as nas calças e, de seguida, puxa. Mais um rasgão nas calças de ganga. Levanta-se aborrecido. O telefone toca e ele acaba por ter de sair sem tempo para se trocar.

Tem de se deslocar ao café onde o esperam uns amigos e respectivos filhos. Ao chegar os jovens olham-no com atenção. Miram-no e remiram-no e acabam por lhe perguntar onde comprou as calças. Ri-se. Eles insistem. Ele acaba por responder:

-Como estas não há nenhumas. Foram arranjadas por uma gata costureira.

Perante o espanto demonstrado, teve de explicar em detalhe o que queria dizer. Quando finalmente se libertou da curiosidade juvenil e se preparava para dar atenção aos adultos, ouviu um chorrilho de pedidos que o deixou estarrecido:

-Quando podemos ir ter com a gata costureira? Podemos fazer um horário para estarmos com ela? Amanhã já é possível iniciar as visitas? – insistiram os jovens.

Tinha lançado, para mal dos seus pecados, a sua gata como costureira. Era só o que lhe faltava!

Jorge c. Chora