sexta-feira, 27 de junho de 2014

A importância de usar uma canadiana

                                                                                                                
Andava de canadiana fosse para onde fosse. Esquecia-se no entanto dela, com alguma frequência, tendo de regressar aos locais onde estivera para a ir buscar.

Um dia perguntaram-lhe porque a carregava se não precisava dela. Olhou a interlocutora com um ar de profunda estranheza e respondeu-lhe:

-Quem lhe disse, minha cara senhora, que eu não preciso dela? Não só preciso, como ela me é indispensável para o dia-a-dia. Sem ela não faria sequer um terço do que me proponho fazer!

-Mas…

-Ora acompanhe o meu raciocínio… -cortou a dona da bengala – Quem me daria lugar nos transportes públicos? E nas filas do supermercado?

- Desse ponto de vista , a senhora tem toda a razão! – concordou – E nos bancos?

- Também aí tenho vantagens… e há mais – e chegou-se ao ouvido da interessada e murmurou: Já reparou que se por acaso vir alguém que lhe interessa, pode desequilibrar-se quando lhe convier, e aterrar no seu colo?

Ruborizou-se ao ouvir semelhante estratégia. Ao despedir-se, agradeceu a sinceridade nas explicações, mas não deixou de lhe dizer:

-A boa fé dos outros é comovente…

No dia seguinte, encontraram-se, ambas com canadianas, na paragem do autocarro.


Jorge C. Chora

terça-feira, 10 de junho de 2014

Esteja à vontade!

       João estava sentado num pequeno banco, com a enorme barriga quase colada ao pescoço, as nádegas a tocarem no chão. O seu desconforto era total. O director da empresa, a seu lado, acomodava-se num sofá grená, tipo “chesterfield”,  bem alto em relação à banqueta onde se sentava o criativo da empresa. Mais adiante, o sócio capitalista maioritário estava instalado numa enorme poltrona onde caberiam mais dois como ele.

 Esperavam a visita dum investidor que libertasse a firma dos constrangimentos financeiros. João criara os produtos e adaptara-os ao mercado. As despesas sumptuárias dos outros dois, tinham conduzido o projecto a um beco sem saída. João nunca tivera voz activa em questões de dinheiro.

Quando o novo investidor chegou, todos se levantaram, menos João.

-Peço-lhe desculpa mas estou com uma enorme dificuldade em levantar-me… é só um minuto…

-Deixe-se estar que o seu lugar na empresa está garantido. O mesmo não se passa com os outros dois senhores presentes… - declarou o recém-chegado.

 Na reunião marcada para o dia seguinte, só João foi convocado. Ao entrar na sala, verificou que o novo dono já se encontrava sentado na poltrona gigante. Olhou em redor e não viu o sofá. Só lá havia a banqueta, mesmo em frente à poltrona.

-Faça o favor de se sentar e estar à sua vontade… -disse-lhe o novo dono - apontando para o minúsculo banquinho.


Jorge C. Chora

domingo, 1 de junho de 2014

Pedaços de céu

  

Bate o pé e insiste
que quer como prenda, pedaços de céu.
Rebola o pai os olhos, e pensa
que desconhece o que é que ele quer.
Dói-lhe a cabeça, só de pensar
que não sabe o que o filho tanto deseja.
Pedaços de céu?
Que desejo tão estranho é esse
que  nem sequer suspeito do que se trata?
Pedaços de céu como prenda,
no dia da criança?
Volta à carga e pergunta-lhe,
esperando que ele tenha mudado de ideias:
-Que prenda queres para o dia da criança?
-Pedaços de céu – insistiu.
Desespera.
-Diz-me meu filho, o que são os pedaços de céu,
que eu não sei. Ajuda-me!
Francisco sorri e diz-lhe:
-São livros, é assim que a avó
Lélé fala deles!
E não é que ela tem toda a razão!

Jorge C. Chora