sexta-feira, 30 de dezembro de 2016

A EMIGRANTE


Arregalou os olhos ao ver entrar-lhe em casa, por debaixo da porta, um líquido estranho que se espalhou pela passadeira. Espreitou pelo óculo da porta e deparou com o velho e corpulento vizinho alemão, com o seu doberman à trela, parado à sua entrada.

Esfregou os olhos, duvidando do que observava. Abriu devagar a porta e mesmo assim não acreditou no que lá estava: um charco de urina e um grande cócó.

Uma enorme fúria começou a apossar-se de si. Abeirou-se do corrimão, espreitou para os andares que lhe ficavam em baixo e ouviu, alto e em bom som o vizinho comentar com os outros inquilinos, que a emigrante fazia as necessidades no patamar.

Falando alemão tão bem ou melhor do que o porcalhão, desceu a correr as escadas até ao andar onde estavam, pôs-se em bicos dos pés e gritou-lhe bem alto:

-Acha que a minha porta é a sua casa de banho para ir lá fazer cócó e chichi?-E estendeu-lhe um pano, enquanto ordenava – Vá imediatamente limpar o que sujou.

Apanhado em flagrante, gagejou:

-Não fui eu…foi o meu cão…

- Vou fingir que acredito…rápido …rápido -ordenou-lhe a pequena portuguesa, apontando-lhe com o dedo a direcção da sua casa.

No dia seguinte, aqueles que até aí nem sequer a cumprimentavam, à sua passagem, inclinavam a cabeça e saudavam-na:

- Guten morgen meine dame…

Claro que o desfecho desta situação não correspondeu à realidade. A educadíssima portuguesa, teve não só de suportar a imundície avelhacada deste vizinho pouco civilizado, como também limpar diariamente o produto das suas investidas selvagens.

Casada com um cavalheiro alemão, tiveram de suportar esta situação até que  a vivenda de ambos estivesse terminada.

Decorriam os anos 60, a portuguesa era professora do liceu e adquirira a nacionalidade alemã.


Jorge C. Chora

quinta-feira, 15 de dezembro de 2016

ORFÃOS OUTRA VEZ


A minha avó foi
ao mercado e ainda
não voltou.
Há três dias que eu e
a minha irmã esperamos
pelas batatas que foi buscar. 
Tenho medo,
mais pela minha irmã
do que por mim,
que já tenho quatro
anos e ela só tem um.
Ela ainda não voltou,
sei que regressará,
pois desde que
levaram os pais para o céu,
que a avó nos abriga das bombas,
e consegue comida para
nos dar.
Ouço tiros e vejo uma sombra
à entrada do abrigo onde estamos.
O meu coração bate depressa,
só pode ser a minha avó.
É de facto ela, estendida no chão,
 ensanguentada,
que estica o braço e tem
na mão um tomate semi-podre
e diz:
-Desculpem meus filhos, foi
a única coisa que consegui…


Jorge C. Chora

terça-feira, 6 de dezembro de 2016

O BEM-ME QUER


Um bem-me-quer
é um sentimento
feito flor,
tecido por dois seres
que se sentem bem,
a pensar e a cuidar
um do outro,
gritando em uníssono,
quando, por acaso,
 se distanciam:
- Anda para ao pé de mim!


Jorge C. Chora

segunda-feira, 5 de dezembro de 2016

OPINIÕES


Banalidades são
o que achamos,
em geral,
das opiniões
que os outros dão.
Muitas serão,
algumas não.
As suas,
quem sabe,
que peso terão.
As opiniões,
no entanto,
têm diferentes pesos
e valores:
recuse as daqueles
 que nunca as mudam,
porque as não têm,
como diz o poeta,
assim como a dos
que as alteram,
constantemente,
de acordo com as
modas e as ocasiões,
esperando aplausos
pelas suas exibições.

Jorge C. Chora

domingo, 4 de dezembro de 2016

A MAGIA DO CHOCOLATE


Chocolate e amor
são o verso e reverso
da mesma moeda,
em tudo semelhante
a um casal
que se enlaçou
e nunca mais
se separou.
Quem aceite e aprecie
 um chocolate,
mesmo que não seja linda,
torna-se bela aos olhos
de quem lho deu:
tão bela que pode
ascender à categoria
de divina e surpreender-se-á,
se os seus braços
forem substituídos por asas,
aos olhos do seu amado.


Jorge C. Chora

sábado, 3 de dezembro de 2016

É A VIDA!



Lancei uma semente
ninguém a apanhou,
semeei-a e ninguém me ajudou.
Na hora de a colher,
ninguém trabalhou,
na hora de a comer,
toda a gente a provou.


Jorge C. Chora

sexta-feira, 2 de dezembro de 2016

O PINGA-AMOR


Que bem me sabem
as palavras de amor
que me murmuras ao ouvido,
conluiadas ao vento
suave que se faz sentir,
inundando-me a alma
que, de pronto se acolhe
ao teu sentir e to devolve,
em tons de rosa,
 tal e qual um pinga-amor.


Jorge c. Chora

segunda-feira, 28 de novembro de 2016

O SEMÁFORO


O semáforo
promove a aldeia,
dá-lhe categoria,
obriga as viaturas
a pararem em
locais onde nunca
se deteriam.
Entre o vermelho
e o verde
vai uma eternidade
e dá para ver,
que não há ruas
nem à direita
muito menos à esquerda
e que casas,
 nem sequer vê-las.
Ah! Se não houvesse
semáforos
na minha aldeia,
que triste seria
a vida
lá na terra.
E porque assim é,
que se peçam
no mínimo quatro:
Para a entrada,
saída e para a metade
equidistante,
sobrando o quarto
 para o dia
em que se lembrem,
de que faz
falta uma estrada,
para a futura casa
do autarca.


Jorge C. Chora

sexta-feira, 25 de novembro de 2016

CHARLIE CARLITOS

                                                     
Charlie, ou melhor, Charlie Carlitos, anda há semanas com um humor de cão. Acalentou o sonho, durante anos, de emigrar para os “States”. Aprendeu inglês com o sotaque americano, a que nem faltava o longuíssimo “ÓHÓHÓH YÁÁÁ”.

Afeiçoou-se à coca cola, filiou-se na classe dos ruminantes da pastilha elástica, frequentou “macdonalds” e comeu as medonhas “french fries standardizadas” , de batata sensaborona.
Diga-se, de passagem, que esta ambientação foi facílima, porque, mesmo na aldeia, havia convertidos ao modo de vida do outro lado do mar.

Fez das tripas coração e, imaginem, mudou de Carlitos para Charlie para uma mais fácil integração nos “States”. Arrependeu-se a tempo da americanização do nome e amenizou a sua atitude traiçoeira para com o país amado, deixando acoplado ao Charlie o seu antigo nome, passando a ser o Charlie Carlitos.

Zangou-se com todos os que tentaram adverti-lo de que não poderia esperar que o tratassem lá, como na aldeia. Como assim? Perguntava, irritado, acelerando a sua Harley, o que impedia qualquer conversa sobre o mesmo assunto.

Como se estava em tempo de eleições na terra do Tio Sam, aconselharam-no a ouvir o que os candidatos diziam, nomeadamente o multimilionário, sobre os mexicanos, latinos e outros que tais.
Quando isto lhe diziam, a sua fúria redobrava, perguntando, raivoso, o que é que ele tinha a ver com esses indivíduos. Explicavam-lhe que os portugueses eram confundidos, de propósito ou não, com essas etnias e que até eram considerados não brancos. Torcia o nariz, fungava e dizia entre dentes: vai embarretar outro.

Certo, certo, é que passou daí em diante, a ouvir os debates com atenção e foi ficando consciente das propostas estranhas que se iam fazendo em relação aos estrangeiros …

No dia das eleições não se deitou. Desde que soube quem foi o vencedor, contraiu, ou parece ter contraído, a doença do humor de cão.

Agora, sempre que passa pela sua Harley, olha-a de lado e diz:

-Sei lá se não pertenceste ao milionário…


Jorge C. Chora

quinta-feira, 24 de novembro de 2016

AVÓS E AVÔS

Avós e Avôs

A mãe da tua mãe
é a tua querida avó,
sendo a sua respectiva mãe
a tua bisavó.
Ela, por sua vez, teve mãe,
que foi a tua trisavó,
que era filha da tua tetravó
e, por sua via,
como ninguém nasce sem mãe,
 também teve avó,
que te deu
outras tantas avós,
e que acabou por ficar com
menos antepassados do que tu,
que tiveste os que ela teve,
mais os que ela te deu.
Ainda tens de contar
com outros antepassados
tão especiais como as
avós que são os
avôs, cuja palavra usa
sempre um chapéu.


Jorge C. Chora

sexta-feira, 18 de novembro de 2016

O CALHAU


Rola a pedra
na rua poeirenta,
à mercê
de quem passa
e lhe quer dar pontapés.
Cai perto de uma calçada esburacada, que a convida:

-Ó pedra, dava-me jeito que aqui ficasses…

-Não me importava…

Ainda não terminara e alguém a pontapeou.
 Tombou a dois passos de um quiosque de jornais:

-Ó pedra, que falta me fazes para segurar os jornais…

-Não me importava…

Ao terceiro pontapé, parou junto a uma loja de artesanato:

-Ó pedra, o teu formato quadrado vinha mesmo a calhar…uma pincelada
  e zás … eras uma casinha…

-Não me importava…

Logo a seguir, atiram-na contra uma vidraça que fica estilhaçada:

-Maldito calhau que não fazes cá falta nenhuma!


Jorge C. Chora

quarta-feira, 16 de novembro de 2016

ESTRELA-DO-MAR



A estrela-do-mar
viu peixes a voar
e quis asas;
Caranguejos a andar
e quis pernas;
Cardumes a nadar
e quis barbatanas;
Só não sabe
que todos os que têm
o que ela não tem,
também querem
ser estrelas como ela.


Jorge C. Chora

domingo, 13 de novembro de 2016

A ILHA PARAÍSO OU O REMÉDIO SANTO

                                                  

Um navio negreiro afundou-se perto de uma ilha. Salvaram-se, a muito custo, três homens, que chegaram exaustos à praia. Dois desses náufragos, eram negros que, tinham sido capturados na costa africana. O terceiro era o dono do negócio que tinha embarcado no navio, comandado por um capitão seu amigo, e assim mataria dois coelhos de uma vez:
Primeiro faria a viagem para o Brasil para vender pessoalmente os escravos e, em segundo, escolheria pessoalmente a ”mercadoria”.

O negreiro foi o último a chegar à praia. Estafado pôs-se a gritar por ajuda. Os dois homens que lá estavam puxaram-no para terra e de imediato, colocaram-lhe em torno do pescoço uma liana e prenderam-lhe os pulsos com outra. Um pouco mais tarde, quase a morrer, surgiu outro naufrago, que era o contramestre da embarcação. Embora estivesse quase moribundo, prenderam-no, tal qual como tinham feito ao negociante negreiro.

No dia seguinte, os antigos cativos, ambos guerreiros capturados por um inimigo que os vendera aos negreiros, ordenaram aos seus novos escravos, por sinais, que se levantassem.

O contramestre e o negreiro não perceberam os que eles queriam. Os guerreiros arquearam o sobreolho e comentaram entre si:

-Estas bestas não percebem o que se lhes ordena! -E acto contínuo, bateram-lhes com uma liana que tinham entrelaçado, até eles se colocarem de pé.

Arrastaram-nos até umas árvores e entregaram-lhes uns machados toscos que tinham fabricado com umas pedras afiadas, atadas por lianas a uns paus. Ensinaram-lhes a cortar, empilhar e aparelhar a madeira. Descobriram que os escravos brancos nada sabiam sobre construção de casas, caça, pesca, cozinha e nada de nada. À custa de bofetões e chibatadas foram aprendendo a realizar as tarefas básicas que os seus amos guerreiros necessitavam.

O pior estava para vir. Na ilha não havia mulheres e os guerreiros fizeram deles as suas “parceiras”.
O negreiro e o contramestre tentaram a fuga por diversas vezes, mas logo eram apanhados e agredidos durante vários dias.

Depressa aprenderam a colocarem-se à disposição dos seus amos e a utilizarem um óleo de peixe que aplicavam nos sítios corporais mais adequados, de modo a suportarem a concupiscência dos guerreiros.

Um dia, aproximou-se da ilha uma embarcação e os dois escravos conseguiram chamar-lhes a atenção, nadar até ela e serem recolhidos. Estavam tão queimados do sol que a tripulação quis acorrentá-los junto aos cativos negros e só desistiram de o fazer porque eles falavam o português do reino e acabaram por ser identificados como reinóis.

-Desculpem lá, iam ficar perto desses brutos…são uns animais de carga que nada sabem fazer…

-Pois…pois… - engasgaram-se os ex-escravos reinóis, murmurando para si próprios  - “mal sabem vocês o quão brutos eles são e o que têm para vos ensinar…”

Já no reino nunca mais ninguém os ouviu depreciar os negros e os escravos. Por vezes estranhavam os seus amigos, o facto de prepararem um certo óleo de peixe e frequentarem as imediações da igreja de S. Domingos, sede do culto de Nª Srª do Rosário, frequentado por uma confraria de homens negros…

Quando ouviam e viam alguém a maltratar escravos, só lhe diziam: pode ser que algum dia naufragues numa certa ilha…


Jorge C. Chora

domingo, 6 de novembro de 2016

O INESQUECÍVEL MISTER GEORGE/BEIRA,ANOS 50 E 60

                                             
Os empregados mais novos, assim como os jovens que o visitavam, tratavam-no com respeito, envolvendo-o na designação afectuosa de mister George.

Mister George não era treinador de futebol de equipas adolescentes e, muito menos das seniores: era um velho cozinheiro. Os seus cabelos brancos e os movimentos lentos, assim como a fala pausada e um tanto ou quanto entaramelada, salpicada por um copito agora e outro depois, enquanto confeccionava os seus lauto e requintados repastos, compõem um retrato à la minuta de alguém que, lá em casa, era considerado um “Grand Chef avant garde”.

Mister George, como artista que era, tinha algumas grandes “pancas”. Quando os meus pais chegavam a casa e lhe perguntavam o que havia para jantar, nem sequer se dignava responder-lhes:

-Ele já está feito…é surpresa…depois levo….- E dali não arredava pé.

E de facto, uma banal refeição era metamorfoseada num ágape, com entradas, apresentação e sabores que ainda consigo recordar, passados 50 anos!

Nem tudo eram rosas. Não eram raros os dias em que ao chegarmos para jantarmos, nos apercebíamos de algo estranho, pois só havia bifes e batatas fritas e o cozinheiro tinha-se evaporado. O que acontecera? Mister George tinha, como habitualmente, feito a refeição, mas abrira uma ou mais garrafas de espumante, previamente refrigeradas, e comera repimpadamente a sua obra-prima.

Talvez por estas e por outras é que mister George, cobiçado nas redondezas, fazia orelhas moucas aos convites que recebia. Lá em casa era um artista e nas outras, quiçá, ao fazer algumas das suas, um cozinheiro insubordinado.

Nos dias que se seguiam às libações báquicas, mister George penitenciava-se e até se permitia, de modo magnânimo, levantar o véu sobre o que iria ser servido:

-Hoje é uma entrada de marisco…

-E…

A concessão estava feita. Mister George nada mais diria.

-Está quase a sair…

E foi assim que tivemos um fabuloso cozinheiro, que se fartara de andar pela ”estranja”, trabalhara em hotéis e resolvera pousar  lá por casa.

Ainda hoje sonho com o euromilhões, não para comprar um palácio, um maserati ou um rolls (um bentleyzinho talvez…) mas para ter a possibilidade de contratar um mister George ou alguém que a ele se assemelhasse, nem que fosse uma bigoduda com metade dos seus dotes e com o dobro das suas manias!

Hellas! Sonhos de pobre são o diabo!


Jorge C. Chora

sexta-feira, 4 de novembro de 2016

BEIRA NOS ANOS 6O/LADY,A CADELA SALVA-VIDAS E A CARRIÇA VAI-COM-TODOS

            
Tivemos na Beira, eu e o meu irmão, duas cadelas, uma chamada Carriça e a outra Lady. A primeira, foi um primo nosso, o Viriato, que a trouxe. Viu-a no mato e apaixonou-se por ela. O focinho preto denunciava uma boxer, jurava ele a pés juntos, assumindo o estatuto indiscutível de “grand connaisseur”. Comprou-a por 15 escudos, o que na época, convenhamos, não era nenhuma pechincha, tratando-se de um miúdo. O dono também lhe poderia, eventualmente, ter assegurado que a Carriça, assim se viria a chamar a cadela, era uma boxer puro sangue, prontificando-se a atestar a sua linhagem, por escrito, caso soubesse escrever, ou por impressão digital no notário, se preciso fosse e para tal tivesse dinheiro.

A Carriça era, afinal, uma rafeira de perna e pêlo curto, uma meia-leca desavergonhada, sempre grávida e que paria filhos lindos, às dúzias. Embora vadia, era uma mãe extremosa e educadora ríspida, sempre pronta a arreganhar o dente quando não era obedecida e os cachorros se afastavam.
A Lady, essa foi-nos oferecida no Garuso, uma localidade próxima da fronteira da Rodésia, pelo dono de uma “farm” que criava cães. A bicha era produto de um devaneio de uma perdigueira que acasalara com um leão da rodésia. Era loura a bichana, com um porte de princesa e uma meiguice digna de nota. Trouxemo-la para nossa casa no Macúti/Beira, perto da praia.

A Lady, ao contrário da Carriça, era enorme e a sua ternura era directamente proporcional ao seu tamanho. Passava a maior parte do tempo connosco na praia. Se ocasionalmente não nos tivesse acompanhado, logo que desse pela nossa falta, ia lá ter.

Na praia, os seus instintos protectores encontravam-se em estado de alerta. Os seus olhos seguiam-nos quando jogávamos futebol, vólei ou outra coisa qualquer. Mal entrávamos na água, levantava-se e ia para a beira mar mantendo-se sempre de pé a observar-nos. À medida que nos afastávamos, ela entrava na água e ia ter connosco. Nadava à nossa volta e só sossegava quando lhe agarrávamos a cauda e ela nos trazia para a praia, ora agora um, e logo de seguida o outro, caso lá se deixasse estar.
Os seus serviços não se esgotavam com o transporte efectuado. No areal deitava-se de lado e ajeitava-se, de modo a oferecer-nos a barriga como almofada.

Já em casa agradecia-nos o banho de mangueira que lhe dávamos, lambendo-nos as mãos e não se sacudia de imediato, evitando salpicar-nos.

Enquanto vivemos na Beira, nunca conseguiu ter filhos vivos, mas cuidava dos da Carriça, quando ela não estava, e deixava-se morder, sem se defender, quando ela regressava.

Só conseguiu ter filhos, só um ou dois de cada ninhada, quando nos mudámos para LM e arranjou um pai, quase tão grande como um pónei e mais feio que o demo.

A Carriça não nos acompanhou na deslocação, pois, os rodesianos com que ela engraçava, a levaram para o seu país, de acordo com quem a viu ser “transportada” e porque deixou que a levassem já que, não tenho qualquer dúvida, ronhosa como era, ninguém a levaria contra a sua vontade.


Jorge C. Chora

quarta-feira, 2 de novembro de 2016

BEIRA NOS ANOS 6O/UM CASACO PARA INGLÊS VER E NINGUÉM BOTAR DEFEITO

                                                               

A Beira dos anos 60, mais propriamente a zona turística Macúti/Estoril, era frequentada por milhares de estrangeiros, nomeadamente rodesianos, que aí passavam as suas férias.

O parque de campismo, os hotéis e residenciais, acomodavam-nos. A proximidade da praia, as camas elásticas no areal, o andar de skis, o body board e o surf, utilizando as enormes e pesadas pranchas da época e as inúmeras diversões citadinas, atraiam os turistas. A cerveja “Manica”, os pitéus e a culinária variadíssima, também eram trunfos de grande valia.

Na época estavam na moda os casacos com listas verticais, fazendo recordar os pijamas. Trajavam os “bifes” fatos de banho durante o dia, mas no final da tarde, nas esplanadas, apresentavam-se com os ditos casacos e de calções, a maior parte das vezes.

 No Macúti, um vizinho da nossa idade, achou por bem, em questão de moda, não ficar atrás da estrangeirada. À tardinha, envergava um casaco de pijama listado, saía e ia dar uma volta até ao “camping”. Passava em frente aos hotéis e às esplanadas, bamboleando-se com um “aplomb” de causar inveja, um estilo de “portuga-bife” sui generis, como que transmitindo a mensagem “não são só vocês que sabem andar de pijama”. Regressava a casa, satisfeito com a passeata e com o “show” que dera.

Ao dar a sua voltinha diária, envergando o seu bem passado casaco, dava uma lição de moda “pijamal”, já que nesta variante, era um verdadeiro mestre.


Jorge C. Chora

segunda-feira, 31 de outubro de 2016

A BRUXA,A HIENA E O LEÃO

                                               

Uma hiena viu um leão no meio do mato. Temerosa, ficou quieta e em silêncio absoluto. Observou-o. Estranhou a sua quase imobilidade e o facto de estar a gemer. Pareceu-lhe que ele estava doente. Resolveu investigar melhor o que se passava.

Aproximou-se, passo a passo, e verificou que a fera rugia e se contraía com dores. Concluiu que estava em sofrimento. A hiena, perante a debilidade do leão, começou a pensar no modo de tirar vantagem da situação.  Humilhar o rei seria óptimo. Causar-lhe um dano de que pudesse vangloriar-se junto aos seus, de ter feito gato sapato do feroz animal, era ouro sobre azul.

Surgiu-lhe a ideia de abocanhar-lhe o traseiro, arrancar-lhe um pedaço de carne, exibi-lo na alcateia e dizer-lhes:

- Vejam o que tirei ao leão, enquanto ele fugia de mim!

Logo veria como poderia trabalhar melhor a sua história e vangloriar-se da sua grande valentia.
Arquitectada a tramóia, era preciso executá-la. Muito devagar, já de boca aberta, foi-se chegando à traseira do leão. Um urro atemorizante paralisou- a. No ar pairou um cheiro nauseabundo.

Os olhos da hiena giraram no globo ocular, tal o terror que de si se apoderou. Recusou-se a acreditar no que viu: o leão acabara de fazer um ciclópico monte de cócó.  Tremendo de medo, a hiena borrou-se toda.

O leão estava só com dores de barriga. Levantou-se a fera sem se dignar olhar a insignificante hiena e lançou-lhe ao focinho o resto dos gases que tinham permanecido nos seus intestinos.

Uma bruxa que morava num embondeiro, perto do local, assistiu à cena e achou que a fanfarrona da hiena merecia uma boa bruxaria. Dito e feito: atribuiu à hiena um cheiro característico, bem fedorento, um apetite voraz por carne putrefacta e um riso estranho e apatetado que ajudava a denunciá-la na selva.

Neste momento a bruxa agarrou na sua vassoura e prepara-se para vir passar o dia 31 de Outubro a Portugal, com a intenção de atribuir às hienas citadinas, as mesmas características que acabou de conceder, lá na selva, às suas irmãs.

Quantas hienas conhece? Muitas? Talvez ainda haja tempo de fazê-las sair da toca…

No creo en brujas, pero…



Jorge C. Chora

sábado, 29 de outubro de 2016

SORRISO PRIMAVERIL



Bailam sorrisos
em caras lindas,
quase tão bonitos
como o teu,
mas nenhum
mais promissor
e primaveril
do que o teu,
ó meu amor.
Fecho os olhos
e vejo o malmequer
que se desfolha
na tua face
de bem-me-quer.
Ó meu amor
como é belo
o sorriso,
que baila no
teu rosto,
como uma
eterna Primavera.


Jorge C. Chora

sexta-feira, 21 de outubro de 2016

BEIRA DOS ANOS 5O/6O. IR AO CAMPO DE AVIAÇÃO,VER OS AVIÕES,ERA UM PASSEIO DOMINICAL

   

Ir ao campo de aviação (era assim que os moçambicanos designavam a ida ao aeroporto) era um programa de fim-de-semana. Julgo que isto era o que acontecia, um pouco por todo o território, nas cidades dotadas de aeroportos.

Na Beira, de há cinquenta/sessenta anos, esta actividade era frequente. O aeroporto distava uns bons quilómetros do centro da cidade e só para lá chegar isso já constituía uma pequena diversão.

Ver os aviões aterrarem e levantarem, entrar no edifício, passear nas varandas, sentir o cheiro dos combustíveis e ouvir o roncar dos motores era um programa em cheio.

Acontece que eu e o meu irmão enjoámos prematuramente esta volta dominical e eu vou explicar a razão de tal facto.

Quase todos os anos, nas férias grandes, apanhávamos o avião para LM, para irmos passar uma temporada a casa da nossa avó e para estarmos com os nossos primos. Éramos entregues às hospedeiras da Deta, cuja beleza e profissionalismo eram inexcedíveis. Nas primeiras vezes, ao entrarmos no avião, estranhávamos termos quase de trepar até alcançarmos os lugares, pois a inclinação dos Dakotas era tal que parecia estarmos a subir uma encosta.

As viagens decorriam em beleza, embalados pelos poços de ar e os avisos constantes de apertar os cintos e a barulheira dos motores. Quando chegávamos a LM, caso o nosso tio não estivesse à nossa espera, trazíamos escrita a morada e apanhávamos um táxi que nos levava, sempre em segurança, ao nosso destino, pese embora a pouca idade que tínhamos. Voámos em dakotas, friendships e boeings 737 à medida que a Deta se modernizava. Até aqui tudo bem.

O busílis da questão residia em conseguirmos apanhar o avião para LM e, no regresso, para a Beira. Como assim? É simples, pois só viajávamos se não houvesse passageiros pagantes. A companhia pertencia aos Caminhos de Ferro de Moçambique e os seus funcionários ou familiares só podiam usufruir de viagens se os passageiros normais não esgotassem todos os lugares.

Chegada a altura de férias, levantávamo-nos de madrugada, antes do nascer do sol e íamos para o aeroporto no dia aprazado. Não me recordo de nenhuma viagem que tivéssemos feito no dia marcado. À última hora surgia sempre um passageiro que comprara a passagem para tratar de assuntos imprevistos, ou de um funcionário em serviço que ia para a capital.

Regressávamos a casa tristonhos. Os empregados faziam-nos o lanche e eramos enviados para a “nossa praia” a todo o vapor. Se à primeira tinha graça, quando nos recambiavam quatro, cinco, seis e sete vezes, deixava de todo de tê-la.

Retornados à habitação, éramos recebidos com um sorriso e com um lanche já preparado de antemão, que nos estendiam sem perda de tempo, com ordem de marcha para as ondas da praia.

Não admira, que os passeios dominicais ao campo de aviação, não colhessem, da nossa parte, nem da parte paterna, muita simpatia.

Mal sabia eu que em adulto, passaria imenso tempo a ver aviões de todos os modelos, cores e feitios, aterrarem e levantarem nas inúmeras horas de espera, em trânsito, nas viagens aéreas que fiz.

E afinal, a mania de observar aviões, ir aos aeroportos e realizar as passeatas de domingo não existia só na Beira, mas também em Lisboa, no Porto e onde existissem aeroportos… Que o digam, ainda hoje os designados como “spotters”…

É pois, com um sorriso amarelo que ainda hoje vejo a minha mulher, sempre que ouve um ronco de um avião que passa por cima da nossa casa, ir ao site “flighradar24” para saber qual é o vôo, o tipo de avião, para onde vai…

Jorge C. Chora


quarta-feira, 19 de outubro de 2016

PISAR NÃO É VOAR !



Há quem rasteje
por não ter asas,
mas há quem as possua
e não tenha aprendido a voar.
Existem, no entanto, as que
para além de voarem
as usam para obrigarem
todos as outras a rastejar.
Quem assim procede,
mais não é do que um
simples animal rastejante,
incapaz de se elevar,
enquanto persistir
em  confundir
pisar com voar.


Jorge C. Chora

sexta-feira, 14 de outubro de 2016

AS"BALEIAS" NO TEJO E OS FILMES NO COLISEU NOS ANOS 50/60

            

Luciano Santos e a sua tia Adelaide, sempre que iam à Cova do Vapor, apanhavam o cacilheiro no Cais do Sodré. A bordo, instalavam-se na zona da proa, ao ar livre, e viajavam vendo o barco a sulcar as ondas, até chegarem ao destino e desembarcarem na Costa do Vapor, como lhe chamavam na época, num cais de madeira.

Um belo dia, navegando perto de Porto Brandão, Adelaide solta um enorme grito:

-Olha uma baleia! Uma baleia! E apontava, excitadíssima, um grande golfinho que dava saltos junto à proa do navio.

Os passageiros, deliciados, assistiam às brincadeiras da “baleia” que acompanhou o cacilheiro durante parte da viagem e a sua atenção só foi interrompida, de tempos a tempos, por um  engraçadinho que gritava:

-Olha a baleia!

À noite, já sem a tia, Luciano ia, por vezes, assistir a um filme no Coliseu. Na sala ficava com um olho fixo na tela e o outro no chão, local onde havia outro espectáculo: corridas de ratazanas. Quando ele e os outros espectadores acabavam de fumar os cigarros, afinavam a pontaria e arremessavam as beatas à rataria.

Se acaso pagassem uns dinheirinhos por cada rato, vivo ou morto, Luciano e os outros eram bem capazes de encher um saco e arrecadar uns tostões, que bem falta lhes faziam.

Lisboa nos anos 50/60, ainda era assim.


Jorge C. Chora

terça-feira, 11 de outubro de 2016

RECORDAÇÃO



O que em ti
vi quando te conheci
explica bem
o que por ti senti:
O mesmo que ainda hoje sinto
quando estou perto de ti
e gosto de recordar
 o dia em que te conheci.


Jorge C. Chora

sexta-feira, 7 de outubro de 2016

UM BEIJO E UMA FLOR


Olhar as gerberas
causa-lhes um certo ciúme,
arregala-lhes os olhos
desperta-lhes o desejo
de recebê-las por parte
de quem,
até ao momento, lhes deu
uma mão cheia de arrelias
e a outra, repleta só de promessas
incumpridas.

Uma flor para a Guida,
outra para a Helena,
e ainda outra para a Joana,
havendo também para
a Mafalda, a Luísa
e para todas as mulheres
que amam.

Uma flor e um beijo
que elas, afinal,
 ciumentas ou não,
também merecem,
enquanto esperam
que as promessas
um dia se cumpram
e recebam de quem amam
um simples ramo de gerberas.


Jorge C. Chora

quarta-feira, 5 de outubro de 2016

"RÁRES" E O PRESIDENTE DOURADO

                                           
Foi hoje aberto ao público o MAAT e muitos milhares de cidadãos quiseram visitá-lo, tal como eu.
O Prof. Marcelo Rebelo de Sousa também lá foi. Circulou entre a multidão, deixou-se fotografar com vários anónimos, apertou a mão a muitos dos que o quiseram cumprimentar.

Subindo a rampa exterior, que dá acesso ao topo do edifício, o Presidente da República, acompanhado de uma pequena comitiva, alguns deles militares da marinha, atraiu a atenção de Ráres, encavalitado aos ombros de seu pai.

Ráres é uma criança romena, e o pai um operário que trabalhou na construção do museu. Excitado por saber que naquele grupo que subia vinha o Presidente, apontou o reluzente oficial de marinha, fardado de branco, com os seus galões dourados e não teve a menor dúvida:

- É aquele senhor, não é pai?

E quando o progenitor lhe disse que não e lhe indicou quem era, calou-se e percebeu-se uma
desilusão: afinal nem sempre os que brilham ao sol são os que mandam em todos!

Jorge C. Chora


segunda-feira, 3 de outubro de 2016

O FADO CACAREJADO

                                                      

Na feira de antiguidades, um senhor de grandes bigodes, examinava os objectos da banca onde se encontrava, com um detalhe e uma morosidade exasperante.

O vendedor, de modo educado, ia respondendo às questões, a um ritmo frenético, que o cliente lhe ia pondo, da melhor maneira que lhe era possível.

Depois de mexer, remexer e examinar praticamente tudo o que havia, pegou numa pequena estatueta metálica, representando um galo. Deu-lhe o mesmo tratamento que tinha dispensado às peças anteriores, com a particularidade de a encostar ao ouvido, primeiro o esquerdo e a seguir o outro.

-A peça é portuguesa?

-Sim. Comprei-a como tal...

E o senhor, tornou a encosta-la às orelhas e a sacudi-la com um ar de caso.

-Pois olhe, se eu descubro que ele canta em chinês, pode ter a certeza que venho cá devolvê-lo…  - advertiu o comprador.

- E se ele por acaso cantar em japonês ou em tailandês? -perguntou divertido o vendedor.

-Nada feito…se ele cantar, só aceito em português legítimo, de preferência em ritmo de fado cacarejado!

Nestas feiras aparece cada maduro!


Jorge C. Chora

sexta-feira, 30 de setembro de 2016

O ROLÃO CU DE PAVÃO



Rolão cheira mal que tresanda. Como assim? perguntarão, querendo saber com exactidão o fedor que ele exala. Não é fácil descrevê-lo porque não há palavras que possam igualar a repugnância sentida, com o mesmo grau de intensidade em relação à experiência olfactiva. Direi que, o odor faz lembrar palha velha, embebida em urina e fezes de animais ou seja, o Rolão fede a estrebaria, embora se possa encharcar em jasmim ou outra essência qualquer.

De estrebaria é também o seu comportamento. Rolão pavoneia-se, usa o você em vez do senhor(a), gaba-se, não cessa de gabar-se do que fez com esta e com aquela, dando pormenores sórdidos, sabe-se lá se reais se imaginários, capazes de demolir a reputação mais sólida, sejam elas solteiras, viúvas ou casadas. Todas sem excepção, diz, suspiram por ele, emitem sinais de enorme interesse que ele, tal qual antena de TV, capta antecipadamente e sabe o momento em que elas se entregarão e o modo como o farão.

Rolão é feio como os dias de tempestade, branco que nem uma osga, lanzudo como uma ovelha de pêlo seboso e escorrido. Dotado de umas beiças finas que formam uma espécie de beiral das cloacas, por elas escorrem as aleivosias e a torrente orgásmica e leitosa da maledicência, também em relação a eles, quando jura a pés juntos e divulga, destilando velhacaria, que o gajo é, de fonte segura, um homossexual conhecido de todos, mas só ele tem essa informação: não diga a ninguém…

Rolão agarra-se como as lapas, não desgruda de quem lhe interessa, esfrega o ego a quem pretende sugar alguma coisa, até ao momento em que consegue concretizar a transfusão.

Rolão pavoneia-se, só dá as costas, mostra o rabo que julga ser de pavão mas é, de facto, um cu de pavão sem penas.

Quantos Rolões, cus de pavão, conhece Vª Exª? Está rodeado deles? É natural…é o que mais há!
São de facto muito, mas muito aborrecidos, e acima de tudo, infinitamente repetitivos…e cansativos.

Sacuda-os!


Jorge C. Chora

quarta-feira, 21 de setembro de 2016

O GALO DESTRAMBELHADO

                 

Suspeito que o meu vizinho capou o galo que tem na capoeira. Este anda furioso com a perda sofrida e há quem diga que o animal até muda de cor pois, umas vezes está vermelho, outras rôxo e ainda, no auge da raiva, negro que nem um tição.

E o estupor do bicho reclama, sem atender nem à hora nem ao dia, seja de trabalho ou de descanso, num estilo roufenho e dolente, numa toada mourisca que ninguém percebe, mas que se sente ser de lamento e revolta,  por lhe terem tirado aquilo que o fazia ser um grande galo.

Canta de manhãzinha, mesmo antes da hora prima, segue-se a cantoria todo o dia, mesmo após as completas, emitindo aquele som desqualificado, de galo capado, de político que ninguém ouve.
Pior, mas muito pior, do que o seu cantar, é o coro de carpideiras que o acompanham. Escutem! Ouçam:

-Estamos fracas…estamos fracas…estamos fracas…

E o galo, convencido  que deve ser ouvido, levanta a crista e canta a propósito de tudo e de nada, aproveitando todas as oportunidades, tornando-se insuportável.

Se alguém tivesse o condão de fazer o destrambelhado retroceder até voltar a estar no ovo, estou certo de que todos os que o ouvem o impediam de ser chocado. Melhor ainda, penso que surgiriam os adeptos dos que o estatelariam no chão e procederiam como Pombal, salgando o solo, garantindo que o malvado galaró não deixaria semente.

Por mim, que não advogo soluções tão radicais, pagar-lhe-ia uma operação estética que lhe reimplantasse os ditos e fizesse com que ele abandonasse o estatuto de “castrati” desafinado.


Jorge C. Chora

sexta-feira, 16 de setembro de 2016

VÓVÓ

        

A vóvó está na cozinha
a fazer o almoço e a
adiantar o jantar.
Onde está o vôvô?
No quarto a fazer ó ó
e a ressonar.

Na cozinha faz a sopa,
tempera o peixe,
corta a carne,
prepara a fruta e o doce,
 e como tem
o outro braço livre,
segura a neta ao colo.
Onde está o vôvô?
No quarto a fazer ó ó
e a ressonar.

São horas de acordar vôvô,
com amor e suavidade,
atirando beijos para o ar,
como só vóvó sabe,
com sonoros chuac…
chuac…chuac

E quando vôvô acorda
logo pergunta:
O que há para jantar querida vóvó?
Doce de ressono
e bife de ó ó
querido vôvô.
E logo a seguir
serve-lhe um prato
delicioso e a transbordar.

À noite tudo sossega
e vóvó pode finalmente
ter paz para trabalhar
nas suas investigações.
E vôvô?
No quarto a fazer ó ó
e a ressonar.
De vez em quando acorda
e pergunta:
Quando é que vens deitar-te doce vóvó?


Jorge C. Chora

quarta-feira, 14 de setembro de 2016

E SE LESSE AOS MAIS PEQUENOS?/O LOBO TREME-TREME


Com a sua voz rouca e de fazer arrepiar, mostrava a sua boa disposição, cantarolando esperançado:

- A seguir a uma, irá outra, ovelhas não me faltarão e fartar-me-ei, por mais alambazado que eu possa ser. Elas farão fila para que eu me possa saciar, só temo que me possa fartar…

E o grande lobo Treme-Treme caminhava dançando até ao local onde espreitava o enorme, fértil e verdejante vale, onde nem um rio faltava. Os olhos abriam-se-lhe de cobiça e salivava ao ver as inúmeras ovelhas que lá pastavam.

“Mas eu nunca, mas nunca, me poderei fartar” pensava, tremendo de ansiedade, antecipando o dia em que iria ferrar o dente naquela tenra carne.

Sabia que os rebanhos ali presentes eram constituídos por dez famílias e obedeciam aos dez carneiros mais velhos de cada uma delas.

Raro era o dia em que não pensava no modo de ficar com essas terras e alimentar-se à custa do rebanho.

Decidiu arranjar um modo de fazer amizade com os chefes. A oportunidade surgiu quando um dos cordeirinhos escapou à vigilância dos pais e saiu do vale. Apressou-se a segui-lo e a recuperá-lo. Guardou-o durante dois dias e ao terceiro, apresentou-se no vale.

Os dez chefes, logo que o viram, fizeram um círculo amplo, baixaram as cabeças e apontaram-lhe os grandes cornos, de forma a cercá-lo e a fazer-lhe frente.

- Venho em paz. Trago-vos um membro da vossa família que encontrei perdido na floresta…

Um dos carneiros, o que parecia ter maior ascendente no grupo, aproximou-se, acolheu os recém-chegados e enquanto agradecia ao lobo a sua acção, enviou o pequeno para ao pé da mãe que aliás, já acorria aos balidos da sua cria.

Todas as semanas o visitante trazia uma cria tresmalhada e o rebanho habituou-se a vê-lo como o seu protector.

 O lobo resistia aos seus impulsos. Nesse dia esteve quase a sucumbir-lhes, chegando a abocanhar o tenro cordeiro que ia devolver ao lar. Só conseguiu dominar-se ao pensar que não estava longe o dia em que os poderia comer até saciar-se.

Durante as visitas, ia tomando conhecimento dos pastos mais ricos e perguntando ao carneiro
mais importante:

-É evidente que esses pastos são seus, não é verdade?

E o carneiro respondia-lhe que não e apontava os que pertenciam à família, bem mais pobres do que os outros
.
-Como é que isso é possível coordenador-chefe? Isso revela falta de respeito! Os outros é que têm o que deveria ser seu por direito?

Sempre que estava com o coordenador insinuava a ideia, repetia-a e pedia desculpa de a repetir.

Aos poucos, em relação aos outros nove, foi levantando a suspeita de que o coordenador se achava no direito de ter as melhores terras, porque era, simplesmente, o que mandava.

Em breve reinou a discórdia. Estabeleceram-se alianças com o lobo que as efectuou, em segredo, com todos eles. Foi marcado um dia para que cada um deles se impusesse aos outros, julgando todos poder contar com o lobo Treme-Treme como aliado.

Teve o Treme-Treme o cuidado de os avisar individualmente de que não estaria presente no começo das hostilidades, para que o adversário fosse depois apanhado de surpresa e mais depressa vencido.
À hora certa, desencadeou-se um combate de todos contra todos, que resultou na morte dos dez chefes.

Ainda dois dos chefes se encontravam moribundos, quando o Treme-Treme fez a sua aparição.

Logo ali devorou dois cordeiros, tendo os dez familiares que o acompanhavam comido um cada um. Seguiu-se de imediato a distribuição das terras e do rebanho pelos membros da alcateia. O Treme-Treme enunciou as novas regras para o seu grupo, tendo o cuidado de os avisar de que não deveriam comer as reprodutoras nem todas as crias de cada ninhada, sob pena de matarem a sua fonte de alimentos.

O Treme-Treme deixou de se chamar assim porque daí em diante nunca mais passou fome.
Nem ele nem o resto da alcateia.


Jorge C. Chora

quarta-feira, 7 de setembro de 2016

O MACÚTI HÁ MAIS DE SESSENTA ANOS/O FIM INGLÓRIO DE UM BACORINHO QUE TINHA A MANIA QUE ERA CÃO



                         

Lembro-me dos meus pais contarem, a mim e ao meu irmão, a história de um porco que vivia no nosso quintal e tinha a mania que era um cão. Éramos muito pequenos e não chegámos a conhecê-lo.

Como todos os animais que existiam lá por casa, o destino do porco era o de viver em paz e em sossego até ao fim dos seus dias. Este era especial. Aproveitava o facto de estar no Macúti, ao pé da praia (e que praia!) e ganhou o hábito de ir tomar banho ao mar. Durante a semana a praia estava deserta. Quando tornava a casa, ia para a zona do tanque onde recebia um banho, dado à mangueira, que o libertava do sal.

Quando os meus pais iam para o serviço, o porco corria atrás da viatura até se cansar. Alguns vizinhos surpreendiam-se com o seu aspecto:

- O Anselmo tem um cão que mais parece um porco!

- Ele não só parece, como é mesmo um porco… -explicava.

Um belo dia o meu pai decidiu que fazia falta uma passadeira que ligasse a garagem à cozinha, pois ainda era necessário atravessar uma distância grande de areia da praia até chegar à habitação.

Com esforço, muita paciência e algum dispêndio monetário a obra foi feita. Quando à tarde regressou a casa, qual não foi o seu espanto ao ver a passadeira destruída.

O porco foi prontamente identificado como o autor da façanha
.
-Matem-me esse porco! -reagiu o meu pai, furioso com o sucedido.

No dia seguinte, à hora do almoço, o cozinheiro fez uma entrada triunfal, com uma enorme travessa de porco assado no forno, recheado de batatas.

 O cozinheiro interpretara à letra o desabafo e tratou da saúde ao banhista de quatro patas, ao companheiro das corridas matinais, ao pacífico habitante do quintal que se achava mais cão do que bacorinho.

Ninguém comeu. A refeição foi distribuída à vizinhança que a elogiou e que algumas vezes,
passados anos, brincava com o assunto:

-Então quando é que temos outro pitéu como aquele?


Jorge C. Chora

segunda-feira, 5 de setembro de 2016

LISBOA



Miro-a lá do alto,
abro os braços
e abraço-a
inteira e bonita,
a Lisboa que não é
tua nem minha,
pois sendo nossa
é tanto tua como minha,
embora a meu ver,
mesmo sem querer,
a sinta mais minha do que tua,
e afinal vos perdoe
que a considerem
mais vossa do que minha.



Jorge C. Chora

domingo, 4 de setembro de 2016

OS GOLFINHOS DO TEJO E OS SEUS CUMPRIMENTOS MATINAIS NOS ANOS CINQUENTA



Serafim Jorge Milho é, e sempre foi, amigo de praticar desporto. Nos anos cinquenta, era um jovem de vinte e tal anos e dedicava-se ao remo no Clube Naval de Lisboa, que ficava atrás da Estação do Cais do Sodré, junto ao Tejo.

Saía três vezes por semana de Campolide, dirigia-se ao clube e realizava o aquecimento no tanque. Às oito entrava, com os colegas (equipa mista com oito) no Tejo e treinavam.
Durante a sessão, tinham quase sempre, um encontro com três golfinhos, dois grandes e um pequeno. Serafim Milho acredita que se tratavam dos pais e do filho. Em frente ao barco, cruzavam-no na diagonal. Saltavam um a um: primeiro os grandes e só depois o pequeno.

Encolhia-se o Serafim e a tripulação também, sustendo a respiração, até que o mais pequeno passasse. Não descontraiam por completo pois sabiam que ainda faltam os segundos saltos, como que a assegurarem-se de que os bons dias calorosos eram transmitidos.

Os bons dias que Serafim dava e recebia ao entrar no banco onde trabalhava, estavam longe, muito longe de serem os primeiros que recebia.

Ah! Antes que achem que Serafim era useiro e vezeiro em chegar atrasado ao serviço, desiludam-se: ele entrava, na época, às dez.


Jorge C. Chora

sábado, 3 de setembro de 2016

O NOVE DEDOS



O “Nove Dedos” era um homem de baixa estatura, mas encorpado, com cara de limão, de acordo com Luciano Rolão, que o viu inúmeras vezes e lhe conhecia a fama de malquisto.
Trazia sempre uma chibata numa mão e na outra um livro para passar multas. Utilizava-o de modo intenso e diário e não cedia a rogos nem choradeiras: confiscava a mercadoria às vendedeiras e de seguida multava-as sem dó nem piedade, a bem da nação e da ordem pública. Era o terror das vendedeiras clandestinas que exerciam a profissão fora do mercado da 24 de Julho, nomeadamente na Rua da Ribeira Nova ao Cais do Sodré, em Lisboa.

O homem de que Luciano fala era um polícia ou melhor, um comissário, que se deslocava num jipe,  idêntico aos que se utilizavam na 2ª Guerra Mundial, com capota de lona. Para além do condutor, era sempre acompanhado por um guarda.

Um belo dia, no exercício da sua actividade fiscalizadora e confiscadora, uma vendedeira com pêlo na venta, engalfinhou-se com o comissário, deu-lhe uma tal dentada, cuja consequência  foi o homem passar a contar com menos um dedo e daí em diante  ser conhecido como o “Nove Dedos”.

As dentadas e o puxar de cabelos, faziam parte do arsenal de algumas varinas e vendedeiras na década de cinquenta e sessenta. Diz-nos Luciano, que as suspeitas e ciúmes que elas tinham em relação aos maridos e às outras mulheres, eram o rastilho mais habitual das zaragatas.

Seja como for, o ”Nove Dedos” não deixou de continuar a ser uma dor de cabeça para os comerciantes, clandestinos ou não. Serafim Milho também se lembra da fama deste comissário e de na Rua General Taborda, logo que algum comerciante o via, telefonava aos outros para fecharem as portas.


Jorge C. Chora

quinta-feira, 1 de setembro de 2016

O PEIXE FRESCO DO CAIS DA RIBEIRA E A CHICOTADA QUE LUCIANO LEVOU A PROPÓSITO DAS HORTALIÇAS DO MERCADO DA 24 DE JULHO


Nasceu na Madragoa, na Rua das Trinas, na freguesia da Lapa e foi baptizado na Basílica da Estrela com o nome de Luciano. Era neto e sobrinho de residentes locais.

Entre os dez e os treze anos sempre teve acesso gratuito ao peixe fresco de 1ª qualidade (sardinha e carapau…). As cestas de verga redondas, repletas de peixe, eram lançadas das traineiras para o cais da Ribeira que ficava acima do nível a que o barco estava. Havia peixe que caía e o Luciano, o irmão e a rapaziada do bairro eram lestos a apanhá-lo. Isto passava-se da parte da manhã.

À tarde, quando os carroceiros transportavam as hortaliças para o mercado da 24 de Julho, vá de deitar-lhes as mãos entre os tapumes das carroças e conseguir um acompanhamento adequado ao peixe fresco matinal.

Um belo dia o carroceiro foi mais rápido do que o Luciano e ferrou-lhe uma tal chicotada na face que o deixou cheio de dores e sem apetite por verduras, pelo menos por algum tempo…

Em breve as “pescarias” terminaram pois Luciano e os outros tiveram de começar a trabalhar.
Era assim a vida de alguns jovens de Lisboa na década de cinquenta …


Jorge C. Chora

segunda-feira, 29 de agosto de 2016

MEMÓRIA DE DOIS MOMENTOS COM O CERAMISTA JOSÉ FRANCO


Ia amiúde ao Sobreiro e sempre que me apetecia pão com chouriço, dava um pulo à aldeia do José Franco.

Conversava diversas vezes com o ceramista, que se encontrava quase sempre a trabalhar, instalado na sua pequena oficina, logo à entrada do edifício, onde ainda hoje se vendem os artigos de cerâmica.
Numa dessas ocasiões, ao ver o artista a criar, verifiquei que a figura em barro que moldava, tal como as outras que produzia, não só se encontravam descalças como apresentavam também um pormenor interessante: tinham o dedo grande do pé esquerdo levantado.

José Franco sorriu e disse-me que os homens do povo andavam a maioria das vezes descalços e que, quando estavam na taberna e bebiam um copo de vinho, mostravam inconscientemente a sua satisfação, levantando o grande dedo do pé.

Noutra ocasião, acompanhado pela minha mulher, comprámos um postal onde estava representado o artista com uma das suas obras. Pedimos-lhe que o rubricasse e ele não se fez rogado: pediu que o segurássemos e, com o polegar sujo do barro, imprimiu a sua impressão digital.

“Estou a utilizar o meu instrumento de trabalho”, referiu com a maior simplicidade, convidando-nos a beber a tradicional canequinha de vinho na sala seguinte, caso nos apetecesse.


Jorge C. Chora

terça-feira, 16 de agosto de 2016

A NEGA DE ÉOLO

                                                           

A voz ouvia-se com enormes distorções e, caso a cantora não fosse conhecida, o recinto ficaria deserto, pela notória falta de qualidade da actuação. Ela esforçava-se, sem qualquer sucesso, pois o sistema de som, que a organização disponibilizara, era péssimo ou, na melhor das hipóteses, completamente inadequado.

A cantora dispunha de alguns trunfos: era relativamente jovem, simpática e trajava uma minissaia que não escondia umas elegantes, compridas e belas pernas.

Um vento forte começou a fazer-se sentir. De repente, as saias da artista levantaram-se por diversas vezes e ela teve de as segurar.

O vento depressa amainou. Como que por artes mágicas, alguns espectadores chegaram-se para junto do palco e começaram, diria que por mero instinto, a soprar, levando a que outros fizessem o mesmo.

Éolo não lhes fez a vontade: a saia nunca mais se levantou, por mais que eles soprassem.

Éolo foi um desmancha prazeres. Um seminarista que se encontrava na segunda fila e que não acreditava em deuses pagãos, ainda tentou uma intercessão divina:

-Ó Deus, in adjutórium meum inténde (vinde em meu auxílio) - mas a sorte também não lhe sorriu.


Jorge C. Chora

quinta-feira, 28 de julho de 2016

ROMA NÃO PAGA A TRAIDORES OU A SAGA DE JULIA STEPANOVA

                            
Li no DN de 27 e 28 de Junho,um resumo sobre a denúncia de Julia Stepanova e do seu marido Vitaly, sobre o caso de dopagem em grande escala, no atletismo russo, levado a efeito pelas próprias autoridades desse país.

A luta que levaram até conseguirem denunciar a situação trouxe-lhes consequências, desde a perseguição no seu próprio país, até ao terem de se esconder durante anos na América do Norte.
O que Julia não esperava é que o próprio Comité Olímpico Internacional, ao arrepio do que tinha sido decidido pela Federação Internacional de Atletismo, que permitira a sua participação nos jogos como atleta neutral, colocasse a condição de só autorizar a participação de atletas russos que nunca tivessem sido castigados por doping.

O mais grave é que inúmeros atletas de outras nacionalidades, que não russas, tenham sido autorizados a competir nos jogos, depois de terem sido castigados por doping!

É caso para se dizer que Stepanova é tratada como se fosse uma traidora, é punida em público perante o mundo e que, por este andar só falta o cartaz, semelhante ao que os romanos fizeram quando os assassinos de Viriato, embora a soldo do império, pretenderam receber a recompensa prometida: foram executados e ao seu lado um cartaz anunciou  ”Roma não paga a traidores”.

Como o exemplo vem do alto, aí está o aviso: come e cala. Não há lugar para queixinhas pé de salsa… manda quem pode obedece quem deve….


Jorge C. Chora

quinta-feira, 21 de julho de 2016

O CENTRO DE CULTURA E ARTE DA BEIRA HÁ CINQUENTA ANOS

                  
Ainda era pequeno quando os meus pais decidiram colocar-nos, a mim e ao meu irmão, a aprender desenho à vista, no Centro de Cultura e Arte da Beira.

O centro funcionava num casarão, à beira do campo de golfe e se a memória não me falha, na Ponta Gêa. Para além de várias salas, era dotada de grandes varandas fechadas, com redes nas janelas. Os cavaletes eram dispostos de modo a que cada aprendiz não constituísse um obstáculo visual e eramos distribuídos pela sala e pelo dito corredor/varanda. Cheirava a tintas e a líquido fixador. No centro, um pedestal onde o professor colocava o que devíamos desenhar.

Aprendemos a tirar medidas aos objectos, fechando um olho e, com o outro, de braço estendido,com um lápis na vertical e na horizontal, apontando para o objecto, definíamos as proporções e marcávamos os contornos e desenhávamos.

As aulas eram por volta das 17h30 e acabavam cerca de hora e meia depois. Nessa altura, quer eu, quer o meu irmão, estávamos esfomeados, já que naquela época jantávamos pelas 18/18h30, o mais tardar. Desenhávamos a carvão e apagávamos os desenhos com miolo de pão. Quando completávamos a obra utilizávamos o fixador, pulverizando a obra.

E o estômago a dar horas e nós a pensar que bem nos saberia ter ali o enorme pão com “jam” que deitávamos fora à socapa, quando nos levavam o lanche à praia, duas horas após sermos obrigados a comer o colossal “mata-bicho” à moçambicana, que enfartaria um elefante e deixaria K.O. um leão!
E a fome continuava a apertar e, como quem não queria a “coisa”, íamos ao miolo de pão, abocanhávamos um pedaço que não tivéssemos usado e depois outro e ainda outro, até que marchava, por vezes, o que estava sujo de carvão. A fome era negra! E acompanhados pelas notas musicais que nos chegavam das aulas de ballet, íamos devorando o pão que nos sabia infinitamente melhor que o caranguejo, o bife, a lagosta e o camarão, a que torcíamos o nariz em casa.

Os pais, esses sábios, tinham jantares sossegados, sem lamúrias do “não me apetece” “estou satisfeito” e “não há mais nada?”…

As minhas aulas continuaram pelas férias dentro até que um dia estiveram quase a ser interrompidas. Ao chegarmos a casa, a minha mãe mostrava sempre um grande interesse pelas obras-primas dos seus “artistas”. Um dia trouxe-lhe um desenho ao qual não achou graça nenhuma: eram uns seios descomunais.

-Oh! Jorge Alberto…o que é isto? Tu deves fazer os desenhos que o professor te manda! E olhava toda triste, mas de uma forma meiga, para o seu rebento desencaminhado.

-Ó mãe, foi o professor que colocou um busto no pedestal… -respondi-lhe.

Puxou-me para si, beijou-me e disse:

-Bom, assim está bem… mas deves estar mais atento…umas maminhas assim seriam um castigo de Deus!


Jorge C. Chora

segunda-feira, 18 de julho de 2016

O JARDIM EPISCOPAL DE CASTELO BRANCO E O DEVANEIO SOBRO O GIOCHI



Em maio deste ano visitei o jardim do Paço Episcopal de Castelo Branco. Melhor dizendo, revisitei-o, pois já na adolescência por lá tinha passado com a família e há cerca de trinta anos, com a minha mulher.

A vantagem destas visitas espaçadas no tempo é a de que nos podemos maravilhar com pormenores que nos tinham escapado na altura.

Desta vez, fomos integrados num grupo (círculo cultural Artur Bual, da Amadora, presidido por Luís Teixeira Alves) e tivemos a sorte de ter como guia, em Castelo Branco, o arquitecto José Paulo Leite.
Escusado será dizer que a visita foi óptima e abarcou desde o museu Cargaleiro ao Centro Cultural, passando pela parte medieval da cidade e o Jardim Episcopal.

Imaginei os bispos no jardim deliciando-se com as vítimas do giochi à italiana (jogos de água), que surpreenderiam as convidadas, esguichando jactos de água e causando gritinhos de “ai Jesus.. ai Jesus” e suas excelências, solicitas, acorrendo com os seus lenços de seda a secar-lhes os tornozelos e convidando-as a sentarem-se nas conversadeiras. Refeitas do susto, ser-lhe-ia eventualmente proposto um passeio de batel ou de canoa, no tanque grande, que armazenava a água para a rega do jardim…

Eis que me puxam pelo braço. Os membros do círculo adiantaram-se e a minha mais que tudo repreende-me:

-Lá estás tu a pensar na morte da bezerra…acorda…não me digas que já estás a imaginar-te no lugar dos bispos!

-Que ideia a tua… -resmungo- apanhado, como sempre, por quem me conhece como às suas próprias mãos.


Jorge C. Chora

sábado, 25 de junho de 2016

O "JÁ LÁ VAI" UMA FIGURA TÍPICA DA BEIRA DE OUTRORA

                                                                                                                      
                                         

Em gaiato vivi na Beira, Moçambique, cidade onde nasci. Sempre que ia ao centro da cidade, via o “Já LÁ VAI”. Quem era este personagem? Era um cauteleiro corcunda, de voz cavernosa e de baixa estatura, que circulava nos cafés e nas ruas do centro da cidade.

O cauteleiro assinalava a sua presença com um grito, tivesse ou não sido chamado por um comprador dos bilhetes de lotaria:

-Já lá vai!

Mesmo quando estava a vender uma cautela, apressava-se a levantar o braço na direcção de um interessado imaginário e berrava:

-Já lá vai!

Circulava a cem à hora e o seu grito, que acabava por ser um pregão de marca, era escutado
no meio da multidão, por quem passasse na praça do Município ou arredores:

-Já lá vai!

Nunca soube o seu verdadeiro nome e suspeito de que ninguém o soubesse: era simplesmente  “O JÁ LÁ VAI”, o cauteleiro que todos conheciam e de que ninguém sabia o nome.

Jorge C. Chora

           

quarta-feira, 22 de junho de 2016

O BAMBOLEAR DA URSULINA


Ursulina subia a rua do Carmo a passo lento, lentíssimo, bamboleando as ancas com malícia e saber de experiência feita. Atrás de si, um homem maduro, de olhos postos nas nádegas da caminhante, fingia-se incomodado com a visão paradisíaca, fazendo lembrar Pina Manique, sempre à cata de mulheres licenciosas que não estivessem matriculadas.

Tão embrenhado na sua tarefa se encontrava que não deu conta de que a sua cabeça assumira o balancear da bela Ursulina.

O”Tainha”, assim se chamava o homem, conhecia o marido da senhora. Era dono de barcos de pesca, afamado gabiru das noites de estúrdia lisboeta, amante de mulheres de má fama e gastador inveterado. Fora seu empregado e andara à pesca nos seus barcos. Todos sabiam, através dos seus pescadores, que o patrão possuía um apêndice corporal de alto lá com ele, pois estavam fartos de o ver, a bordo das embarcações, urinar para o Tejo e para o mar. 
“Tainha” seguia agora quase colado a Ursulina e ninguém lhe tirava da cabeça que o seu avantajado marido deveria ser o responsável pela lentidão da sua marcha. Suspirava o pescador pelos tempos da inquisição em que a relação contranatura seria objecto de sevícias e até conseguia ouvir os gritos do empresário.
Prosseguia Ursulina com muita dificuldade a sua ascensão, após uma lauta feijoada, esforçando-se para reter os gases quando, sem conseguir conter-se, explodiu. “Tainha”, quase colado, foi apanhado pela explosão gasosa. Desmaiou e só acordou no hospital, ligado a uma máquina de oxigénio. Ainda hoje não sabe o que lhe aconteceu.

Jorge C. Chora

quinta-feira, 9 de junho de 2016

A MINHA SALADA DE FRUTA

  
Olhe para onde olhar
tudo me lembra
a presença
da minha amada:
A cor e a doçura
dos seus lábios, no vermelho
das cerejas;
A sua fragrância,
no perfume
das maçãs camoesas;
Nos pêssegos,
a suavidade do seu toque;
O seu espírito refinado
no sumo das uvas moscatel.
Não há fruta que não ma recorde,
mesmo aquela que é espinhosa
me evoca as suas deliciosas
defesas  perante
os meus sôfregos
e desajeitados ataques
de amor!


Jorge C. Chora

quinta-feira, 2 de junho de 2016

A MARIA DAS ASINHAS

    
Quem entrava na taberna, via duas pernas a mexerem-se, no buraco que dava para a sobreloja. O dono tinha subido à pequena arrecadação para ir buscar tabaco.

Sentados nos bancos, os clientes faziam comentários:

-Estás aí há tanto tempo que daqui a um bocado adormeces…

-Nunca mais desces porque estás no céu…

-Tens aí a escada e podes subi-la se quiseres vir…-dizia-lhe o dono.

-Se tivesse asas subia …- respondia-lhe o velho cliente, agarrado a um copo de tinto.

Maria, a funcionária, não se conteve:

-Asas no pífaro queria vossemecê…levantava-o até ao céu e ia ver as cabrinhas. Matava as saudades, não é assim?

O cliente, com tantos mas tantos anos que ninguém corria o risco de lhe adivinhar a idade, eriçou o farto bigode, e disse:

-Ah! Que bela ideia essa do pífaro ter a ajuda de umas asinhas…

Maria deixou de o ouvir e arrependeu-se:

- Mas que ideia mais estapafúrdia lhe havia de ter sugerido!

À saída, o velhinho, com um ar sonhador, apoiado no seu velho cajado, sussurrou ao ouvido de Maria:

-Queres ser as minhas asinhas, querida Maria?

Ela sorriu-lhe e disse-lhe:

-Um dia destes… quem sabe ! - E pensou que o diacho do velhinho, devia ser a reincarnação do demo.

Jorge C. Chora



quarta-feira, 1 de junho de 2016

O SABICHÃO


Ser criança
e ser sabichão,
é coisa sem perdão,
chatice sem fim,
aborrecimento interminável,
bocejo medonho,
comida insossa,
menino sem sal
com a bola guardada
no armário,
prenúncio de
um adulto,
que será sempre criança e sabichão.

Jorge  C.  Chora


quinta-feira, 19 de maio de 2016

MAFALDA E O CONDOR

  
Mafalda tinha uma farta cabeleira negra, repleta de caracóis, atravessados pelos raios solares, que por entre eles brincavam. Os seus olhos eram castanhos cor de mel, e reflectiam a ternura que lhe ia na alma e uma curiosidade imensa pelo que a cercava.

Na varanda, que havia à volta da torre redonda onde vivia, observava os campos e ouvia o chilrear dos passarinhos que a visitavam. Conhecia os piares e entendia-os, tal o hábito que tinha de conversar com eles. Traziam-lhe estes pequenos amigos notícias dos lugares mais distantes, daqueles sítios que a sua vista não alcançava.

Um desejo de ir mais longe, de viajar, de conhecer o mundo apoderou-se de Mafalda. Um dia foi visitada por um enorme condor e entre eles gerou-se uma grande amizade. Este seu novo amigo, ao saber da vontade da menina em conhecer novas paragens, ofereceu-se para a transportar.

Um belo dia, logo pela manhã, Mafalda instalou-se entre as enormes asas do condor e partiram em direcção ao horizonte. Logo na primeira aldeia, lá do alto, viram um jovem senhor que se encaminhava para o povoado, com uma pequena mala na mão. De repente, deixaram de o ver. Perguntou ao condor se o via e ele, passado algum tempo, descobriu-o no fundo de um buraco.
Passado um bocado, ouviram-se gritos de socorro provenientes da cova onde caíra o senhor. Acorreram duas pessoas que, em vez de o auxiliarem, se puseram a interrogá-lo:

-Anda alguém a apropriar-se do dinheiro e de objectos de valor dos habitantes cá da aldeia…

E quando o homem, lá do fundo da cova, se preparava para lhes responder, os aldeões interromperam-no:

-Está calado ladrão, vais ter o que mereces…  - E, acto contínuo, começaram a arremessar-lhe tudo o que tinham à mão, desde batatas a couves.

A gritaria atraiu os moradores da aldeia e as suas respectivas famílias. Ninguém quis ficar sem intervir. Todos lançaram os produtos agrícolas que tinham mais à mão, tendo os mais jovens transportado os víveres necessários à reposição dos que se esgotavam.

Quando menos esperavam, o homem enclausurado, saiu pelos seus próprios meios do buraco, trepando pela pilha de alimentos. Todo sujo, de gravata à banda, com uma das hastes dos óculos partidos, com uma mala de couro na mão, comandou, com uma voz tonitruante:

-Todos em fila! Primeiro as mulheres, depois os homens, e as crianças em círculo à nossa volta!
O condor, reconheceu o professor da vila, embora ele estivesse todo sujo.

Quando os agressores avançaram para o senhor, só o viram abrir a mala, tirar uma régua e desancar os dois que tinham avançado para o maltratarem. No chão ficaram os livros da escola.

Depressa os moradores se aperceberam de quem era o jovem e que, a mal, só arranjariam umas boas reguadas.
A ave encostou a cabeça aos caracóis da Mafalda e disse-lhe:

-Nunca julgues ninguém de forma apressada!

Mafalda sorriu e retorquiu:

-Até porque posso apanhar umas belas e merecidas réguadas!

-Nem mais ! –  confirmou o condor, batendo as suas longas asas e dando por finda esta 1ª  e emocionante viagem da sua passageira.

Jorge C. Chora