Com a sua voz rouca e de fazer arrepiar, mostrava a sua boa
disposição, cantarolando esperançado:
- A seguir a uma, irá outra, ovelhas não me faltarão e fartar-me-ei,
por mais alambazado que eu possa ser. Elas farão fila para que eu me possa
saciar, só temo que me possa fartar…
E o grande lobo Treme-Treme caminhava dançando até ao local
onde espreitava o enorme, fértil e verdejante vale, onde nem um rio faltava. Os
olhos abriam-se-lhe de cobiça e salivava ao ver as inúmeras ovelhas que lá
pastavam.
“Mas eu nunca, mas nunca, me poderei fartar” pensava,
tremendo de ansiedade, antecipando o dia em que iria ferrar o dente naquela tenra
carne.
Sabia que os rebanhos ali presentes eram constituídos por
dez famílias e obedeciam aos dez carneiros mais velhos de cada uma delas.
Raro era o dia em que não pensava no modo de ficar com essas
terras e alimentar-se à custa do rebanho.
Decidiu arranjar um modo de fazer amizade com os chefes. A
oportunidade surgiu quando um dos cordeirinhos escapou à vigilância dos pais e
saiu do vale. Apressou-se a segui-lo e a recuperá-lo. Guardou-o durante dois
dias e ao terceiro, apresentou-se no vale.
Os dez chefes, logo que o viram, fizeram um círculo amplo, baixaram
as cabeças e apontaram-lhe os grandes cornos, de forma a cercá-lo e a fazer-lhe
frente.
- Venho em paz. Trago-vos um membro da vossa família que
encontrei perdido na floresta…
Um dos carneiros, o que parecia ter maior ascendente no
grupo, aproximou-se, acolheu os recém-chegados e enquanto agradecia ao lobo a
sua acção, enviou o pequeno para ao pé da mãe que aliás, já acorria aos balidos
da sua cria.
Todas as semanas o visitante trazia uma cria tresmalhada e o
rebanho habituou-se a vê-lo como o seu protector.
O lobo resistia aos seus
impulsos. Nesse dia esteve quase a sucumbir-lhes, chegando a abocanhar o tenro
cordeiro que ia devolver ao lar. Só conseguiu dominar-se ao pensar que não
estava longe o dia em que os poderia comer até saciar-se.
Durante as visitas, ia tomando conhecimento dos pastos mais
ricos e perguntando ao carneiro
mais importante:
-É evidente que esses pastos são seus, não é verdade?
E o carneiro respondia-lhe que não e apontava os que
pertenciam à família, bem mais pobres do que os outros
.
-Como é que isso é possível coordenador-chefe? Isso revela
falta de respeito! Os outros é que têm o que deveria ser seu por direito?
Sempre que estava com o coordenador insinuava a ideia,
repetia-a e pedia desculpa de a repetir.
Aos poucos, em relação aos outros nove, foi levantando a
suspeita de que o coordenador se achava no direito de ter as melhores terras,
porque era, simplesmente, o que mandava.
Em breve reinou a discórdia. Estabeleceram-se alianças com o
lobo que as efectuou, em segredo, com todos eles. Foi marcado um dia para que
cada um deles se impusesse aos outros, julgando todos poder contar com o lobo
Treme-Treme como aliado.
Teve o Treme-Treme o cuidado de os avisar individualmente de
que não estaria presente no começo das hostilidades, para que o adversário
fosse depois apanhado de surpresa e mais depressa vencido.
À hora certa, desencadeou-se um combate de todos contra
todos, que resultou na morte dos dez chefes.
Ainda dois dos chefes se encontravam moribundos, quando o
Treme-Treme fez a sua aparição.
Logo ali devorou dois cordeiros, tendo os dez familiares que
o acompanhavam comido um cada um. Seguiu-se de imediato a distribuição das
terras e do rebanho pelos membros da alcateia. O Treme-Treme enunciou as novas
regras para o seu grupo, tendo o cuidado de os avisar de que não deveriam comer
as reprodutoras nem todas as crias de cada ninhada, sob pena de matarem a sua
fonte de alimentos.
O Treme-Treme deixou de se chamar assim porque daí em diante
nunca mais passou fome.
Nem ele nem o resto da alcateia.
Jorge C. Chora