sábado, 24 de outubro de 2015

UMA RESPOSTA DO FUNDO DAS ENTRANHAS


 O senhor esperava pela sua mulher que andava às compras nas estreitas ruelas do burgo algarvio. Soprando de impaciência, o marido resignou-se a esperá-la e fê-lo do lado oposto à loja onde a esposa entrara.

Minutos após se ter postado ao lado da montra de uma loja, surge-lhe do seu interior, espécie de gruta de alibábá, um lojista inglês, desvairado, que num português macarrónico o invectiva:

-Eu pagarr imposto, sair da frrente do meu loja!

O cavalheiro olha para o abstruso comerciante e só percebe o que ele lhe diz, após o “poliglota”lhe ter repetido, furioso, a troglodita e esforçada frase, de certo produto de uma custosa aprendizagem, sabe-se lá com quantos anos de um suado esforço.

O cavalheiro olhou-o, incrédulo, e sentiu o sangue a ferver-lhe perante a desfaçatez do comerciante. Conseguiu controlar-se, esboçou o seu melhor sorriso e, de repente, produziu um fortíssimo estrondo intestinal, enquanto proferia as seguintes palavras:

-Embora o senhor só diga asneiras, ofereço-lhe, um presente vindo bem do meu interior, um presente do coração…

E foi aí que o génio, com os dedos apertando o nariz, teve um acesso de boa educação e agradeceu:

-Thank you…

-Nothing at all … – e, logo de seguida, uma nova, estonteante, ruidosa e fedorenta ventania, presenteou o grosseiro” bife” que desandou gritando:

-My God… my God…

Jorge C, Chora



Jorge C. ChoraJorge

segunda-feira, 19 de outubro de 2015

BIGODE RONHOSO


Um bigode traiçoeiro
é uma verdadeira chatice,
eriça-se a propósito do pior e do melhor:
de fúria, quando lida com inimigos,
de prazer ao vê-las bonitas
e muito prazerosas
e quanto mais bonitas são,
Ó meu Deus quão eriçado fica.
Como vê muitas e belas,
anda sempre eriçado.
Mas, como todo o mundo
sabe o que com ele se passa,
é um  bigode ronhoso,  
cuja perfídea  consiste
em denunciar o seu dono,
mal ele perde a tramontana.
Jorge C. Chora


sábado, 17 de outubro de 2015

O CHICO DAS MÚSICAS MANSAS


Foi criado em casa do padre. O cura, nos seus tempos livres, ensinou-o a ler e a escrever, e não se coibiu de lhe dar alguns calduços quando o apanhava distraído. Aprendeu até meia dúzia de termos latinos que empregava para embasbacar os da mesma idade e endrominar os adultos que se deixavam ir na cantiga.

Prestava alguns serviços, como pequenas reparações, carregar e descarregar mercadorias, trabalhos agrícolas…. Amoedava tudo o que lhe pagavam. O pecúlio angariado era guardado numa pequena lata com um único objectivo: comprar um gira discos.

À noite sonhava que estava no baile da aldeia e que dançava, dançava até cair de cansaço, ora com a Madalena ora com a Laura. Ao acordar caía na dura realidade: nunca dançara com nenhuma.

Ninguém aceitava os seus convites para dançar. Passaram-se anos e as recusas mantiveram-se. Para além de o considerarem o oposto de um Adónis, as raparigas sabiam-no pobre, aliás, muito pobre. A primeira característica ainda desculpavam, pois havia-os tão feios quanto ele mas os dois atributos juntos, aniquilavam-no por completo.

Num verão escaldante, conseguiu concretizar o seu sonho: comprou um gira discos  Philipps que funcionava a pilhas e a corrente eléctrica. Na primeira oportunidade, deslocou-se a uma loja de discos e iniciou uma pequena colecção,  subordinada aos seus dois grandes critérios: os de música mansa e os de música brava. Os primeiros, os da mansa, eram discos em que se podia dançar agarrado; os outros, implicavam o afastamento dos pares e saltos endemoninhados.

No terreiro à beira do palheiro, passaram a realizar-se bailes todos os fins-de-semana. Quando o Chico ligava a geringonça, estalavam palmas, ouviam-se vivas e o baile começava. Nas primeiras vezes tentaram marginalizá-lo e a reacção foi imediata:

-Ou as moças dançam comigo ou não há baile! – e, logo a seguir, desligava o aparelho, fechava-o e fazia menção de sair. Impediam-no de se ir embora e ele dançava, depois de colocar as músicas mansas e escolher a parceira.

Quando as dançarinas de que ele gostava não estavam a bailar consigo, Chico aproximava-se do toca- música e colocava um disco de música brava.

E, foi assim que o antigo patinho feio se tornou o cisne da aldeia e conseguiu que algumas o levassem ao palheiro e ele ficasse a conhecer, pelo menos de vista,o extraordinário e belo mistério que as mulheres escondiam.

Enquanto viveu, nunca se esqueceu de nas suas orações, agradecer e pedir ao Senhor, a renovação destes verdadeiros milagres e, à cautela, finalizar dizendo: sei que não mereço mas não me desampares…

E nos dias de baile, ia perfumar-se à adega, com o cheirinho a maçã camoesa, vindo do cimo dos pipos, e cantava imitando o Zeca na canção da Beira Baixa:
"...
Cheira à flor da laranjeira,
Nossa Senhora da Póvoa,
Minha boquinha de riso,
Minha maçã camoesa
Criada no paraíso.”

Jorge C. Chora




terça-feira, 6 de outubro de 2015

CULTURA E PENÚRIA/O ARQUIVO DISTRITAL DE FARO



 Fui ao arquivo distrital de Faro na companhia da minha mulher e, logo à entrada, surpreendemo-nos  ao ver uma enorme escadaria com trinta e três degraus e um patamar a meio.

Após termos vencido o inesperado Gólgota, fomos atendidos por duas simpáticas funcionárias, uma da recepção e a outra da sala de leitura.

O material pedido foi entregue sem demora e procurámos uma mesa que tivesse um candeeiro para nos sentarmos.

Havia nove  mesas com candeeiros mas, surpresa das surpresas, quatro não tinham lâmpadas e uma, embora a tivesse, não funcionava. Restavam quatro mesas, mas uma não contava, porque estava ocupada e aí sim, conseguíamos ter três a funcionar com lâmpadas que acendiam !

Desconheço o preço das lâmpadas, mas será que a penúria dos serviços públicos é tal que não conseguem repor esse material ? Foram esses serviços, uma vez que se trata de cultura, condenados ao esquecimento ?

É certo que a cultura, pelo menos em Portugal, costuma andar de braço dado com a penúria, e há muito que está divorciada da riqueza, mas assim deste modo é um bocado de mais.
Que se faça luz, o mais depressa possível, no Arquivo Distrital de Faro!


Jorge C. Chora

quinta-feira, 1 de outubro de 2015

GOLPADA À ITALIANA NA AMADORA


Hoje, cerca das onze horas e trinta minutos, o condutor de uma carrinha volkswagen de cor escura, acenou-me de um modo efusivo, acompanhando os acenos com buzinadelas, enquanto eu atravessava a passadeira de peões.

Retribuí os cumprimentos, embora não tivesse reconhecido o automobilista. Este parou a viatura logo após a passadeira e quando me aproximei, estendeu-me a mão e declarou que fazia 32 anos. Apertei-lha, dei-lhe os parabéns mas, avisei-o de que não o conhecia. Continuou a tratar-me como se fosse um velho amigo.

Saiu do carro, abraçou-me e deu-me uma forte palmada nas costas, comunicando-me que abrira uma loja no Babilónia, destinada a vender pólos e têxteis. Abriu a bagageira, repleta de pólos ainda embrulhados, pediu-me que segurasse num saco plástico e atirou duas embalagens para o seu interior, dizendo-me que eram”oferecidas”. Recusei a “doação” e o “aniversariante” deixou passar alguns segundos e colocou mais quatro pólos dizendo:

-Ofereço-lhe duas e só me paga quatro.

Recusei de novo.

-Só são dez euros! - insistiu.

-Não obrigado. Além disso não tenho dinheiro…

-Então quanto tem?

-Nenhum…dei à minha mulher o dinheiro que tinha, para ir à mercearia…

Pegou no saco, atirou-o para a bagageira e partiu sem se”despedir”.

Golpadas como esta, via-as há muitos anos em Roma, com a diferença de que, os meliantes não diziam ter nascido naquele dia.


Jorge C. Chora