Foi criado em casa do padre. O cura, nos seus tempos livres,
ensinou-o a ler e a escrever, e não se coibiu de lhe dar alguns calduços quando
o apanhava distraído. Aprendeu até meia dúzia de termos latinos que empregava
para embasbacar os da mesma idade e endrominar os adultos que se deixavam ir na
cantiga.
Prestava alguns serviços, como pequenas reparações, carregar
e descarregar mercadorias, trabalhos agrícolas…. Amoedava tudo o que lhe
pagavam. O pecúlio angariado era guardado numa pequena lata com um único
objectivo: comprar um gira discos.
À noite sonhava que estava no baile da aldeia e que dançava,
dançava até cair de cansaço, ora com a Madalena ora com a Laura. Ao acordar
caía na dura realidade: nunca dançara com nenhuma.
Ninguém aceitava os seus convites para dançar. Passaram-se
anos e as recusas mantiveram-se. Para além de o considerarem o oposto de um
Adónis, as raparigas sabiam-no pobre, aliás, muito pobre. A primeira
característica ainda desculpavam, pois havia-os tão feios quanto ele mas os
dois atributos juntos, aniquilavam-no por completo.
Num verão escaldante, conseguiu concretizar o seu sonho:
comprou um gira discos Philipps que
funcionava a pilhas e a corrente eléctrica. Na primeira oportunidade,
deslocou-se a uma loja de discos e iniciou uma pequena colecção, subordinada aos seus dois grandes critérios: os
de música mansa e os de música brava. Os primeiros, os da mansa, eram discos em
que se podia dançar agarrado; os outros, implicavam o afastamento dos pares e saltos
endemoninhados.
No terreiro à beira do palheiro, passaram a realizar-se
bailes todos os fins-de-semana. Quando o Chico ligava a geringonça, estalavam
palmas, ouviam-se vivas e o baile começava. Nas primeiras vezes tentaram
marginalizá-lo e a reacção foi imediata:
-Ou as moças dançam comigo ou não há baile! – e, logo a
seguir, desligava o aparelho, fechava-o e fazia menção de sair. Impediam-no de
se ir embora e ele dançava, depois de colocar as músicas mansas e escolher a
parceira.
Quando as dançarinas de que ele gostava não estavam a bailar
consigo, Chico aproximava-se do toca- música e colocava um disco de música
brava.
E, foi assim que o antigo patinho feio se tornou o cisne da
aldeia e conseguiu que algumas o levassem ao palheiro e ele ficasse a conhecer,
pelo menos de vista,o extraordinário e belo mistério que as mulheres escondiam.
Enquanto viveu, nunca se esqueceu de nas suas orações,
agradecer e pedir ao Senhor, a renovação destes verdadeiros milagres e, à
cautela, finalizar dizendo: sei que não mereço mas não me desampares…
E nos dias de baile, ia perfumar-se à adega, com o cheirinho
a maçã camoesa, vindo do cimo dos pipos, e cantava imitando o Zeca na canção da
Beira Baixa:
"...
Cheira à flor da laranjeira,
Nossa Senhora da Póvoa,
Minha boquinha de riso,
Minha maçã camoesa
Criada no paraíso.”
Jorge C. Chora