domingo, 30 de agosto de 2015

A SENHORA QUE BABAVA DESDÉM

                                                                                                                      

A senhora babava desdém: à sua volta ninguém lhe merecia consideração, ou porque não vestiam marcas de referência ou pura e simplesmente por não comprarem na Av. da Liberdade. A sua exigência contemplava as refeições tomadas em restaurantes de luxo e, mesmo dentro dessa categoria, poucos a satisfaziam plenamente.

Às terças levava a sua filha mais pequena a passear. Foi numa dessas ocasiões que se cruzou com uma conhecida que lhe louvou a filha:

-Mas que linda ela é! Uma autêntica princesa…

-Muito obrigado minha senhora…- respondeu-lhe a criança.

-E o que é que ela gostava de ser? -  perguntou, dirigindo-se à mãe, enquanto acariciava a cabeça à criança.

-“Ela” gostava de ser cabeleireira… -respondeu-lhe a miúda com um sorriso malévolo.

-Disparate…que disparate Ermelinda! Cabeleireira!? …Esta minha filha é uma brincalhona… 

-Deixa-te de brincadeiras e diz lá que é médica o que queres ser….

-Sim mamã, é o que tu dizes… -concedeu Ermelinda.

-E médica de quê? - inquiriu a senhora.

-Médica de linguarudas! - respondeu de rajada a gaiata.

E eis que a mãe, descalça o sapato, e dá um grito idêntico aos que ela dava na sua juventude, no bairro onde vivia:

-Anda cá minha cabrita, que já vais ver como elas te mordem!

Jorge C. Chora




quinta-feira, 27 de agosto de 2015

O FIEL AMIGO/O RABO EM TRIÂNGULO OU EM W ?

                                                                                                       
As diferenças entre o bacalhau e outros peixes, que mesmo não o sendo, são apresentados e vendidos como tal, era o tema de conversa de dois amigos ao balcão de uma tasca.

Ambos estavam agradecidos a um inspector de pescado de uma lota, que lhes explicara como distinguir o que era considerado o verdadeiro bacalhau, caso do Gadus Morhua,(do Atlântico) e do Gadus Macrocephalus (do Pacífico),de outros peixes como Saithe, o Ling e o Zarbo.

Tinham aprendido que o verdadeiro, para além da cor palha, da pele que se soltava com mais facilidade, da ausência de manchas escuras ,  era identificado , quase de imediato, pelo rabo: o legitímo tinha a terminação do rabo quase direita, em triângulo, e o falso terminava em W.

A conversa foi interrompida pelo empregado do estabelecimento que levantou um alguidar de plástico com bacalhau de molho, com os rabos bem à mostra e disse:

-Pois é , quem não sabe é comido! Vejam o que é um bom bacalhau..  – e apontou para os rabos em “ W” que mostravam que o peixe era tudo menos o fiel amigo.

Entreolharam-se os amigos e disseram em uníssono:

-Quem sabe, sabe…

E despediram-se do homem que nascera com duas bocas e sem ouvidos, que de alguidar ao colo continuava a mostrar aos clientes um” bacalhau” de  arromba.


Jorge C.Chora

segunda-feira, 24 de agosto de 2015

O PESO DO ARREPENDIMENTO

                                                                                                                  

Um velho e sabido falsário, trapaceiro quase desde o berço, foi apanhado em flagrante delito, após anos de impunidade. Identificado como o mentor de uma extensa quadrilha, foi julgado com toda a pompa e circunstância.

 Servindo-se das suas artimanhas, entrava no tribunal, caminhando como um”velhinho” trôpego, com os lábios trémulos, fazendo vénias consecutivas a todos os que lá se encontravam. Quando respondia às perguntas, era de modo vacilante e desconexo. Causava dó vê-lo e condoíam-se os presentes.

O juiz foi alertado para a marosca do cabecilha, por um funcionário da instituição que o via chegar todos os dias, longe do olhar do público, de automóvel, do qual saia de modo ágil, dirigindo-se do mesmo modo ao tribunal.

Confrontado com a situação pelo juiz, o falsário respondeu de forma compungida:

-Saiba V. Exª que eu ao entrar nesta veneranda e respeitável casa, começo a pensar no que fiz… e o peso do arrependimento apossa-se de mim. Espero que V.Exª leve em linha de conta este meu arrependimento, quando proferir a sentença… - Enquanto pensava para si próprio -  Espero que acredites, meu trouxa,  que eu tenho mais que fazer e encomendas de dólares para satisfazer…
E o juiz, com um sorriso matreiro, dizia-lhe:

-Com certeza…com certeza…tudo será levado em linha de conta…pode contar com isso…

E mais não se diz sobre este falsário, sob pena de estarmos a instruir, inadvertidamente, outros sacripantas…


Jorge C. Chora

sábado, 22 de agosto de 2015

A SAGA DA FAMÍLIA POMAR

                                                                                                         
O senhor estava reformado e era importante na aldeia. Amante do bom vinho, do assim-assim e também do mau, quando não havia outro. Tinha a particularidade de nunca andar aos ziguezagues: caminhava direito que nem um fuso, embora não evitasse os obstáculos. Gostava de ser útil e uma das tarefas de que se incumbia era a de fazer os registos de nascimento da aldeia e de os levar até à vila, pois estava-se já no tempo da república.

Por vezes ou melhor, a maior parte das vezes, preenchia a certidão ou prestava as declarações já na vila, e nem sempre os nomes coincidiam com o que lhe tinha sido dito.

Uma família, farta de ver trocados os nomes, recomendava ao escriba:

-Veja caro senhor que nós somos Laranjo de apelido. Pedimos-lhe que se recorde…

-Caros amigos, não sei eu outra coisa…é mais fácil esquecer-me do meu do que do vosso…

-Muito obrigado. Faça vossa mercê boa viagem e que Deus lhe pague…que da nossa parte também já contribuímos…

Quando a certidão regressava com os selos legais, os pais descobriram, da primeira vez, que tinham tido um Pereirinha e não um Laranjo. E durante muitos anos a cena repetiu-se do mesmo modo: da 2ª coube-lhes receber uma Figueira, depois um Pessegueiro, seguiu-se uma Nespereira e um Laranjal e por fim uma Ameixeira e um Damasqueiro.

A família bem tentou mudar os apelidos, mas quem os recebeu, após ouvir as reclamações, inchou o peito e sentenciou:

-Ou fica tudo na mesma ou ficam a chamar-se a família Pomar!

Não mudaram os nomes, mas o que é facto é quando realizavam as suas reuniões e almoços de confraternização, a vizinhança resumia o acontecimento:

-Mais uma festa da família Pomar!

Jorge C. Chora



sexta-feira, 21 de agosto de 2015

FLOR

    
Quis dar uma flor
ao meu amor,
mas o problema
foi tentar encontrar
uma à sua altura
e não conseguir achá-la.
Depois de muito pensar,
com celofane envolvi
o meu amor,
pois flor como ela, outra não há.


Jorge C. Chora

quarta-feira, 19 de agosto de 2015

DONALD?

   
Numa nação de
imigrantes,
Donald Trump
não se sente
como tal.
Se não é índio
nem deles descende,
e se por eles não
foi convidado,
é um ilegal,
mas nem por isso foi
escorraçado.
Numa nação multicultural,
que quer ser
um farol de liberdade,
e exemplo  mundial,
é no mínimo estranho,
que um candidato “snob”
não veja que,
não é sapato
para tão grande pé
e que os republicanos
não lhe dêem, desde já,
 o que ele merece:
um grande pontapé.

Jorge C. Chora



domingo, 16 de agosto de 2015

O SINO



O sino chamou-lhe a atenção, entre os vários objectos existentes na prateleira da loja: pequeno, sem ser minúsculo, de bronze e com um apoio para poder ser fixo. Era ideal para a sua futura casa de campo.

Inteirou-se do seu preço e arrepiou-se. Temeu não ter consigo o dinheiro suficiente. Rebuscou os bolsos e foi à justa que conseguiu comprá-lo.

Passados alguns anos construiu a almejada casa. À entrada, no pilar esquerdo do portão, pendurou o sino. Sempre que saía ou entrava, tangia-o e quase o acariciava. Adorava o som e à medida que o tempo passava mais dele gostava. Quando chovia, apressava-se a limpá-lo.

Um belo dia, ao regressar a casa, deu pela sua falta: tinham-no roubado, assim como ao respectivo apoio.

Meses depois, uns amigos contaram-lhe que numa determinada terra havia um sino, em tudo semelhante ao seu, com fama de ter sido roubado. Acontecia no lugarejo um estranho fenómeno, pois a população tocava-o de hora a hora. Os “donos” do sino, furiosos com a questão, envolveram o badalo num pano, mas isso não evitou que ele continuasse a ser tocado  às horas e meias horas. Mudaram-no para as traseiras da casa e ainda foi pior, porque ele soava para além das horas anteriores também aos quartos de hora.

Saturados com o que se estava a passar, os falsos proprietários, após uma rápida troca de opiniões, resolveram desmontá-lo e deixá-lo à porta da casa do verdadeiro dono.

O legítimo proprietário ao vê-lo, recolheu-o e colocou-o numa varanda a que só ele e a família tinham acesso. Agora todas as manhãs faz soar o sino para comemorar o magno acontecimento diário: o nascer do sol.

A família, exasperada com o toque de alvorada, pensa seriamente na hipótese de dar sumiço ao maldito sino,não falando na vizinhança.


Jorge C. Chora

sábado, 15 de agosto de 2015

A PROPÓSITO do SIGNIFICADO da PALAVRA "ALGODIO"


A praia do Algodio é uma das praias da Ericeira. Desde há muito que tenciono saber qual o significado da palavra”Algodio”. Tenho-a procurado nos mais diversos dicionários ,incluindo os enciclopédicos, “O Elucidário” de Sousa Viterbo, nos livros sobre a Ericeira, junto de entidades culturais locais e também dos residentes, mas sem sucesso.
Vem isto a propósito de me ter dirigido, muito recentemente, a um residente bastante idoso, já com dificuldade em andar, sem nenhum dente à vista, diria mesmo, com algum exagero, um rival de Matusalém e lhe ter colocado a minha velha questão e recebido a resposta:
-Isso é uma praia daqui da Ericeira!
-Desculpe-me, o que eu queria saber era qual o significado da palavra “algodio”.
-Oh! Isso só uma pessoa muito, mas muito mais velha é que o poderá informar!
Mais uma vez fiquei sem saber o significado do termo e pelo andar da carruagem, encontrar alguém ainda mais idoso do que o meu simpático interlocutor, afigura-se-me uma tarefa dificílima…mas quem sabe!
Enquanto há vida, há esperança…
P.S.- A minha mulher, Maria Adelaide Chora, também interessada nesta matéria, acabou horas depois, por consultar o Dicionário de Arabismos da Língua Portuguesa, da autoria de Adalberto Alves, Imprensa Nacional-Casa da Moeda e encontrou o termo:
Algodio - Top.(Mafra) = Algodeia
Algodeia –Top. (Setubal)=do árabe al-qut’a,”a fracção de terra”,”o lote de terreno”
Tomo como bom o significado, até aparecer prova em contrário.

Jorge C. Chora


sábado, 1 de agosto de 2015

O PROFETA


Largou o calhamaço em cima da mesa e esta vergou devido ao seu peso. Pousou a mão sobre ele, afivelou um ar sério e num tom de voz tonitruante falou assim à assembleia:

-Com a autoridade que me dão as minhas leituras e reflexões, cabe-me esclarecer, bom povo aqui presente, que há só um modo de vencer a crise: é pelo trabalho árduo, pelo suor derramado. Mas este suor de que venho falar-vos, é mais do que uma figura de estilo. É ele que vos vai ajudar a ganhar, desde este momento, o dinheiro que tanta falta vos faz.

A assembleia agitou-se e redobrou a atenção.

-Como fazer? Tomem o máximo de atenção, pois é preciso cumprir algumas normas. O primeiro passo é inscreverem-se naquela mesa e pagarem uma quantia simbólica. O segundo é comprarem, por um preço acessível, uma proveta com a qual recolherão todas as gotas de suor possíveis, sejam vossas ou de outrem. A que se destinam essas gotas de suor? Devem ser entregues na fábrica de essências, pois com elas se farão perfumes, bastando inscreverem-se como compradores dos mesmos, para constarem na lista de fornecedores da matéria-prima. Os primeiros mil a inscreverem-se, terão direito, mediante o pagamento de uma módica quantia, a serem vendedores da fábrica.

Uma multidão desesperada avançou para a mesa de inscrições de modo desordenado, lançando o cartapácio ao chão. O neto de um dos assistentes, mira o alfarrábio e grita sem parar:

-O livro não tem nada escrito! Nem uma linha!

Quando a multidão tornou a olhar para a mesa do orador, já ele lá não estava e pairava no ar um cheiro a enxofre.


Jorge C. Chora