terça-feira, 21 de setembro de 2010

O boneco zarolho

Olhavam e tornavam a olhar para o interior do “ stand”. Aproximavam-se e afastavam-se de modo rápido. Tal como abelhas, esvoaçavam em torno da colmeia, hipnotizados, encadeados, incapazes de se libertarem dos objectos do seu desejo.

A cobiça brilhava nos seus olhos miúdos, saltitando dos lápis para os blocos de papel, passando pelos pequenos bonecos e terminando sabe-se lá em quê. Os gaiatos esfregavam as mãos. Se conseguissem deitar a mão a qualquer coisa: era preciso que fosse uma coisa.

D. Manuela já os tinha topado. Topava-os à légua. Sorriu-lhes e perguntou-lhes:

-Querem escolher algum boneco?

Entreolharam-se.

-E podemos?

-Claro… - e a senhora agarrou em dois pirilampos mágicos e ofereceu-lhos.

-Mas este não tem um olho - reclamou furioso o mais velho.

-Se não tem um olho, então é zarolho… - concluiu a senhora.

-Pois é… - concordou torcendo o nariz.

-Pior era ser cego, não ter olhos … - disse o mais novo.

-Claro, por esse caminho devo estar todo contente por não ser perneta…

-Nem maneta… - tornou o mais novo.

-Bom …zarolho, perneta, maneta, cegueta…a conversa já vai longa, quero o livro de reclamações, porque com tanta deficiência, como posso ficar com ele? Quero de volta o dinheiro que dei por ele.

-Quantos olhos tenho? - perguntou cheia de paciência D. Manuela.

-Dois…

-E acham que eu sou cegueta?

-Quem sabe… - responderam com ar de gozo.

-Então se é possível ser cega com dois olhos, tanto faz ter dois olhos como um ou mesmo nenhum…

-Tem razão. Mais vale ser zarolho do que cegueta de todo. Levo o boneco. – faça-me um embrulho, se não se importa.

Jorge C. Chora

domingo, 19 de setembro de 2010

Bonito serviço

Uma travagem brusca e uma pequena derrapagem, seguida de uma grande nuvem de poeira assinalou o fim da viagem de autocarro.

Os passageiros saíram afogueados, bufando de calor, arrependidos do meio de transporte que tinham escolhido. Para cúmulo do azar, o ar condicionado tinha-se avariado, tinham tido um furo e ainda uma pequena avaria.

Os passageiros amontoaram-se em redor da bagageira do autocarro para recolherem as respectivas bagagens. À medida que elas eram retiradas os donos iam-nas identificando e levando.

Carla foi a última a receber a mala. Achou-a suja e envelhecida para uma mala que acabara de comprar na véspera. Acabou por não dar muita atenção ao assunto.

Em casa dos familiares onde se alojou, após os cumprimentos da praxe, juntaram-se todos em redor da mala para assistir à sua abertura, à espera dos presentes do costume.

Aberta a mala, os presentes não se contiveram:

-Louvado seja Deus!

-O que é que te está a acontecer?

-Que vergonha Carla!

Por mais que a visada tentasse explicar que a mala não lhe pertencia, ninguém a ouvia e repetiam:

-Louvado seja Deus!
-Bonito serviço…

Carla desistiu de explicar o que quer que fosse. À noite dirigiu-se ao mosteiro local e perguntou se podia falar ao padre que chegara na camioneta da tarde.
Mal se viram, o padre exclamou:

-Não queira saber o que me disseram, quando viram o hábito de freira da irmã, na mala…

-Posso imaginar, senhor padre …se posso…

E logo ali decidiram, depois de trocarem as malas, rezarem uma oração pelas asneiras que não disseram, mas pensaram, face aos problemas que tiveram de enfrentar.

Jorge C. Chora

domingo, 12 de setembro de 2010

Clara e o deus dos pés feios

Clara era jovem e bela mas detestava os seus pés. Passava horas a observá-los e achava-os feios. O serem pequenos era a único aspecto que lhe agradava.

Olhava para os dedos e considerava-os ossudos, magros, esqueléticos. Apreciava, de modo crítico, o peito do pé: demasiado alto para o seu gosto. Quanto a uma pequeníssima veia azul que se podia ver do lado direito do pé esquerdo, sofria como se de um defeito imenso se tratasse.

-Que horror! – exclamava, olhando de soslaio o pequeno risco azul que se assemelhava, na sua visão, a um rio caudaloso.

Um belo dia, quando ela molhava os pés no regato do bosque, o deus dos pés feios, ao ouvir os lamentos da jovem, parou e decidiu intervir:

-Posso ajudar-te?

A menina estremeceu. Não queria acreditar no que estava a ver. Diante de si estava uma criatura tão feia, mesmo tão feia, que duvidava da sua existência: Tinha uma barbicha pontiaguda, comprida, revirada para cima, no alto da cabeça dois chifres grandes. O tronco era comprido e os pés (louvado seja Deus!) eram de um bode!

-Mas quem és tu? – e esfregava os olhos, com receio de estar a ser vítima de uma brincadeira.

-Sou o deus dos pés feios. Habito os mesmos bosques que Pã, um antepassado meu, que era o deus dos bosques e dos rebanhos.Ele morou aqui há milhares de anos.

E a menina vaidosa, confidenciou – lhe o seu problema.

-Não acredito! Os teus pés são lindos! Os mais bonitos que alguma vez vi. Quem me dera que a minha mulher tivesse uns assim! - disse-lhe o descendente de Pã .

-Pois se queres, podes trocá-los com os da tua mulher.

Ainda mal acabara a frase e a troca dos pés tinha sido efectuada. Olhou-os assustada. Eram enormes, com joanetes, com os dedos retorcidos devido às artroses, com umas unhas grossas e escuras como garras. Arrepiou-se. Se o arrependimento matasse…

-Senhor, senhor…eu estava a brincar…

-Com isso não se brinca…quem dá e tira vai para o inferno…recuso-me a trocar a única coisa que a minha mulher tem agora de belo…

-Mas eu… - tentou defender-se, sem sucesso, a jovem.

-Não posso aceitar a única coisa que a menina tem agora de feio … - replicou o deus dos pés feios.

A menina agitou-se. Uma revolta enorme começou a apoderar-se de si. Deu uma volta sobre si própria, furiosa, com uma rapidez estonteante e, quando se preparava para falar, acordou ao bater com a cabeça na cama.

Olhou receosa para os seus pés. Continuavam a ser pequenos e lindos. Sentiu um grande alívio. Fora só um sonho. Jurou a si própria deixar-se de excessos de vaidade. Nesse preciso momento, o enorme cajado que o deus dos pés feios usava, caiu com estrondo ao chão.

Olhou em seu redor mas não viu vivalma. Só o cajado lá permanecia.
Terá sido um sonho?

Certo, certo, é que ninguém mais ouviu Clara queixar-se dos seus lindos pés.

Jorge C. Chora