terça-feira, 25 de abril de 2017

A HERANÇA



José teve seis filhos e qual deles o pior. As pessoas mais crédulas acreditavam que algo de bom deveriam ter, mas acabaram por desistir de tal crença, por acharem a tarefa demasiado hercúlea e infrutífera.

Unia-os uma cobiça avassaladora, o fingirem-se humildes com os fortes, serem velhacos com os fracos e dotados de uma inveja sem tamanho, para além de desprezarem o pai por ser pobre. Alvo de vilanias, calava as infâmias e só pedia uma graça a Deus: que lhe saísse a sorte grande. Caso ela lhe coubesse na sorte, tinha a certeza que eles o tratariam de outro modo e talvez se dessem bem entre eles.

O tempo foi passando e a sorte nunca lhe bateu à porta. Um dia José morreu. Vasculharam-lhe os míseros aposentos e nada acharam. Na ânsia de herdarem qualquer coisa, inquiriram os seus companheiros de infortúnio, que lhe indicaram um amigo que recebera um documento com instruções, acaso ele morresse antes.

Depressa chegaram ao depositário do documento. Este informou-os de que só poderia dar-lhes conhecimento do “testamento” quando estivessem todos presentes, no quarto onde o pai falecera.

No dia aprazado, o amigo do José, abriu a porta do quarto, na presença de todos os filhos. No chão uma grande campânula em prata, tapava um prato também em prata.

O fiel depositário da carta do José, abriu-a e iniciou a sua leitura:

Caras(os) Filhas(os)
Tudo o que tenho e vos deixo, está à vista. Estes objectos em prata maciça, devem ser partilhados por vós e tal tarefa incumbe…

E a leitura foi interrompida, porque os seis filhos iniciaram uma luta pela posse dos objectos.

Quando se acalmaram, a leitura foi retomada: …e tal tarefa incumbe ao filho mais sensato, àquele que não lutou por eles. Caso todos tenham participado, aos meus filhos destino o conteúdo oculto pela tampa e ao meu amigo os objectos em si.

Acorreram os filhos a levantarem a tampa e depararam com um horroroso achado: um enorme cócó do José.


Jorge C. Chora

quinta-feira, 13 de abril de 2017

NO DIA DO BEIJO



Há beijos de amor,
de amizade
e até de traição.
Colocando de lado
os de Judas,
restam-nos os
dois primeiros,
sendo os de amor
os melhores,
e os outros
os mais fraternos.
Mas como o
verdadeiro amor
é fraterno,
qualquer beijo
 é de amor,
pelo que vale
sempre a pena
dar e pedir um
beijo, nem que seja
 de amizade.


Jorge C. Chora

O OVO DE PÁSCOA



Era obcecado pelo essencial. O que lhe interessava era o sumo, o importante, o estritamente necessário: o restante era superficial, conversa mole para se deitar fora. Alcunharam-no de “Essência”.

A sua secura, não cativava quase ninguém. Os que com ele conviviam, faziam-no profissionalmente e tinham-lhe um profundo respeito. Muitos chegavam a receá-lo.

Pórcia, uma jovem colega, que nunca mostrara qualquer animosidade ou receio na sua relação com o “Essência” deu-lhe uma prenda na Páscoa:

-Uma Páscoa doce - desejou-lhe.

Ele olhou para a prenda. Era uma caixa de papel que se assemelhava a um pequeno caixão. Arrepiou-se. Abriu-a e viu o interior repleto de fragmentos de chocolate. Num canto, um pequeno cartão rezava assim:

Para quem ama a essência e despreza a forma, divinos pedaços de chocolate do que foi um belo ovo de Páscoa.
Beijos da Pórcia.

O “Essência” agradeceu, beijou-lhe a mão e disse:

-Em suma, mostraste-me que a aliança perfeita é entre a forma e a essência. Obrigado Pórcia.


Jorge C. Chora

terça-feira, 4 de abril de 2017

O INESQUECÍVEL BOOGIE


Este fim-de-semana, quando visitava a feira de Belém, ouvi um casal de certa idade a chamar o seu cão:

-Anda cá Boogie … vem cá Boogie

O nome trouxe-me recordações de há muitas décadas. Elas não se prendiam com o reino canino mas com alguém que conheci, cuja alcunha era exactamente essa: Boogie.

O Boogie era um homem de estatura meã, dotado de uma grande barriga, parecendo dançar com ela. Fazia-se anunciar antecipadamente pela sua proeminente barriga, sobre a qual cruzava os braços, entrelaçava as mãos e fazia circular os dedos polegares como se manuseasse um rosário de contas imaginário entre eles...

Boogie, pelas nossas contas, era mais velho do que Matusalém. Diziam e ele alimentava a lenda, de ter vivido, não me recordo bem se por esta ordem, trinta anos em França, vinte na China e quarenta na Conchichina, fora os que não contara no Brasil, em Portugal e o ror de anos que vivia no ultramar: tudo somado podia ter sido pai do próprio e vetusto Matusalém.

Boogie era também um verdadeiro criador de montes, montanhas, colinas e cordilheiras no cocuruto da gaiatada: ofertava caroladas de modo democrático, à direita, à esquerda e ao centro.

Era também um verdadeiro apreciador dos lóbulos das orelhas que puxava e torcia a seu bel-prazer, como castigo, acompanhado em geral pela expressão:

-Ena rapazola! – e esfregava o dedo indicador no polegar, de modo enojado, queixando-se de que escorriam gordura  -Tens de lavar as orelhas…Esquecendo, de propósito, a temperatura elevadíssima, típica de um clima tropical quente e húmido. Os “rapazolas” até se esqueciam da dor, com os ditos do Boogie. Só por mera acaso não levei carolos ou puxões de orelhas.

O Boogie era assim e acredito que haja quem dele tenha saudades, pois o tempo pode levar ao esquecimento ou tornar simpático e cómico personagem daquele calibre. Outros tempos. Livra!



Jorge C. Chora

domingo, 2 de abril de 2017

PUXAR O LUSTRO ÀS MAÇÃS



A ordem foi seca e peremptória:

-Vão puxar o lustro às maçãs.

E os dois jovens dirigiram-se à cesta, onde elas estavam e iniciaram o cumprimento escrupuloso da instrução recebida.

De pouco ou nada valia dizerem que elas já brilhavam, que já tinham executado a mesma tarefa no dia anterior. Limparam as mais brilhantes pois sabiam que o patrão daí a minutos surgiria para a costumeira fiscalização. Mal tinham acabado de pensar nisso quando o proprietário os interrogou:

-A tarefa está pronta?

-Quase! Já encerámos estas doze- e apontavam para as mais lustrosas.

-Muito bem…continuem… -  e dirigia-se para o seu cadeirão colocado no fim da loja, donde vigiava a totalidade do espaço.

No dia seguinte, logo de manhã, o cesto das maçãs lustrosas era ladeado por dois cabazes de maçãs normais, a metade do preço em relação às que brilhavam .

-Tanto trabalho para ninguém as comprar! -resmungaram os jovens.

E o patrão respondeu, sonolento e de olhos semicerrados:

-Parecendo que não, cumprem várias funções da maior importância. A primeira a de atrair a atenção de quem passa; a segunda é a de realçar o baixo preço das que estão ao lado; a terceira, é que não há quem passe sem as apalpar, o que não lhes dá saúde mas dá prazer aos que lhes mexem, o que explica porque ninguém as compra.

- Quem sabe, sabe! -exclamam os jovens, puxando vigorosamente o lustro às maçãs que rodopiam nas suas mãos.


Jorge C. Chora