sexta-feira, 17 de junho de 2011

Olho Vivo

A velha viatura enlameada travou no meio da praça da aldeia provocando uma grande nuvem de poeira. Do seu interior saíram quatro homens que olharam em redor, com cara de poucos amigos. Um vinha engravatado e os outros trataram-no por senhor engenheiro.
O engenheiro desatou aos berros, exigindo rapidez e mostrando pressa:

-Despachem-se…não temos o dia todo…tirem o material e vamos começar as medições…

Um saco de lona verde foi aberto e do seu interior foram retirados fios-de-prumo, um grande tripé e uma enorme régua e outros objectos. Dois dos funcionários e o chefe seguiram na direcção dos campos. O outro trabalhador, transportando um garrafão vazio de vidro transparente, encaminhou-se para a taberna local.

Ao entrar no estabelecimento cumprimentou os presentes, pediu que lhe enchessem o garrafão com vinho tinto e sentou-se a uma mesa num canto da sala. Os aldeões acorreram ao local e em minutos lotaram-no.

-Afinal que trabalhos é que vêm cá fazer?- interrogou-o um dos idosos recém-chegados.

-Vamos construir uma estrada. Ela vai atravessar a aldeia… por ali mais ou menos … -e apontava vagamente para uma grande área, onde estavam terras cultivadas - mas quem ainda vai decidir é o engenheiro…

-Mas então… vão estragar-nos as nossas propriedades… - comentaram vários dos presentes.

-Bom… o sítio por onde passa nunca é definitivo… é sempre possível influenciar a decisão…não sei se percebem. Quem, como eu, se dá bem com o chefe…pode sempre mudar alguma coisa. Tudo depende de…não sei se estão a perceber…

Eles percebiam. Um a um foram-se chegando e avançando com o dinheiro que podiam. Ninguém queria ver as suas pequenas terras retalhadas.

Quando o bolso do jaquetão já estava bem gordo, o trabalhador despediu-se:

-Bom…vou andando…vou falar ao engenheiro…

Nesse preciso momento, o taberneiro aproximou-se e disse-lhe em voz baixa:

-Antes de sair chegue aqui ao cantinho do balcão…

Curioso, acedeu ao pedido do dono da casa. Estupefacto ouviu-o ordenar-lhe:

-Deixa aí metade dessa massa que recebeste…

-A que propósito? – reagiu, indignado.

E nesse preciso momento, a mulher do taberneiro gritou-lhe,furiosa, do outro topo do balcão:

-Ó Olho Vivo, deixa-te de conversas que há aqui clientes para aviar…

Ao ouvir este nome, estremeceu, pois estava perante o mestre de que o seu chefe,”o engenheiro”, não se cansava de falar…o criador do golpe que eles queriam dar.

Jorge C. Chora

quarta-feira, 8 de junho de 2011

As ordens são para se cumprirem!

O calor era tanto que derretia o alcatrão. Sentia, à medida que circulava, os pneus da sua viatura colarem-se à estrada. Não havia vivalma e rolava de modo descontraído pela longa recta à sua frente. Ligou o rádio e sorriu ao pensar que tinha começado as suas curtas férias. Juntara, cêntimo a cêntimo, o dinheiro para aqueles dias no Algarve. O desemprego não lhe deixava margem para mais e tinha de se contentar com o que tinha.

Ocupada com os seus pensamentos, viu umas centenas de metros à sua frente, uma autoridade a fazer-lhe sinal de paragem. Olhou pelo retrovisor a ver se havia alguém que viesse atrás de si. Nada viu. Tornou a olhar e certificou-se que a ordem era para si. Um auto-stop no meio do deserto? interrogou-se.

-Bom dia senhor agente…

-Bom dia minha senhora. Faça o favor de me mostrar os documentos da viatura e os seus por favor… – e enquanto falava, perfilava-se e fazia-lhe a continência.

Verificados os documentos, aberta a bagageira, mostrado o colete e o triângulo, inspeccionados os seguros e os certificados, a condutora, à torreira do sol, completamente encharcada em suor, suspirou e disse:

-Está tudo em ordem? Posso seguir a minha viagem?

-Só depois de pagar a multa…sabe que cometeu uma infracção grave!

-Multa? Infracção grave? De que é que está a falar senhor agente? - questionou-o, espantada, a condutora.

-Sabe a que velocidade vinha senhora condutora?

-Claro! A noventa, noventa e poucos…

-Confirmo. Vinha a noventa. Sabe que está numa localidade?

-Numa localidade? Só há uma casa…!

-Pois veja o sinal que ali está. – e apontou o malfadado sinal, que mal se via mas estava de facto lá.

Pagou trezentos euros de multa, inverteu a marcha e regressou a casa, sem férias e sem dinheiro. Uma raiva surda apoderou-se de si e desejou que todo o mal do mundo acontecesse ao homem. Nesse momento um pneu da sua viatura rebentou. Logo de seguida desabou uma chuva tropical.

No seu posto de vigília, molhado até ao tutano, o guarda resmungava:

-Num sítio onde não passa ninguém, ia lá perder a oportunidade de mostrar ao chefe que até no deserto cumpro a minha função!

E ia sacudindo as pernas a ver se conseguia livrar-se do verdadeiro oceano que lhe inundava as botas.

Jorge C. Chora

quarta-feira, 1 de junho de 2011

Visitas incómodas

Aos primeiros sons de passos, espreitava pelo óculo da sua casa. Caso a visita fosse indesejável, nomeadamente o senhorio, estalava os dedos e dois dos seus filhos, entre os que estivessem mais próximos, corriam à procura dos penicos e instalavam-se junto à entrada.

Ainda não tinham tocado à porta e já eles gemiam que nem uns desalmados, como se estivessem no auge do esforço requerido ao acto. Seguiam-se sons de alívio directamente proporcionais ao esforço dispendido, sincronizados com a lenta abertura da porta. Ainda esta não abrira e já cá de fora se ouviam rogos de desculpas:

-Peço mil perdões…voltarei numa outra altura…

-Se não for incómodo… - respondia sorridente o inquilino.

Passaram-se algumas semanas e a cena continuou a repetir-se. Meses depois o inquilino precisou de falar com o proprietário, devido a uma verdadeira catadupa de avarias.

Quando subia as escadas da casa do proprietário, ouviu uma verdadeira correria no interior da mesma. Ainda não tocara à campainha, quando uma onda sonora, em tudo semelhante à que os seus filhos faziam, o envolveu.
Suspendeu o gesto de tocar e preparava-se para se ir embora, quando a porta se abriu.

-Faça o favor de entrar … -convidou-o o proprietário.

-O inquilino ia morrendo com o cheiro pavoroso. De olhos arregalados, em vez de dois penicos viu dez e, contrariamente aos seus, estes transbordavam…

-Peço-lhe mil desculpas…a casa de banho da minha casa precisa de reparações, mas estou à espera que me paguem as rendas em atraso … - desculpou-se o proprietário com ar inocente.

-Escusava era de levar tão longe o ensinamento… - balbuciou o inquilino,asfixiado, apertando o nariz.

Jorge C. Chora