quarta-feira, 25 de março de 2015

AO SERVIÇO DO DONO

O idoso perfilava-se como um garboso soldado imperial, frente ao prédio em construção. Ficava imóvel durante horas, observando as movimentações escada acima, escada abaixo, do exército de trabalhadores.

Ao fim do quarto dia, a sua presença começou a incomodar o dono da obra. O grau de imobilismo era tal que chegou a interrogar-se se era possível o homem ter morrido de pé, sem ser em sentido figurado. Não haveria nada que perturbasse o mirone?

Mal acabara de se interrogar quando o cão que guardava a obra, se esgueirou em direcção à sentinela. Aproximou-se, cheirou-o, levantou a perna e urinou-lhe as botas. Nem ai nem ui. Continuou imperturbável.

No dia seguinte, à mesma hora, o senhor lá estava. A única diferença era o facto de trazer calçadas umas grandes galochas.


Jorge C. Chora

sábado, 21 de março de 2015

VARINHA DE CONDÃO

Se os poetas
tivessem uma
varinha de condão,
fariam subir aos céus
bandos de pombas,
segurando nos bicos
sementes, rosas e poemas,
destinados a ser lançados
em todos recantos
terreais,
adubados com o amor,
envoltos na fraternidade,
cumprindo, finalmente,
as velhas promessas de
fazer germinar,
a igualdade e a liberdade.

Jorge C. Chora


sexta-feira, 13 de março de 2015

A "Pirrata" de Albufeira

                                                         
Todos os dias, mais ou menos à mesma hora, dez da manhã, uma gaivota sobrevoa a tenda de vendas de artesanato de Marco e pousa no muro atrás de si.

Se Marco, sul-africano que já aportuguesou o nome, não a vê, ela grasna :

-Estou aqui!

O amigo cessa as suas vendas. Introduz a mão num saco e, sob o olhar atento da ave, vai retirando a comida que lhe é destinada.

Alinha o granulado da ração de gato em cima do muro liso. A gaivota, põe a cabeça e o bico de lado e vai comendo, um a um os pedaços que Marco lhe ofereceu.

Saciada, bate as asas e afasta-se, altiva, para os seus domínios marítimos, bem perto do local onde comeu, no centro de Albufeira, na Rua Cândido dos Reis.

Pergunto ao Marco como se chama a sua amiga. Numa fala carregada de “erres”, responde-me:

- “Pirrata”

E ela, lá do alto, pisca-lhe o olho.


Jorge  C. Chora

quinta-feira, 5 de março de 2015

O Zé do rabo pelado

                                                                                                                        
O Zé desceu as escadas com esforço notório. Colocava os pés, degrau após degrau, sem falhar nenhum. Percebia-se que se encontrava com dores. Outro qualquer ver-se-ia em palpos de aranha se lhe perguntassem a que se deviam as dores. Ele não tinha desses problemas. Inventaria uma patranha, a primeira de que se lembrasse. Com ou sem invenção, o certo é que o rabo lhe doía a bom doer.

 Acabara de arrancar dois pêlos do sim-senhor e ia impingi-los como se fossem da púbis da Dádá.

Há quatro meses que engendrara o namoro secreto entre ele e a recém-chegada. Para o provar exibia aos amigos os pêlos atribuindo-os à colega. Ela era jovem, loura e bem-parecida. Sendo os cabelos anais do Zé mais pretos do que um tição, tinha tido alguma dificuldade em explicar como é que a loura os tinha daquela cor.

- Sabem…eles inicialmente eram louros mas com a acção foram escurecendo… - confidenciava, com a mão em concha, voz sumida e um ar de conquistador irresistível.

Claro que Dádá nem sonhava o que dela se dizia na pequena vila. O pior para as partes sensíveis do Zé, foi quando os amigos enfiaram na cabeça que os cabelinhos da Dádá eram essenciais para que eles tivessem sorte com as raparigas da terra. Começaram a pedir-lhe e depois a exigirem-lhe cada vez mais as amostras milagrosas. No início não se fez rogado e a ganância cimentou o negócio. Agora não podia negar-se. O resultado era evidente: por aquele andar em breve deixaria de poder caminhar.

Quando teve, de uma só vez, uma encomenda de dez, fez as contas e achou por bem não perder a fortuna envolvida. Foi-se à mula da casa e cortou-lhe, da cauda, os pêlos encomendados.
Os compradores acharam estranho o produto comprado. Reclamaram da dureza dos ditos, ao que o vendedor, pacientemente, explicou:

-Quanto mais lhos arranco mais endurecem…

Inquirido sobre o facto de lhes parecer que os primeiros tinham um certo cheiro e estes outros, encheu-se, de novo, de uma paciência a toda a prova:

-Ela mudou de perfume… tem medo de que eu me sature…

Um belo dia Dádá veio a saber das histórias do “menino” e deu-lhe tantas, mas tantas bofetadas que ele durante duas semanas ficou de cara inchada e vermelha ganhando, no aspecto, ao mais bêbado da localidade. Por cumplicidade e por terem acreditado no Zé, todos os companheiros apanharam. Perante a sociedade local o grupo ficou a ser chamado ” bolachas da Dádá.”

O Zé, a partir daí, ficou conhecido como o “Rabo Pelado” e ainda hoje ninguém se lembra de ter tido outro nome. Uma vantagem tirou do arranque dos pêlos anais: sempre que o tempo ameaçava chuva, ele sabia, antecipadamente, se ela cairia ou não: se lhe doesse muito, chovia.

Devido a essa característica, acabou por arranjar um emprego de porteiro num estabelecimento de diversão nocturna. Mal chovia ele tinha sempre à mão um enorme guarda-chuva, para acompanhar a clientela às respectivas viaturas. Até à data nenhum cliente se molhou.

Quantos Zés de rabos pelados conhecem V.Exas ?


Jorge C. Chora

domingo, 1 de março de 2015

INSEPARÁVEIS


Enrosca-se o dia,
e a noite, quase a cair,
prepara-se
para o deitar,
quando ele lhe pergunta:

-Quem te convidou a deitar-te comigo?

Ao que a noite lhe respondeu:

-Meu querido, há convites
desnecessários. Se não for eu a
deitar-me contigo,
quem o fará?


-Escusavas de ser tão agressiva!

E a noite, condoída da solidão
do seu parceiro,acalma-o
e diz-lhe, enquanto o afaga:

-Dorme e não te preocupes.
Até de manhã velo por ti.

-Obrigado meu amor. De dia
zelo eu por ti.

Jorge C. Chora