quinta-feira, 18 de dezembro de 2014

OLHOS


Se os olhos são
a expressão da alma,
a tua é feita de cuidado , ternura,
e tecida de amor.
Os teus olhos
são como mares
onde  argonautas enamorados
navegam, transportando
sonhos à luz dos reflexos
do arco-iris,
na esperança de poderem
guardar o encanto desses olhos
que são os teus.
                                                                                                                

Jorge C. Chora

sexta-feira, 12 de dezembro de 2014

ENTREGA


Ao sabor do vento
caminhas ondulante,
doces palavras sussurras,
confessas o teu amor
e o rubor da tua face
denuncia o fulgor
da  paixão.
Tal como a seara
oferece os seus grãos,
de carícias o presenteias,
enquanto colhes, comungas
e apaziguas o vosso ardor, e  extenuada lhe murmuras:
meu amor !


Jorge C. Chora

quinta-feira, 11 de dezembro de 2014

As asas de Ambrósio


Sempre que João telefonava a Ambrósio, para ver se recuperava o dinheiro que este lhe devia, a resposta era a mesma:

-Amigo João, estou bem longe…mais propriamente em Braga…quando regressar falamos…gostei de o ouvir – E desligava o telefone.

Um destes dias, João viu Ambrósio, numa cervejaria em Lisboa. Telefonou-lhe e Ambrósio fez-lhe o favor de atendê-lo:

-Amigo João, como vai? Não me esqueci de si…neste momento estou no centro de Albufeira…

-Ambrósio, meu amigo dilecto, vem mesmo a calhar, também estou em Albufeira e vou já ter consigo…

-Oh! Que pena…apanhou-me mesmo de saída…vemo-nos em Lisboa.

Colado ao vidro da cervejaria, João viu Ambrósio colocar o telemóvel no bolso do casaco e esboçar um sorriso de desdém. Entrou e dirigiu-se-lhe directamente:

-Com que então amigo Ambrósio, para quem há uns minutos ainda estava em Albufeira, conseguir chegar aqui, só pode ser um milagre…

-Pode crer João…ainda há poucos segundos guardei as asas ali, naquele saco, encostado à mesa…

João sentiu um calor subir-lhe às faces. Deu três passos, agarrou no saco, mas não teve tempo de mais nada. Foi violentamente agarrado por quatro homens que o sacudiram e lhe gritaram:

-Seu descarado… a roubar-nos debaixo do nosso nariz. Ora toma.

Depois de levar umas boas sacudidelas, deram-lhe a possibilidade de explicar o que se passara. Quando chegou à parte das asas, a cena repetiu-se:

-Ainda gozas, ora espera …-E tornaram a prodigalizar-lhe uns safanões.

 Ambrósio evaporou-se. Ninguém mais o viu. Hoje em dia, mal João entra num restaurante, cervejaria ou café onde o devedor costumava ir, ouve, sem ter perguntado nada a ninguém:

-O Ambrósio ainda aqui não aterrou!


Jorge C. Chora

sexta-feira, 5 de dezembro de 2014

O profundo pesar de D.Sebastiana

                                                                                              

Surgiu enlutada e pesarosa na mercearia do bairro. O tom das conversas baixou de imediato, até que elas foram cessando e deram lugar a um silêncio sepulcral.

-O que aconteceu D .Sebastiana?

-Então não sabem?!

-Ainda não…mas gostaríamos de saber…

-O rapaz que morreu era tão bom…um verdadeiro santo. Tinha uma saúde de ferro…

-Às vezes é assim…os que parecem estar bem… -concordou D. Quitéria.

-Mas afinal de quem se trata? - perguntaram alguns dos presentes.

-Era o rapaz que aqui vinha comprar quase sempre feijão verde e batatas para a sua mãe…

Já intrigados e um pouco enervados por ainda não saberem quem afinal entregara a alma ao Criador, perguntaram :

-Afinal como se chamava o rapaz? Era filho de quem? Onde morava?

E D.Sebastiana voltava a carpir a desgraça:

-Tão novo e uma morte tão estranha…

E os ouvintes tornaram a interessar-se:

-Como foi que morreu?

-Se contar não acreditam…

-Acreditamos… -responderam em uníssono.

-Sentado na sanita!

Os ouvintes franziram a testa. Uma morte sem dúvida diferente. Um rapaz morrer sentado numa sanita é algo estranho. Depois de muito rebuscarem a memória em busca de quem ele era,  confessaram:

-Continuamos sem saber quem era o rapaz!

-Era o Severino…-revelou, muito compungida D. Sebastiana  ,enquanto se benzia  três vezes e o encomendava – Deus o tenha em descanso, que ele bem merecia.

-O Severino? Mas que idade tinha o falecido?

-Era um rapaz de 76 anos. Tão novo e vai fazer tanta falta…

Olharam-se, incrédulos, os presentes. E, quando D. Sebastiana se preparava para continuar a lamentar o Severino, os presentes interromperam-na:

-Ó D. Sebastiana….o defunto embora não fosse muito velho, também estava longe de ser um rapaz!
-O pior de tudo, é que foi uma morte de mer.. – concluiu Bernardo.

Até hoje, D. Sebastiana, recusa-se a falar ao Bernardo e não se digna, sequer, a olhá-lo.

Jorge C. Chora




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segunda-feira, 1 de dezembro de 2014

O amor interesseiro de Carlota

Carlota sacode-se e bamboleia-se ao ritmo do fado. Reside na estação fluvial do Terreiro do Paço e debica aqui e acolá o alimento de que necessita. Tem, no entanto, um canto certo onde José, vindo há um ror de anos de S. Antão, a acolhe no Campo das Cebolas.

Quando Carlota, uma gaivota de patas amarelas, quer comida mais fina, vai ter com José que com ela partilha um pitéu que ambos apreciam: peixe frito.

-Ora um pedaço para mim, outro para ti…-avalia José.

E Carlota apanha-o em pleno voo, deglutindo-o num ápice. Pousa logo a seguir e olha desconfiada para o amigo:

-Será que comeste dois pedaços e me deste só um?

É pequena, dançarina, e tem um terceiro atributo que a qualifica e é pouco comum estar associado aos dois primeiros: é velhaca. Carlota é excepção: pode com os três e não disfarça que se sente muito bem.

Nos dias em que há feijão com arroz, recusa tocar-lhes, diz que não é brasileira, levanta voo e expulsa tudo o que tem asas ou ousa esvoaçar na área da estação.

No dia em que José lhe serviu frango, ei-la que tornou, furiosa, após tê-lo bicado e o ter comido. Pairou sobre as cabeças que estavam no solo. José alertou:

-Cuidado que ela vai lançar a carga sobre nós.

E aos pés de José, caiu um osso da galinha que ela devorou. Um enorme cocó veio logo a seguir e só por milagre não o atingiu.

Carlota afastou-se, não sem antes ter ameaçado:

-Torna a dar-me galinha e vais ver…


Jorge C. Chora

sábado, 22 de novembro de 2014

Os teus sorrisos

Os teus sorrisos
são como pérolas,
tão belos,
que não há
quem os distinga das verdadeiras,
 se diferenças houver,
perdem as pérolas, pois,
bem mais sedutores
do que elas, os teus sorrisos são,
tão quentes quanto
os lábios que lhe dão
forma, cor e paixão.


Jorge C. Chora

terça-feira, 18 de novembro de 2014

O filho da Tágide ou a actualização do mito

                                                                                                                          

Um jovem pastor, abrigado numa gruta minúscula, abriu a boca de espanto ao ver um recém-nascido, calçando umas enormes sandálias, a circular em torno dos rebanhos do deus Apolo. O que quereria ele?  interrogou-se o pastor tiritando de frio.

Ainda não tinham passado três nuvens sobre o rebanho quando algo de espantoso aconteceu: o recém-nascido separou as melhores cabeças de gado e iniciou uma marcha às arrecuas, andando ele próprio de marcha atrás.

Surpreso com o que via, jovem pastor escondeu-se aqui e acolá e seguiu o estranho recém-nascido até ao local onde o viu a ocultar o gado. As dúvidas, quando ao acto que estava a ser cometido, dissiparam-se: era um roubo! Fosse quem fosse, o recém-nascido era um ladrão!

Seguiu o pequeno larápio, assegurando-se de que não era visto e verificou que ele se tinha acolhido a um enorme palácio, de todos conhecido como a morada de Zeus. Pelo ambiente festivo que aí reinava, ficou a saber que algo de muito importante se estava a passar. Curioso, perguntou a uma belíssima mulher que acabara de sair, o motivo de tal alegria . Foi informado de que a festa se devia ao nascimento de mais um filho de Zeus. Naquele preciso momento, viu assomar a uma janela do palácio a deusa Hera, furibunda, lançando impropérios cabeludos a Zeus. Aproveitou a presença da mulher para a questionar:

-Não deveria Hera estar contente pelo nascimento de mais um filho?

-Sim,  se fosse dela…

-Não percebo… -confessou o pastor.

-É filho de Zeus e de Maia e deram-lhe o nome de Hermes…

A conversa foi interrompida pela chegada faiscante de Apolo, que viera queixar-se a Zeus do comportamento de Hermes.

-De Hermes? Apolo, meu filho…o teu irmão Hermes é um recém-nascido! Anda vê-lo no berço…

Pé ante pé dirigiram-se à caminha de Hermes. Entraram no quarto. Hermes fingia dormir um sono angelical. Sem que Zeus ou Apolo se apercebessem, abria de forma imperceptível um olho e controlava-os nas suas deambulações ao redor do seu berço.

Zeus abanou-o de modo terno. Hermes fingiu despertar, ensonado, esfregando os olhos:

-O que foi meu pai?

-O teu irmão Apolo, acusa-te de lhe teres ficado com metade do seu rebanho. Tem testemunhas do teu acto. Deves devolvê-las ainda hoje com um pedido de desculpas.

Hermes, apanhado em falta, olhou à sua volta e reparou numa carapaça de tartaruga e logo ali inventou a lira e deu-a a Apolo. Este, comovido, não só lhe perdoou o roubo como lhe deu o rebanho que Hermes lhe tirara, e ainda lhe ofereceu o seu bordão alado, o caduceu.

Hermes agradeceu e dirigiu-se o mais depressa possível ao esconderijo. Ao chegar verificou que metade do rebanho desaparecera. Gritou furioso:

-Quem ousou roubar o filho de Zeus e irmão de Apolo?

De um canto da gruta, ouviu-se uma voz:

-Fui eu Hermes…vi-te tirar o rebanho a Apolo …

-E depois? Isso deu-te o direito de o tirares de mim?

-Claro que sim!- respondeu-lhe o pastor de modo agressivo.

-Como assim!

-Peço-te desculpa…sei que és um deus mas ainda não sabes tudo. Ladrão que rouba a ladrão tem cem anos de perdão.

-Mas quem és tu, descarado, que me vens dar lições…

-Eu não sei bem quem sou,  mas já me disseram que também sou filho de Zeus…

-Filho de meu pai? E quem é a tua mãe?

-Disseram-me que Zeus soube de uma bela Tágide que habitava na Ibéria. Apaixonou-se quando a viu. Desses amores nasci eu…

-Mau, por Zeus, tenho outro irmão tão ladrão como eu…

E foi aqui que duas serpentes saltaram do fundo da gruta, cada uma do seu canto e Hermes lançou o bordão que Apolo lhe dera para as separar. Elas enrolaram-se de forma pacífica à volta do bordão, que se tornou o símbolo de Hermes.

Hermes, voltou-se para o filho da Tágide, seu irmão, e disse-lhe:

-A partir de agora vais transportar o meu caduceu. Serás o meu representante, o meu ajudante, quando eu não tiver possibilidades de transportar uma mensagem, proteger os ladrões, os comerciantes e outros quejandos…

E foi assim que os países ibéricos se tornaram um paraíso para os discípulos de Hermes, com direito a um embaixador permanente.Era filho de Zeus e de uma Tágide, irmão dilecto de Hermes, venerado por uma corte enorme de discípulos, que foi crescendo ao longo dos séculos.

Jorge C. Chora




sábado, 8 de novembro de 2014

A melhor maneira de todos ficarem a saber o que não quer que se saiba


Se o mundo acabasse aos gritos, a senhora sobreviveria. Saiu da viatura a falar tão alto e com uma voz tão estridente que não houve, num raio de muitas centenas de metros, quem não ouvisse o que dizia ao telemóvel:

-A casa fica em frente? Ah! é à direita de quem entra na praceta. E qual é o número… espera, tenho aqui um degrau…é a descer e a letra é a F ? Só um bocadinho…já encontrei. Existe uma espécie de aparelho. É para marcar o código? Vai dizendo …o seis…o dois…o cinco e o vinte e cinco…Já está, abriu.

A velha D. Antónia, foi a única residente que não ouviu ou melhor, não percebeu bem o que se estava a passar:

- A quem é que ela está a dizer o número de telefone?

Após se ter instalado na casa de férias que alugara, a senhora teve de sair. Voltou duas horas depois. Encontrou a porta aberta e a casa sem nada. Saiu espavorida, agarrou-se ao telemóvel e desabafou:

-Amiga, não fazes ideia do que aconteceu! A tua casa foi assaltada. Não sei como aconteceu! Espera, tenho aqui um papel escrito, colado à porta…deixa-me lê-lo…”Para a próxima fale mais baixo. Agradeço as facilidades. Cumprimentos.”

Calou-se durante uns momentos e numa lamúria que quase ensurdeceu o bairro:

-E logo hoje que falei tão baixinho…

V.Exª é como ela e ficou agora a saber como é que todos sabem os seus segredos?

Jorge C. Chora


quinta-feira, 16 de outubro de 2014

Mamia e os acepipes louletanos

Mamia era doce e rosada como uma amêndoa. Tornar possível o impossível era uma qualidade que lhe estava associada. Claro que havia quem duvidasse, assim como ainda hoje há quem continue a acreditar, que é o sol que roda em torno da terra.

As crianças adoravam o seu modo terno de as tratar e de as levar a bem. Um dia Mamia foi contratada para tratar e brincar com as crianças de uma família muito atarefada. Foi advertida da dureza da tarefa e da enorme dificuldade em dar-lhes de comer, nomeadamente ao lanche.
A prova real tirou-a logo no primeiro dia. Ofereceu-lhes bolo de maçã e a resposta não tardou:

-Não gostamos Mamia…

 -E se for de nozes?

-Também não…

Mamia puxava pela cabeça, variava-lhes os alimentos, dava-lhos a provar e o resultado era o mesmo:

-Não gostamos Mamia…

Ao terceiro dia, quase à hora fatídica, teve de ir ao terraço. De uma chaminé do prédio vizinho, veio-lhe um cheirinho delicioso. Espreitou o edifício donde vinha o aroma e verificou que era o de um restaurante. Passou -lhe pela cabeça uma ideia extravagante. Talvez tivesse viabilidade, pensou. Voltou a entrar em casa, bateu as palmas e exclamou:

-Venham meninos. Hoje não há lanche para ninguém! Venham para o terraço…

Num piscar de olhos apareceram. Mamia convidou-os a sentarem-se e a sentirem o cheirinho que provinha da chaminé do restaurante. Ninguém falou durante alguns minutos.

-Cheira bem, não é… - E inspirava, exagerando a expressão de agrado.

Quando viu que eles estavam rendidos, foi buscar pão, deu um bom naco a cada um e disse:

-E que tal provarmos pão com cheirinho?

Não disseram que não e, todos os dias, à mesma hora, batem as palmas e chamam-na:

-Mamia, está na hora do pão com cheiro…

O pior foi quando começaram a trazer os amigos para a hora do pão com cheiro. Até o filho do dono do restaurante passou a comparecer aos encontros no terraço, à hora sagrada.

PS. Sabem que a Mamia existe e vive em Faro? Sabem que o glutão do pão com cheiro também existe, é louletano, e ainda hoje se lembra da iguaria?

Jorge C. Chora






sexta-feira, 3 de outubro de 2014

Sonhos reparadores

Chegou ao carro e verificou que lhe tinham roubado uma roda. Substituiu-a. Nesse ano teve de repor o rádio, a antena, os espelhos retrovisores.

Um belo dia procurou a viatura e não a encontrou. Furioso com a questão, não parou até que descobriu um processo inovador que evitava o roubo das viaturas. Importou o equipamento e instalou-o.

Três dias após o ter feito, logo de manhã, qual não foi a sua surpresa ao ver um conhecido, que se dizia seu amigo do peito, a dormir na sua viatura. Dormiu durante vinte e quatro horas, pois o sistema garantia um sono com mais ou menos essa duração.

A eficácia do sistema foi propagandeada boca a boca entre as vítimas habituais dos amigos do alheio. Poucas semanas depois, numa manhã fria e chuvosa, metade da população da cidade foi encontrada a dormir em viaturas que não lhes pertenciam.

Fotografados nos carros que pretendiam roubar, tiveram duas opções: serem denunciados à polícia, com as provas fotográficas, ou lavarem, durante um ano, todos os fins-de-semana, as viaturas que não tinham conseguido surripiar.

Numa reportagem televisiva, o repórter, dava conta do afã de limpeza que contaminara os habitantes:

-É deveras surpreendente o empenho que a população demonstra na promoção da limpeza, na conservação do que lhes pertence, no exercício físico requerido pela tarefa, Um exemplo de cidadania. Bem -hajam.


Jorge C. Chora

segunda-feira, 22 de setembro de 2014

As preocupações da galinha Mané

                                                                                                                    

 O galo Teobaldo anda preocupado com os achaques da galinha Mané. Teme que ela entre em depressão e ele não saiba quais os seus motivos. Ele foi, e é, o seu companheiro de sempre, o seu confessor, o seu devotado amante e amigo.

 As depressões da Mané assustam-no, pois são frequentes e profundas.  E elas duram, duram, ainda mais do que as do reclame das pilhas não sei das quantas! Só passam depois de descobrir os motivos desses estados de alma arrasadores e enigmáticos. Depois, é preciso demonstrar-lhe, por A mais B, que ela tem todas as razões do mundo para se sentir feliz.

-O que te aflige linda Mané? Perdeste dinheiro no BPN ou no Espírito Santo?

Ela sorri e acena que não com cabeça.

-Então, se não foi dinheiro, o que poderá ser? Será que precisas de mais carinhos meus? Sabes que adoro dá-los….

-Sossega querido Teobaldo  … são tontarias minhas, nada, mas nada, que implique falhas tuas…

-Então não pode ser nada de grave…  espero eu…

A galinha Mané não era insensível ao sofrimento do seu Teobaldo e, pode ser que não acreditem, mas faria tudo para o ver sorrir. Resolveu confessar-lhe os motivos da sua enormíssima preocupação:

-Como sabes querido Teobaldo, como galinha poedeira que sou, ainda ponho ovos. Muitos por sinal! E bem lindos!

-Sou testemunha disso! – exclamou o galante Teobaldo.

-Pois bem, não me sai da cabeça que um dia destes ainda me aconteça começar a pô-los quadrados ou, às vezes, imagina só, triangulares!

-Ó minha querida Mané, sempre foste péssima, perdão…algo menos forte a geometria e, portanto, dessa estás livre…

-O bico da galinha Mané tremeu de emoção: sentiu as suas preocupações esfumarem-se de imediato.

-E, para além disso, mesmo que conseguisses pô-los quadrados ou triangulares, isso seria óptimo para os nossos netos brincarem!

-E achas que não consigo? -  questionou-o, com o ar mais triste do mundo.

Entretanto, piscava o olho às amigas e estendia a pequena crista para receber os mimos do seu Teobaldo.

Jorge C. Chora




quarta-feira, 17 de setembro de 2014

Os surpreendentes homens com cara de cavalo

                                                                                                                   
Nos povoados vizinhos a fama daquela aldeia, era conhecida, reconhecida e invejada. Na dita aldeia, benza-a Deus, os rapazes partilhavam uma característica comum: todos tinham cara de cavalo!
Não havia nenhuma rapariga que não os cobiçasse, ou quisesse casar-se com um dos naturais do local. Desde novas ouviam louvores à rapaziada. Da boca das que tinham conseguido casar-se ou namorar com um deles, escutavam-se maravilhas.

Os que habitavam a terra dos  caras de cavalo, eram todos parentes, tinham uns antepassados comuns, cujos genes se tinham transmitido de geração em geração. Ela, a matriarca, transmitira a fisionomia, o rigor educativo, a doçura e a inteligência intuitiva. As noivas e as esposas estavam-lhe agradecidas até ao âmago das suas almas.

A juntar às referidas qualidades, havia um pormenor nada despiciendo: não havia um único casal que fosse pobre, se desse mal ou se tivesse separado.

Foi num Verão quente que uma curiosidade intensa se apoderou de uma candidata a noiva, mas que ainda não tinha namorado. Pesquisou, perguntou, subornou e foi o mesmo que nada, pois nenhuma lhe prestou sequer a mínima atenção. O que seria preciso fazer para conseguir saber mais algo do que sabia?

Em desespero de causa, perguntou a uma idosa como poderia satisfazer o desejo de saber as razões pelas quais todas queriam casar-se com rapazes com cara de cavalo.

-Todas? ou a menina é que quer?

Engasgou-se e acabou por confessar o seu interesse.

-E já pensou nos motivos que a levam a inclinar-se para um dos nossos rapazes?

-Sei lá…talvez o facto de serem tão feios e não os termos de disputar com as outras mulheres…

-Sim…é uma razão…mas será só por isso? - questionou a velha senhora.

-Bom, tenho ouvido coisas que me agradam…

-Mau, então que informações quer saber em concreto? – espantou-se a habitante local.

Olhou em redor e após ter a garantia de que ninguém a escutava, perguntou, murmurando:

-A razão secreta, inconfessável, que as leva todas a querer um homem com cara de cavalo!

-Bom, isso é querer saber demais…arrisque-se a conquistar um e saberá…

Afastou-se a jovem carregando uma tristeza do tamanho do mundo. A anciã, condoeu-se e disse-lhe:

-O que lhe posso adiantar, é que eles não herdaram só os genes da tal avó…herdaram também os do avô…. e que dote ele tinha…

Logo no dia seguinte, a jovem iniciou o namoro com um dos rapazes com cara de cavalo.

Em breve tiveram filhos. O que mais a surpreende, são os convites que eles recebem das suas amiguinhas, que lhes estendem as mãos enquanto dizem:

 -Vamos brincar às médicas?

Jorge C. Chora


quinta-feira, 4 de setembro de 2014

A comida do Pompom

À hora de sair, foi chamada ao chefe, que lhe pediu para ficar. Guida estremeceu. Sabia que o marido reagiria mal ao prolongamento do seu horário. Telefonou-lhe e disse-lhe o que se passava e que fosse à 2ª prateleira do frigorífico e que jantasse.

Ao chegar a casa, preparou-se para enfrentar o mau humor da sua cara-metade. Este surgiu-lhe, logo à porta, com um grande sorriso. Retribuiu-lho, algo surpreendida, mas sem o demonstrar. Ele enlaçou-lhe a cintura, roçou-lhe o farto bigode pelo pescoço, afagou-lhe os lóbulos das orelhas.”Hum, isto está a correr bem. Nem sempre nem nunca…”pensou Guida, ao mesmo tempo que lhe passava de modo suave os dedos pela cabeça. .E foi aí que, surpresa das surpresas, o sentiu ronronar. Bom, concluo dizendo que Guida teve direito a recordar-se de tudo o que era bom e ela já se tinha esquecido.

A fome apertou e ela foi ao frigorífico. Espantou-se porque o jantar estava intacto na 3ª prateleira. Percebeu o que se passara ao ver a 2ªprateleira,a da comida do gato, completamente vazia. Enganara-se e ele não dera por isso! Calou-se bem calada.

No dia seguinte, a primeira compra que fez, foi comprar a comida do Pompom, regressar num pulo a casa, e colocá-la na 2ª prateleira.

À hora da saída do serviço, telefonou ao seu brutamontes farfalhudo:

-Querido, vou sair mais tarde mas não te preocupes. Deixei-te o jantar na 2ª prateleira do frigorífico.

Tenha cuidado com a quantidade de comida de gato que dá ao seu brutamontes! Uma amiga de Guida, a quem esta contara o segredo, exagerou nas doses e transformou o marido numa gatinha em vez de num gatinho assanhado, às suas ordens!


Jorge C. Chora

segunda-feira, 1 de setembro de 2014

A caixinha das fragrâncias

Adorava o cheiro da sua mulher. A atracção era de tal modo intensa que quando ela entrava no carro e se inclinava para o seu lado, ele inspirava, sôfrego, o aroma que dela emanava e  beijava-lhe o pescoço.

-Ó querido, quem nos vir vai achar esquisitas estas tuas beijocas…

-E eu ralado…

Um belo dia estranhou o odor que ela exalava. Tinha um cheiro peculiar.Dir-se-ia, segundo pensou, que se tratava de um fedor característico a pés. Era isso: cheirava a chulé.
Estremeceu só de pensar como diria à sua adorada, que ela fedia. Não era possível que ao fim de quarenta anos, a sua flor cheirasse assim…

Dias depois, notou que quando ela abria a carteira se intensificava o mau cheiro.

-O que tens na carteira que contamina o ar aqui dentro?

-Olha que eu também já notei isso! - E vasculhou a bolsa, até que abriu a caixinha onde trazia os comprimidos de valeriana. Um bedum a chulé espalhou-se pela viatura.

Estava identificada a fonte e explicada a situação. Riram-se a bom rir do problema.
Hoje em dia, quando se querem livrar de situações incómodas, ela abre três caixinhas de comprimidos, começa a torcer o nariz e diz:

-Não acham que está aqui um cheiro desagradável? Aproveito para me despedir…

E com o cheiro a espalhar-se, a debandada é geral.

Quando o  Manel e Raquel se encontram livres, ele pede-lhe suavemente:

-Deixa-me beijar-te o teu pescocinho…

Jorge C. Chora




segunda-feira, 25 de agosto de 2014

A cavalo dado...

                                                                                                                                

Ardiam-lhe os pés. Há quatro dias que andava descalço. Uma pequena distracção, ao refrescar-se no fontanário, fora a causa de ter ficado sem os sapatos. Ao seu lado, dois colegas sem-abrigo, executaram a mesma tarefa do que ele, segurando-os numa das mãos.”Era o que eu deveria ter feito”, culpabilizou-se.
Este percalço trazia-o enervado. Era mais um a acrescentar à estranha semana que passara: fora expulso do seu local de pernoita, perdera o apoio do restaurante onde lhe davam as sobras das refeições, pois tinham decidido dá-las a outro:

-Não podemos apoiar sempre o mesmo! Temos de variar!

Ao escolher outro sítio onde dormir, acabou por acordar com uma dor violenta num braço, seguida de uma ordem ensurdecedora:

-Daqui para fora…rápido … -e o agressor apontou-lhe uma direcção vaga.

-Para onde posso ir?

Ainda mal acabara a frase e já estava a levar uma pancada tão forte como a primeira.

A semana fora para esquecer. Tomou a direcção de um balneário público, rezando para que conseguisse, ao menos, uns chinelos.

À entrada, cruzou-se com alguém cuja cara não lhe era desconhecida. Olhou-lhe para os pés e soube de imediato de quem se tratava: do ladrão dos seus sapatos.

Não conseguiu deitar-lhe a mão. O larápio evaporou-se.

O funcionário do balneário ao vê-lo entrar descalço exclamou:

-Todos os diabos têm sorte! O cavalheiro que acabou de sair deixou uns chinelos muito velhos…mas a cavalo dado… ou é daqueles que só querem coisas novas?

Não lhe respondeu. Limitou-se a olhá-lo sem o ver. Virou-lhe as costas e saiu não sem que antes o funcionário ensaiasse umas desculpas esfarrapadas.

Estava decidido a encontrar o ladrão e a reaver o que lhe pertencia. Ao fim da manhã encontrou-o a experimentar sapatos numa loja. O homem que o atendia era o mesmo que o agredira durante a noite. Entrou, recolheu os seus sapatos que se encontravam postos de lado e, já à porta, gritou:

-Olha ò sem-abrigo…o dono da loja tem a mania de dar sovas aos que dormem na rua! Vê se escolhes o melhor calçado que ele te vai dar!

O dono parecia picado por um aguilhão. Deu um salto de corça e fez menção de apertar o pescoço ao falso cliente. Ainda mal tocara no chão quando foi projectado para fora da loja e se estatelou no passeio.
O “cliente” escolheu dois pares de sapatos, mas voltou atrás e tirou um terceiro que deu à sua vítima do fontanário:

-Desculpa lá “pá” pelo incómodo que te causei…

-Obrigado mas…

-Se não queres, vai lá devolver. Aproveita para lhe pedir para ele te dar mais uns murros…

Deu dois passos, voltou-se para trás e arremessou-os para a porta da loja:

-Fazem-te mais falta a ti do que a mim!

- Onde vamos parar! Agora os aristocratas vivem na rua! Onde é que isto já se viu! – berrou, incrédulo e furioso, o ladrão de sapatos.

Jorge C. Chora


sexta-feira, 1 de agosto de 2014

A terra por onde passou o tio de Maria Bonita

Maria Bonita era a menina dos olhos de seu tio. Educado nos melhores colégios do antigo império, homem de brios e honras, era  senhor de muitas viagens e seguidor dos antigos códigos de cavalaria. A sua sobrinha era a filha que nunca tivera. Embora o homem não fosse velho, fora atingido por uma velhice precoce e sofria da doença do “alemão”, como diziam na vila.

Maria não era só bela mas também namoradeira. Sempre que encontrava o tio este apertava-lhe as bochechas e perguntava-lhe:

-Minha linda, como estás ? Tens-te aplicado na escola?

Maria sorria e dava-lhe um beijo repenicado na face e seguia o seu caminho sob o olhar protector do tio. Maria já tinha trinta anos.

Fora perto da praça que ouvira pela primeira vez alusões malévolas acerca do comportamento da sua Maria. O homem que as proferira, ainda hoje não sabe se levou um coice de uma mula ou de um cavalo. Sabe, isso sabe-o bem, que ficou desdentado. Episódios como este repetiram-se várias vezes antes que os linguarudos percebessem que não deviam proferir gabarolices.

Um dia chegou à vila um homem mau e mal-educado, vindo sabe-se lá de onde. Dizem-nos que dos quintos–do-inferno. Postou-se em frente ao tio de Maria e desatou a dizer-lhe mal da sobrinha. Fiado na sua gigantesca estatura, ria-se enquanto debitava as insanidades. Acordou no hospital, com dores violentas nas partes. O médico que o assistiu,  fora aluno do tio de Maria,   perguntou-lhe :

-Se tivermos de lhe retirar os testículos, pode escolher a vagina que quer neste catálogo… - e deixou-lhe um grosso volume para uma escolha mais adequada.

Ainda hoje, quem passar por uma vila com muitos desdentados e malcriados de vozes fininhas, fica a saber que por lá passou o tio de Maria Bonita.


Jorge C. Chora

segunda-feira, 28 de julho de 2014

O campo de futebol ou o fim da encomenda às cegonhas

                                                                                            
Na aldeia, quando os filhos se atrasavam, os pais interrogavam-se, ansiosos, sobre os verdadeiros motivos da falta de pontualidade:

-Será que foi para o campo da bola?

Caso fosse um rapaz, acrescentavam:

- Está feito um vadio!

 Caso se tratasse de uma rapariga, então a coisa fiava fininho:

-Aqui D’ El rei que ela nos desgraçou! Foi desta que ela se deixou levar! Ai o… o… “malaandro”…

Claro que o campo da bola estava localizado num sítio ao abrigo de olhares indiscretos.
Nesse dia ninguém sabia da Madalena. Tinha fama de santa, mas isso não evitou os comentários pouco abonatórios:

-Santa? Só se for do pau oco!

-Foi medir o campo da bola…

-Pois é, no melhor pano cai a nódoa…

No meio do alarido, Madalena surgiu ao fim da rua.

-Onde foste Madalena? – perguntaram-lhe, em uníssono, os presentes.

-Fui à junta de freguesia.Fui pedir para mudarem o campo da bola aqui para o centro da aldeia. Parece-me que ele fica num sítio isolado, de difícil acesso e, às vezes, pelo que tenho ouvido, as pessoas perdem-se por lá…
-O quê?? – gritaram novos e velhos.

Um dos anciãos da aldeia, benzeu-se e disse:

-Ó Madalena…queres transformar a aldeia no deserto do Saara?

-Há pedidos que não se fazem… -recriminaram outros.

-Onde é que julgas que se encomendam os bebés? -  questionou-a uma das amigas.

- Encomendam-se às cegonhas, não!? Ou pensam que elas as vão buscar ao campo de futebol? -   respondeu-lhe Madalena, toda ruborizada.

Nesse mesmo dia, os seis jovens solteiros da aldeia, alimentaram a secreta esperança de se tornarem noivos de Madalena.

Também se quer candidatar? Tem de ir para a fila e, pelo que me chegou aos ouvidos, já vai tarde, porque ela apresentou um pedido para ingressar no convento.

-Deixa lá minha filha, estes aldeões são mesmo uns ignorantes! – consolou-a o abade, ao saber da história do campo de futebol.

Jorge C. Chora



sábado, 12 de julho de 2014

O menino que queria ser cão

                                                                                                           

 O menino chorava e dizia à mãe que queria ser cão. A mãe arregalava o olho e quase tinha um colapso ao ouvi-lo:

-Cão, meu querido filho!? Mas porquê?

E o menino dizia-lhe:

-Porque posso fazer o que quero! Cheiro o que me der vontade e ainda me dão beijos…fazem-me festas…falam-me com voz doce…

-Mas…mas… - engasgava-se a progenitora, sufocada de angústia – Eu nem acredito que te sintas assim meu adorado pequerrucho…

E o menino de caracóis imaculados, sorriso de anjo e expressão demoníaca insistia:

-Mamã,  quero ser cão!

Apavorada, com o coração em sobressalto, ergueu as mãos ao céu e pediu:

-Meu Deus, ajuda-me a resolver esta situação.

No meio da aflição, ouviu um estrondo e viu cair do cimo do armário a trela do cão que tivera, antes do filho nascer.

-Anda cá Agostinho…vou realizar os teus desejos…

Agostinho franziu o nariz, arregalou os olhos e questionou-a:

-Como assim mamã?

-Vamos dar um passeio à rua! Tenho de te colocar a trela. Espera só um bocado para ir buscar os sacos de plástico, caso sujes o passeio. Lembra-te que tens de cheirar o cocó dos outros cães antes de fazeres as tuas necessidades.

Agostinho insistiu:

-Então vamos…

A mãe colocou-lhe a trela e ordenou-lhe:

-Tens de andar com as mãos no chão ou os outros cães vão achar que estás a brincar com eles…

Olhou a mãe com atenção. Afinal o que é que se estava a passar com ela?

-Ó mãe, tu achas mesmo que eu sou um cão?


Jorge C. Chora

quarta-feira, 2 de julho de 2014

O triste fim de Schewein

O grande porco grunhia forte e feio, vociferando ordens a torto e a direito. Os seus súbditos encolhiam-se e as únicas respostas que davam, tremendo, eram: sim senhor, é para já.

Nunca elogiava ninguém. Cortava de forma glacial qualquer tentativa de diálogo. Se algo que não correra conforme as suas ordens,  gritava:

- incompetentes!

Ainda o eco não retornara e ele gritava, de novo:

- In-com-pe-ten-tes…- e repetia uma, duas, três vezes - e colocava a cabeça de banda para escutar, deliciado, as reprimendas que dera.

O pior, mas muito pior, era o facto do grande Schewein, assim se chamava o mandão, só se deslocar em cima de uma grande bandeja, que os seus subordinados tinham a infelicidade e a obrigação de carregar.

Shewein engordava a olhos vistos. O único esforço que fazia era gritar de modo contínuo:

-Depressa…depressa….incompetentes…depressa….

Por vezes, para poupar sílabas, encurtava as ordens e berrava:

-Schnell…schnell

Um belo dia fez-se carregar para dar um passeio na floresta. Embrenharam-se para o interior e, mal se descuidaram, verificaram que bem à sua frente estava uma alcateia esfaimada.

Os subordinados pousaram-no no chão e começaram a fugir. Schewein, desabituado de andar, ficou paralisado e desatou a gritar:

-Parem meus queridos amigos…parem…

Habituados a obedecerem, os lacaios retornaram. Quando estavam a levantar Schewein, a matilha satisfez os seus apetites . Não sobrou nenhum para contar.

Só conseguimos concluir a história através de dois indícios: o primeiro, é que se encontraram os ossos de 28 no local; o segundo, é que a alcateia dormiu durante meses ( tal não foi o repasto!)

Jorge C. Chora




sexta-feira, 27 de junho de 2014

A importância de usar uma canadiana

                                                                                                                
Andava de canadiana fosse para onde fosse. Esquecia-se no entanto dela, com alguma frequência, tendo de regressar aos locais onde estivera para a ir buscar.

Um dia perguntaram-lhe porque a carregava se não precisava dela. Olhou a interlocutora com um ar de profunda estranheza e respondeu-lhe:

-Quem lhe disse, minha cara senhora, que eu não preciso dela? Não só preciso, como ela me é indispensável para o dia-a-dia. Sem ela não faria sequer um terço do que me proponho fazer!

-Mas…

-Ora acompanhe o meu raciocínio… -cortou a dona da bengala – Quem me daria lugar nos transportes públicos? E nas filas do supermercado?

- Desse ponto de vista , a senhora tem toda a razão! – concordou – E nos bancos?

- Também aí tenho vantagens… e há mais – e chegou-se ao ouvido da interessada e murmurou: Já reparou que se por acaso vir alguém que lhe interessa, pode desequilibrar-se quando lhe convier, e aterrar no seu colo?

Ruborizou-se ao ouvir semelhante estratégia. Ao despedir-se, agradeceu a sinceridade nas explicações, mas não deixou de lhe dizer:

-A boa fé dos outros é comovente…

No dia seguinte, encontraram-se, ambas com canadianas, na paragem do autocarro.


Jorge C. Chora

terça-feira, 10 de junho de 2014

Esteja à vontade!

       João estava sentado num pequeno banco, com a enorme barriga quase colada ao pescoço, as nádegas a tocarem no chão. O seu desconforto era total. O director da empresa, a seu lado, acomodava-se num sofá grená, tipo “chesterfield”,  bem alto em relação à banqueta onde se sentava o criativo da empresa. Mais adiante, o sócio capitalista maioritário estava instalado numa enorme poltrona onde caberiam mais dois como ele.

 Esperavam a visita dum investidor que libertasse a firma dos constrangimentos financeiros. João criara os produtos e adaptara-os ao mercado. As despesas sumptuárias dos outros dois, tinham conduzido o projecto a um beco sem saída. João nunca tivera voz activa em questões de dinheiro.

Quando o novo investidor chegou, todos se levantaram, menos João.

-Peço-lhe desculpa mas estou com uma enorme dificuldade em levantar-me… é só um minuto…

-Deixe-se estar que o seu lugar na empresa está garantido. O mesmo não se passa com os outros dois senhores presentes… - declarou o recém-chegado.

 Na reunião marcada para o dia seguinte, só João foi convocado. Ao entrar na sala, verificou que o novo dono já se encontrava sentado na poltrona gigante. Olhou em redor e não viu o sofá. Só lá havia a banqueta, mesmo em frente à poltrona.

-Faça o favor de se sentar e estar à sua vontade… -disse-lhe o novo dono - apontando para o minúsculo banquinho.


Jorge C. Chora

domingo, 1 de junho de 2014

Pedaços de céu

  

Bate o pé e insiste
que quer como prenda, pedaços de céu.
Rebola o pai os olhos, e pensa
que desconhece o que é que ele quer.
Dói-lhe a cabeça, só de pensar
que não sabe o que o filho tanto deseja.
Pedaços de céu?
Que desejo tão estranho é esse
que  nem sequer suspeito do que se trata?
Pedaços de céu como prenda,
no dia da criança?
Volta à carga e pergunta-lhe,
esperando que ele tenha mudado de ideias:
-Que prenda queres para o dia da criança?
-Pedaços de céu – insistiu.
Desespera.
-Diz-me meu filho, o que são os pedaços de céu,
que eu não sei. Ajuda-me!
Francisco sorri e diz-lhe:
-São livros, é assim que a avó
Lélé fala deles!
E não é que ela tem toda a razão!

Jorge C. Chora

                                                                             

segunda-feira, 26 de maio de 2014

As mulheres foram feitas em dia sim

  
As mulheres foram criadas com alma,
 cheiro, cor e formas.
As divindades fizeram-nas
em dia sim, num momento
em que ansiavam por beijos aveludados,
 lábios carnudos,
cabelos sedosos,
ternuras infindas,
perfumes inebriantes
e o  deleite espiritual
de usufruírem pensamentos
fluidos , desconcertantes
e belos, que os fazem amar
e renderem-se à sua criação,
às surpresas de cada dia
e aos dias que são dedicados
a cada uma dessas mulheres,
nascidas e criadas, para deleite
das divindades,
a quem os homens disputam
e cobiçam a atenção.
Jorge C. Chora


segunda-feira, 12 de maio de 2014

Declarações invisíveis

                                                                                                               
Durante anos chegou à mesma hora e sentou-se no mesmo lugar. Permanecia muda e queda, olhando para a porta. Observava quem entrava.

Um dia trouxe um bloco de notas e passou a escrever, enquanto permanecia no local. Dedicava uns segundos de atenção a quem transpunha a porta, para logo retomar a escrita.

Passaram-se anos sem alterar a sua rotina diária.

O empregado tentou, por diversas vezes, ler o que ela escrevia. Nunca conseguiu. Logo que ele se aproximava ela tapava a folha.

Ao fim de uma década conseguiu espreitar e verificou que não havia sequer uma linha escrita. Não se conteve:

-Afinal a senhora não escreveu nada!

A senhora esboçou um sorriso, o primeiro ao fim de todos aqueles anos, e respondeu-lhe num tom de voz muito baixo e suave:

- Ainda não consegui frases suficientemente belas para passar a escrito…são declarações de amor…para um destinatário especial…

O funcionário piscou os olhos. Não percebeu patavina do que ouviu, mas não desistiu:
-E esse destinatário existe?

-Ainda não, espero que um dia ele transponha aquela porta…

-O amor não necessita de palavras… - concluiu o empregado.

A senhora suspendeu a respiração, fixou o olhar embevecido no senhor e declarou:

-Como nunca reparei em si! É a minha alma gémea…

Ninguém mais viu ou soube algo do funcionário. Há quem diga que se evaporou.

A senhora é que jamais desistiu de o ver. Todos os dias lá continua a ir, mas não leva o bloco. Na sua cabeça ecoa a frase do seu amado:”O amor não necessita de palavras”.

Jorge C. Chora


terça-feira, 15 de abril de 2014

Comadre Nhonhoca e a sua caroca



Nhonhoca escolheu a sua melhor caroca,
Para ofertar ao seu filho Nhoca.
Qual o seu espanto quando
lhe ficaram com a caroca
dizendo-lhe que ela não podia
embarcar no avião.
-Como não, se ela voa e eu não!
-É proibido comadre, se não pode, não pode!
Manda quem pode, obedece quem deve!
Nhonhoca arregalou o olho  e percebeu tudo:
Aquele filho de uma quizumba queria comer-lhe a caroca!
Ah! malandro! Vais ver as dores de barriga que vais ter,
E as maçarocas que expulsarás quando fores à casa de banho!
Mal chegou a Lisboa informou-se onde podia comprar outra caroca.
- Na Brandoa, comadre Nhonhoca!
Chegou feliz à casa do Nhoca, com a caroca numa mão, a mala na outra,
E a Amadora no coração.
Nhoca deitou as mãos à cabeça quando viu a caroca.
Instalou-a na varanda do apartamento.
Às cinco da manhã ,ficou ciente de que na varanda
não  habitava uma caroca mas um caroco,
tão audível foi o córócócó.
Deitaram os vizinhos  contas à vida,
Imaginaram o caroco assado no espeto ou mesmo frito.
No dia seguinte o caroco já lá não residia,
Pois um outro destino lhe foi dado: acabou na panela da vizinha!
Era uma vez um caroco, oferta da mãe Nhonhoca ao filho Nhoca …

Jorge C. Chora

sábado, 5 de abril de 2014

Verde tinto ou verde framboesa?

                                           

Uma jovem senhora, tinha pouca ou nenhuma paciência para esperar pelo verde nos semáforos.
Ao passar com a luz vermelha, acabada de cair e alertada pelas passageiras a quem ocasionalmente dava boleia, para o facto de já ter passado com o vermelho, respondia:

-Estás enganada! O sinal estava verde tinto!

A resposta foi essa até que, ocasionalmente, viu, numa loja, escrito numa pequena ardósia, pendurada à porta, a frase “verde framboesa”.

Parou e observou-a. Resolveu adoptá-la para as suas respostas/desculpas, pois achou que, ao
dizer que o sinal estava verde/tinto, isso  era de mau gosto porque podiam associá-la ao vinho verde tinto e aos seus eventuais maléficos efeitos.

Agora, quando não respeita os vermelhos e disso é recordada, posiciona os graciosos lábios na posição de quem vai um beijo repenicado e diz:

-Estás enganada! O sinal estava verde framboesa!

Um destes dias ficou para morrer, quando uma mulher polícia a mandou parar, e como se lhe fosse dar um beijo repenicado lhe disse:

-A senhora está multada por ter passado com o verde framboesa…

O resto já não ouviu. Como se atrevia ela a roubar-lhe a expressão verde framboesa!?

Jorge C. Chora


quarta-feira, 2 de abril de 2014

Os amores de Chico e de Glória e um Chevy à mistura

                                             

Amavam-se dia sim, dia não. Amavam-se à vez. Chico adorava-a nos dias pares e Glória nos dias ímpares.
Farto de não ver o seu amor retribuído nos seus dias, Chico propôs que se adorassem todos os dias e retribuíssem o sentimento por inteiro, quer se tratasse do dia dele ou dela.

Concordaram em fazê-lo e cumpriram durante uma semana o pacto. Na 2ª semana acharam que estavam em dívida para com um amor que tinham em comum: um chevy de 1954.

E os cuidados a ter com o chevy? Quem lhos daria? Se até ali o que estava dispensado de amar se lhe dedicava, agora que ambos se comprometiam, por inteiro, à relação Glória/Chico, o abandono desse ser idolatrado, afigurava-se-lhes como um crime de lesa-amor.

Retornaram à antiga fórmula, até que um dia instituíram o dia de São Chevy e acabaram em definitivo com os dias pares ou ímpares.

Era uma vez o amor de Chico e de Glória no qual se imiscuiu um chevy.

-Oh Lord don’t  give us chevy’s…

 Jorge C. Chora


·       *  Um chevy é um Chevrolet

terça-feira, 1 de abril de 2014

Já não há alfaiates como os antigos!

       
Encontrei uma girafa que estava de cabeça perdida.
 Dirigia-se ao alfaiate e ia reclamar
Por este lhe deixar os bolsos descosidos.
Queixava-se de que já não havia alfaiates como os antigos,
Que os modernos eram uma desgraça.
Permitiam a qualquer um o livre acesso aos seus bolsos
E por isso bem sentia as mãos que neles se introduziam
A qualquer hora do dia ou da noite, sem dar cavaco
A ninguém e, pelo menos que ela se lembrasse,
 Também não dera a sua autorização.
Tudo lhes servia, fosse pouco ou fosse muito,
E por isso andava de cabeça perdida sem saber o que fazer.
 Alguma culpa o artesão teria de ter no cartório,
Pois essa de deixar os bolsos descosidos
Nem ao demónio lembraria,
E apressou o passo pois desejava lá chegar
E encontrar a porta aberta.
Qual não foi o seu espanto quando ainda distante do destino,
Esticou o pescoço e viu centenas de irmãs suas
Formando uma longa, mesmo muito longa fila,
À porta da alfaiataria.
Apressou o passo e, ao chegar, juntou-se ao coro
Que se ouvia:
-Queremos os bolsos cosidos…queremos os bolsos cosidos
O velho alfaiate saiu à rua e disse:
-Minhas lindas girafinhas, por muito que eu
Cosa os vossos bolsos, os que deles se servem,
Têm tesouras que os cortam num ápice.
E as girafinhas, batendo o pé e esticando o pescoço
Fizeram-se ouvir:
-Fora com as tesouras…fora com as tesouras
Daí para frente, o velho alfaiate passou a poupar nas linhas
Pois a culpa, ponto assente, era das tesouras.
Ele até veio para a rua juntar-se às girafinhas:
-Fora com as tesouras…fora com as tesouras…

Jorge C. Chora

sexta-feira, 28 de março de 2014

As razões da tristeza da gata pernilonga



A  gata pernilonga passa o dia a miar,
Porque dela a amargura se apossou,
Pois quer casar e não a deixam.
Falta-lhe o vestido que teve de vender,
Comprou-o e não foi capaz de pagá-lo.
O mesmo se passou com a casa que escolheu
Com muito amor e no momento de ficar com ela
Verificou que o seu trabalho se tinha eclipsado.
Os ratos que outrora caçavam tinham proliferado tanto,
Que agora eram eles que caçavam os gatos.
Entre uma e outra desgraça o tempo foi passando
E hoje, para cúmulo da sua infelicidade,
Trouxeram-lhe a notícia do falecimento do Grande-Miau-Miau,
Seu eterno noivo. Pior foi quando inquiriu o malfadado mensageiro
Sobre a causa da sua morte e este lhe segredou:
-De velhice, minha cara amiga.

Jorge C. Chora



terça-feira, 25 de março de 2014

Só minha

        
Se eu tivesse o condão
De te aquecer com os meus olhos,
Ah! Como estarias sempre quente!
Viverias nos trópicos e saudarias
Os dias com aleluias.
Pior seriam aqueles dias
Em que a minha paixão incendiasse o meu olhar,
Viverias num braseiro,
E eu correria o risco de te
Desnudares aos olhos de outros e não só dos meus!


Jorge C.Chora

sábado, 1 de fevereiro de 2014

Ouvi mal?

A jovem franziu o nariz, arqueou as sobrancelhas e deu-se ares de enjoada. Olhava para as pessoas   que a rodeavam como se elas tivessem uma doença contagiosa.

Os seus cabelos meio alourados, estavam apanhados no alto da cabeça e formavam um carrapito.

Uma das muitas senhoras  de  baixa estatura que a cercavam, mais mourisca do que uma andaluza, ao vê-la revirar os olhos, achou que aquele ar teatral era demasiado para o seu gosto e não se conteve:

-Este povinho que não tem onde cair morto…dá-se ares de importância, como se fossem banqueiras!

E foi aqui que a jovem loira, trineta de uma criada escocesa e de um bisnau das beiras, se abespinhou:

-Será que eu ouvi bem? Ela chamou-me povinho? Povinho, eu!?

-Não, ouviste mal, uma pessoa tão distinta como tu, podia lá ser do povo… - consolou-a  uma amiga , receando uma explosão de fúria por parte da descendente escocesa.


Jorge C. Chora

terça-feira, 14 de janeiro de 2014

A propósito de um ditado africano

Há um ditado africano que diz mais ou menos isto:” Se vires um cágado em cima de uma árvore, não penses que foi ele que subiu: alguém o pôs lá.”

O que o ditado não diz nem explica, é que essa realidade teve um princípio. Um princípio?

Sim, claro! Tudo tem um início e, como tal, tem de ter um fim, embora, neste caso específico, não se vislumbre ou anteveja, o fim dos cágados nas árvores.

Então qual foi o princípio? Vou já contar, não se apressem.

Um belo dia, um macaco com um currículo de patifarias que faria corar de inveja o mais empedernido dos sabujos, resolveu dar um passeio na selva. Olhando para a esquerda e para a direita, para cima e para baixo, não lhe sobrou tempo para olhar em frente.

Num piscar de olhos foi vítima de uma cilada. Apanhou tantas ou tão poucas, que jurou a si próprio e aos do seu grupo, nunca mais correr sequer o risco de cair noutra.

 Juntou os seus apoiantes e explicou-lhes que era necessário colocar observadores no maior número de árvores possível. Eles seriam os seus olhos e deviam depender, na totalidade, de si e dos seus.

O conselheiro-mor,  um macaco sabido e de longa barbicha branca, disse:

-Os melhores para essas funções são os cágados.

-Os cágados? Mas esses, coitados, nem às árvores conseguem subir…

-Por isso mesmo!-  gargalhou o conselheiro - Eles sabem que quem lá os pôs os pode tirar a qualquer momento, sem ter de dar qualquer justificação. Dependem de nós para tudo. Podemos atirá-los contra os que se nos opõem, fazê-los cair em cima deles. Matamos dois coelhos de uma só cajadada: esmagamos os que reclamam e criamos um lugar novo para substituirmos os cágados que morrem.

-Ó conselheiro, assim, com o decorrer do tempo,  corremos o risco das árvores não suportarem o peso dos cágados que lá colocamos! –  observou um jovem pertencendo ao grupo.

-Não te preocupes meu amigo… o teu lugar está assegurado… - É só obrigar todos aqueles que não pertencem ao nosso lado a plantarem mais árvores e promover, alguns deles, a cágados, para dar alguma esperança a quem não a tem.

E o conselheiro-mor  voltou à sua tarefa, a de consultar e seleccionar,  entre a longa lista de candidatos a  cágados, os que ia  nomear…


Jorge C. Chora

quinta-feira, 9 de janeiro de 2014

O passeio

Três amigos realizavam um passeio aéreo de balão, cada um no seu, quando uma tempestade súbita os arrastou para terras longínquas.

Quando a tormenta amainou, acharam-se a sobrevoar um vasto campo de estacas pontiagudas, existindo, quase a meio, uma clareira de grande dimensão. Comunicaram entre eles, através de sinais, aterrar no local.
Ao desembarcarem, decidiram explorar a clareira e descobriram uma gruta e, espalhadas no seu interior, bem distante da entrada, inúmeras barras de ouro.

Apressaram-se a juntá-las, contá-las e a dividi-las pelos três. A seguir, começaram a transportá-las para os seus respectivos balões.

O piloto do balão azul, logo que conseguiu transportar vinte barras e ocupou metade do chão do seu cesto, declarou que ia partir e voltaria mais tarde para ir recolhendo o resto do que lhe coubera na divisão.

-E só levas isso? E se alguém descobre o tesouro e nos leva o que deixámos?

-Não vou arriscar-me a não conseguir levantar voo devido ao excesso de peso!

Despediu-se dos amigos e partiu.

O dono do balão amarelo, colocou várias camadas no chão do balão e, após várias tentativas, conseguiu descolar. Passado um bocado, começou a perder altitude e, uma rajada de vento inesperada, fê-lo despenhar-se entre as estacas pontiagudas e perder a vida.

O terceiro viajante, não se apercebeu do que acontecera ao amigo e continuou a carregar até ao topo o seu balão vermelho. Foram várias as tentativas falhadas de se elevar nos ares.

Não se deu conta do aparecimento de alguns homens, armados e semi-nus, que o cercaram. Roubaram-lhe o tesouro e ao verem que havia mais ouro na gruta, mataram-no para que só eles soubessem da sua localização e ninguém ficasse a saber do roubo.

O sobrevivente, ao chegar são e salvo ao seu local de destino, foi cercado por um bando de homens que lhe confiscou a totalidade da sua fortuna, assim como o balão. Sempre ambicionara comprar, entre outras coisas, um carro e viu esfumar-se o seu sonho.

Acabou por conduzir o automóvel da sua paixão, um Jaguar, pois o chefe do referido grupo decidiu comprá-lo, com o ouro que lhe tinha surripiado, mas concedendo-lhe, por especial favor, o privilégio de ser o seu motorista.

O leitor também suspeita que o querem transformar em motorista ou julga que nem isso lhe vão permitir?


Jorge C. Chora

quarta-feira, 1 de janeiro de 2014

O cesto ou a pescadinha de rabo na boca

                                                 
A carrinha parou em frente à habitação. Três homens engravatados saíram carregando um pequeno cesto com frutas. Tocaram à porta e entregaram-no. Um cartão acompanhava a dádiva, com uma mensagem que dizia:” Na situação em que estão, é preciso que elas durem. O segredo está na poupança.”

A família deu graças a Deus. Logo ali prometeram que ninguém ultrapassaria os limites.

À mesa cada pessoa comia uma e só uma peça de fruta. Por vezes, cortavam um bocado e esse pedaço servia de lanche. E pouparam, e o cesto durou, durou…

Ao fim de algum tempo, quando todos tinham tirado o seu quinhão do dia, ao abrirem a fruta para a comerem, verificaram, consternados, que ela não podia ser consumida por ter apodrecido.

Correram para o cesto e, surpresos, constataram que, das poucas que sobravam, não havia uma que se aproveitasse.

Quando um amigo da família chegou e viu o que se passava, perguntou:

- Porque não fizeram doce, antes que se estragassem? Era só barrar os “croissants” e aproveitavam tudo…

-“Croissants”?

E a família, em silêncio, colheu as sementes e decidiu semeá-las num pequeno vaso.

Dias depois, os mesmos três homens, entregaram outra missiva:

“Prezados Senhores,
Esperamos que tenham correspondido ao investimento que fizemos na vossa família. Depreendemos que os senhores tiveram o cuidado de guardar e semear os caroços das frutas que vos foram cedidas.

Prevendo nós uma grande colheita daqui a quatro anos, tomámos a liberdade de contratualizar a percentagem das frutas que nos deverão entregar enquanto investidores. É justo que recebamos, por cada peça de fruta que investimos, pelo menos dez, por cada ano que passou.

Caso não consigam cumprir os prazos, por cada mês vencido, deverá ser entregue pelo menos mais uma peça, a acrescentar ao número anteriormente definido.

Os lucros obtidos, devem ser investidos na compra de quintas, ficando como garantia do nosso investimento, em nosso nome, pelo menos quarenta por cento do valor das mesmas.

A equipa que vos está a entregar esta mensagem, tem autorização para vos entregar uma segundo cesto de frutas, caso se comprometam a respeitar o clausulado aqui expresso.”

Mal acabaram de ler o contrato, caiu uma forte chuvada, que derrubou o vaso e arrastou as sementes.

-Nem tudo está perdido! Ainda temos um cesto no carro e um compromisso para assinar… - exclamaram os três homens, estendendo os papéis aos futuros proprietários.

A família saiu a correr para uma instituição de crédito, para pedir um empréstimo para comprar uma quinta.

O problema foi quando a família descobriu que quem”oferecia a fruta” era a própria instituição de crédito.

“Em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo”, disseram enquanto se benziam e fugiam a sete pés. O mais velho da comunidade, apoiado num cajado, coxeando, até o latim recordou enquanto dava ao pé:”In nomine Patris, et Filii, et Spiritus Sancti”

Até hoje, mais ninguém os viu.


Jorge C. Chora