sábado, 27 de fevereiro de 2010

A Gata Renhau - Nhau

Vou contar-vos a história de uma gata vaidosa. Chamava-se Renhau-Nhau e descendia de uma antiga, ou melhor dizendo, antiquíssima família de felinos.

Uma sua antepassada tinha tido como dona, D. Teresa, e Tareco, o marido da referida gata, por incrível que pareça, pertencia a Egas Moniz. Quando falamos de D. Teresa, é claro que falamos da mãe do nosso primeiro rei, D. Afonso Henriques. Quanto a Egas, é evidente que, embora tenhamos duas figuras muito importantes da nossa história com esse nome, falo da primeira, do aio do nosso rei, daquele que ainda agora falámos.

A gata era muito vaidosa e passava os dias a espreguiçar-se e a ver-se ao espelho. Recusava dar-se, ou mesmo falar, com a maioria das outras gatas pois não tinham a sua dignidade:

-Que horror! Tão rafeiras que elas são… mesmo desinteressantes…

Quando passava por elas até fingia não as ver. Eram gatas rafeiras, como ela dizia, e ela, afinal, uma Renhau – Nhau, com hífen e tudo. O hífen não é só o tracinho que separa o Renhau do Nhau: este tracinho era a coisa mais importante, pois era ele que lhe atribuía raça e a separava dos rafeiros, pensava ela.

A nossa gata, comportou-se de tal modo com as suas amigas, que elas decidiram retribuir-lhe da forma como eram tratadas: deixaram de lhe falar e fingiam não a ver.

Triste e só ficou Renhau-Nhau. A cada dia que passava ela emagrecia, o pêlo caía-lhe e os olhos perdiam o brilho. A princesa tornou-se uma bruxa, daquelas antigas, mesmo muito, mas mesmo muito feia.

Tudo o que era gato ou gata fazia troça da Renhau e cantavam sempre que a viam:

Aí a Renhau que merece tau tau
Tão vaidosa qu`ela era
E feiosa qu`ela está

E a outrora bela Renhau chorava, e chorava ainda mais quando, mesmo as gatas que ela nunca tinha visto cantavam com quanta força tinham os versos que a magoavam:

Aí a Renhau que merece tau tau
Tão vaidosa qu`ela era
E feiosa qu`ela está

Foi por essa altura que ela conheceu o mais rafeiro dos gatos, o Faneca. Alegre, brincalhão e amigo de todos, tratou a Renhau-Nhau com a simplicidade e delicadeza que dispensava a todos os que o rodeavam, como um verdadeiro príncipe que era, pouco se preocupando com o facto dela parecer ou não uma bruxa.

À medida que o tempo foi passando e o contacto com o mais rafeiro dos rafeiros se foi intensificando, o comportamento da nossa gata alterou-se, começou a aprender a respeitar os que a rodeavam, recuperou a sua beleza e, espanto dos espantos, passou a gostar também dos que eram diferentes dela.

Como acabou esta história?

Renhau-Nhau agradeceu ao deus dos gatos a sorte que tinha tido, e sempre que se dirigia ao seu gato rafeiro dizia cheia de nhau…nhaus e admiração:

-Meu príncipe…

E o mais rafeiro entre os rafeiros, sempre que isto ouvia, afagava-lhe as orelhas felpudas e respondia-lhe:

-Diz princesa…

Jorge C. Chora

domingo, 21 de fevereiro de 2010

SÃO BORRAS SENHOR!

Um aldeão das Beiras pediu à mulher que despachasse cinco alqueires de azeite para Lisboa. O assunto seria de somenos importância e de fácil resolução, não fosse dar-se o caso de estarmos na época do racionamento em Portugal, em vigor na 2ª guerra mundial.

A mulher dirigiu-se à Vila para tratar do despacho. Como que por artes mágicas, o fiscal da comissão reguladora, sujeito gordo, bexigoso e enxertado em corno de cabra, do qual até os lobos ao pressentirem a sua presença, perdiam o pio, quer dizer, deixavam de uivar e recolhiam às tocas, veio a saber do trato. O capeta apreendeu de imediato o azeite por falta de guia, remetendo num ápice o processo para o tribunal da comarca, localizado a uns quilómetros da Vila.

Ordenou com toda a pompa, que a prova do delito fosse guardada num armazém local, do qual guardou religiosamente a chave, encafuando-a no bolso direito, maior do que os alforges da mula que o transportava. Guardada a prova a ser apresentada em tribunal, descansou o zeloso funcionário, com a consciência tranquila de ter prevenido tão horrendo crime.

De noite, com a sensação do dever cumprido, roncou tanto ou tão pouco que as mulas no andar de baixo escoicearam o curral de tal modo, que os taipais se tornaram semelhantes a um crivo.
Na presença do juiz, o fiscal parecia inchado, e os acusados, mais pequenos que um borreguito nascido na véspera do seu infortúnio.

Julgado o caso, alegaram os réus que se tratava unicamente de enviar para uma fábrica de sabão, as borras de azeite e que a prová-lo (e isto dito entre muitos ais…) podia ser verificado o que estava nas bilhas:

-São borras senhor!

O desalmado fiscal ria-se com a defesa ingénua do casal, que tremia da cabeça aos pés e se lamentava em simultâneo: ai eu…ai eu… ai eu…

Na véspera um casal amigo do peito lograra entrar no armazém e trocar o conteúdo das bilhas.
Perante semelhantes provas, qual teria sido a atitude do juiz?

O casal foi absolvido.

Jorge C. Chora

sábado, 20 de fevereiro de 2010

É Meu

Gotas de suor escorriam da testa de Eduarda. As suas mãos ocupavam-se a colher amoras silvestres. Era Verão, estava-se em Agosto e eram quase quatro da tarde. Ao seu lado e ocupadas na mesma tarefa encontravam-se Laura e Francisca. Eram colegas de escola, encontravam-se de férias e todas partilhavam um gosto: adoravam compota de amoras silvestres feitas pela D. Adelaide, mãe de Francisca.

A destreza de Laura não evitou que se tivesse picado num dedo e parasse a colheita para chupar o pingo de sangue. Francisca ao ver o que sucedera à amiga apressou-se a depositar as amoras que tinha, no chapéu que estava a seus pés, para a auxiliar. Ao debruçar-se sentiu um restolhar e pareceu-lhe ver umas folhas a mexerem-se no chão. Parou a observar. Eduarda e Laura imobilizaram-se.

- O que se passa Francisca?

- Silêncio, há aqui qualquer coisa… - respondeu-lhes, colocando o dedo indicador em frente aos seus lábios.

Calaram-se e colocaram-se à escuta.

- Estou a ouvir qualquer coisa… - disse Laura.

- Eu também - concordou Eduarda.

Os sons começaram a ouvir-se de forma mais nítida. Eram latidos sem margem de dúvida. Apressaram-se a afastar as folhas e surgiu uma bola de pêlo amarelo: era um cachorro.

- É meu! - bradou Eduarda.

- Eu também o quero… - reclamou Laura.

Francisca calou-se. As duas amigas continuaram a discutir e a esgrimir argumentos.Com cuidado Francisca pegou no cãozinho e quando o virou para si verificou, e as amigas também, que ele tinha um olho inchado, fechado, e o peito ensanguentado.

- Pensando melhor, a minha mãe é capaz de não achar muita graça a um cãozinho lá em casa - comentou Eduarda, disfarçando um esgar de repulsa.

- Não tinha pensado nisso. Tens toda a razão! A minha também precisa de ser poupada e evito-lhe dissabores - apressou-se Laura a dizer.

Francisca levou-o e D. Adelaide acolheu-o e ajudou a tratá-lo. Um mês depois tornou-se uma autêntica beleza canina e foi baptizado pelo trio de amigas como “Pitt”, mas depois só “Brad”, inspiradas no seu ídolo.

Eduarda e Laura não deixariam passar um dia, um único que fosse, sem que dissessem:

- Então Francisca, quem são as amigas, que te deixaram ficar com o Brad?

Jorge C. Chora

segunda-feira, 15 de fevereiro de 2010

Sumos e Massagens

A carrinha estacionou no princípio da rua e dela saíram quatro belas raparigas e dois rapazes. De imediato, começaram a descarregar pacotes de folhetos que os rapazes separavam e empilhavam em quatro montes. Cada rapariga recolhia uns molhinhos e dirigiam-se depois para o início da rua, uma de cada lado, e as outras duas para o fim, também para lados separados.

Um dos rapazes, olhando para o relógio, retirou um pequeno apito amarelo, da cor dos folhetos, esperou uns segundos e deu o sinal de partida.

De ambos os lados as funcionárias deram início à distribuição dos folhetos, movendo-se em seguida para se juntarem no centro. Em passos cadenciados e vigorosos, as longas e torneadas pernas tremiam o estritamente necessário, mostrando elegância e firmeza, apanágio de verdadeiras modelos.

Os folhetos eram aliciantes. Anunciavam diferentes serviços de equipas profissionais em construção e manutenção de jardins, piscinas, saunas e solários.

O percurso das funcionárias estava segmentado em várias partes e no fim de cada uma, os rapazes iam ao seu encontro com mais uma remessa de panfletos. Acto contínuo, havia um pequeno descanso em que cada funcionária estendia as pernas e era massajada, por alguns segundos, correndo o funcionário para o outro lado da rua para proporcionar à outra colega o revigorante tratamento. Nos dias de calor distribuíam um sumo fresco.

Da parte da tarde, o proprietário da empresa, ao chegar ao escritório encontrava, geralmente, grandes filas à sua espera. Uma fila com aqueles que queriam recorrer aos serviços da empresa, encomendando serviços ou construções e duas outras filas, uma de rapazes e a outra de raparigas para se inscreverem nos serviços de distribuição.

-Ou acordam ou vão ambos para a rua! Até parece que estão a sonhar com o paraíso – vociferou colérico o encarregado empoleirado na parte de trás da carrinha, farto de esperar pela Amélia e pelo João, com mais de cinquenta quilos de panfletos publicitários para serem distribuídos.

-Já vai chefe…Já vai – resmungaram ambos, sonhando com sumos e massagens.

Jorge C. Chora