quarta-feira, 25 de janeiro de 2012

O telefonema

Quis telefonar e não consegui:

o fio do telefone tinha sido cortado.

Fui a outra cabine e também não resultou:

a caixa onde se colocavam as moedas desaparecera.

À terceira onde fui, tinha o telefone, o fio e a caixa,

mas estava avariada.

Quando finalmente encontrei uma a funcionar,

esqueci-me por que motivo queria telefonar.

Jorge C. Chora

sábado, 7 de janeiro de 2012

O servo de Midas

O facto do anafado e beberrão Sileno, se ter perdido da comitiva do seu amigo Baco, o deus Baco, é de todos conhecido. O que se seguiu também é do domínio público: o rei Midas encontrou o borrachão, tratou-o às mil maravilhas e entregou-o são e salvo ao deus do vinho. Felicíssimo pelo seu amigo ter sido encontrado, Baco concedeu a Midas a concretização de um desejo: transformar em ouro tudo em que o rei tocasse. Até aqui não há novidade nenhuma.

Quando Baco concedeu ao rei Midas a concretização do seu desejo, a de transformar em ouro tudo em que tocasse, mal sonhava que um dos servos do rei estava a espreitá-los. O servo viu Baco ir à caixa do pó mágico e lançá-lo sobre Midas.

“Tudo Quer” era o nome deste servo que ficou possesso ao ver o rei tocar numa maçã e esta transformar-se em ouro. A cobiça cegou-o.

Um frenesim demoníaco tomou conta dele. Esgueirou-se porta fora e correu para o local onde estava a caixa com o pó que vira ser lançado sobre Midas. Nervoso, sôfrego, incapaz de controlar o desejo, mergulhou a mão na caixa trazendo uma enorme quantidade de pó mágico, que se apressou a atirar sobre si próprio. Sentiu o peito rebentar-lhe de felicidade. Já podia ter tudo o que quisesse. Veloz, dirigiu-se ao celeiro do palácio, lançou-se sobre um fardo de palha e abraçou-o de imediato. Qual não foi o seu espanto quando, em vez do fardo se transformar em ouro se tornou num enorme monte de esterco. Levantou-se mais rápido do que um relâmpago e atirou-se para outro fardo: apareceu um segundo monte de esterco!

Com a cabeça perdida, correu para uma sela pendurada na parede. A sela, depois de tocada, transformou-se no terceiro monte de esterco. Recusou-se a acreditar no que lhe estava a acontecer. No dia seguinte, foi com satisfação que verificou que podia tocar novamente em tudo, que nada, mesmo nada acontecia. Quando se convenceu que o sortilégio tinha deixado de existir teve a muito desagradável surpresa de verificar que no dia seguinte voltara ao mesmo: Tudo em que tocava se transformava em esterco.

Como iria reagir o seu rei ao vê-lo transformar em porcaria tudo aquilo em que tocasse?”Tudo Quer” arrependeu-se mil vezes do acto que cometera. Fugiu e só parou ao pé de um porto onde estavam ancorados alguns barcos. Pela calada da noite logrou embarcar sem que ninguém o visse. O navio partiu no dia seguinte e navegou vários dias.

Acabou por desembarcar num porto desconhecido, na cidade de Olissipo. Por lá se casou e teve numerosa prole. O único senão é que os seus descendentes herdaram o seu problema: dia sim dia não, tudo em que tocavam se transformava em mer..

Foram tão numerosos os descendentes que povoaram boa parte do território europeu e alguns partiram com Colombo para as Américas.

Muitos deles acabaram por se dedicar à política, à banca e aos negócios imobiliários…

Livra!

Jorge C. Chora

segunda-feira, 2 de janeiro de 2012

O Flamejante

Chegou ao lugarejo envolto numa auréola de mistério. Ninguém fazia ideia de quem era o fulano, o que fazia, ou porque escolhera aquela terra para viver. Sentiam, no entanto, de modo vago, que havia qualquer coisa de familiar nele…

Alguns dos habitantes apressaram-se a construir-lhe uma fama de dotado, habilidoso, capaz de prodígios que eles próprios atestaram como tendo presenciado. Forjaram com o estranho uma partilha de intimidade, uma comunhão de interesses imaginária:

-Se vocês imaginassem quem ele é… claro que não sabem… - dizia um dos amigos, ficcionando uma proximidade, procurando elevar-se aos olhos dos conterrâneos.

-Claro que eles estão impossibilitados …nem sequer são seus amigos… - concluía outro dos aldeões.

Em tempo recorde, ninguém ficou excluído de pertencer ao círculo de íntimos de amigos do recém-chegado.

-Afinal como se chama o homem? - perguntou alguém.

-O que é que isso interessa? – repreenderam-no os restantes.

O tempo foi passando e os locais foram dando e reforçando as provas de apreço, ao que o estranho respondia com um breve franzir da testa. Desconhecendo o significado de tal comportamento, empenhavam-se ainda mais procurando satisfazê-lo em tudo o que estivesse ao alcance.

Ao fim de quinze dias, o forasteiro ofereceu os seus préstimos para atear a fogueira que daria início à festa da aldeia. À hora marcada, a população compareceu frente à câmara municipal e o amigo de todos também. Olhou em redor, esboçou um sorriso e pediu que segurassem uma pequena tocha, à distância de dois passos da pira de lenha. Avançou cerca de cinco metros e parou. Ficou imóvel durante um tempo, com as mãos colocadas em posição de oração.

Um silêncio pesado abateu-se sobre os presentes. O homem continuava hirto e concentrado. Quando a multidão menos esperava, levanta a perna esquerda, espera uns segundos que a flatulência faça efeito e…eis senão quando, bombardeia a tocha que lança o fogo ao madeiro. A chama era tão intensa que se propagou ao edifício camarário e ao casario em seu redor. Nada sobrou da aldeia. Foi aí que alguns dos presentes se lembraram de que num sítio próximo, um homem que ficou conhecido como o “Flamejante”, tinha feito a mesmíssima coisa.

Pior do que as chamas e as ruínas, só o fedor pavoroso, por incrível que pareça, ficou a pairar na localidade desde essa época.

O “Flamejante” continua a andar por aí.Por precaução, vá apertando o nariz…

Jorge C. Chora