quarta-feira, 15 de dezembro de 2010

Um dia aziago

Os pneus chiaram denunciando uma travagem brusca. O motorista olhou à esquerda e depois à direita. Ninguém à vista. O dia correra-lhe mal e a noite fora ainda pior. Trouxera até ali quatro clientes, os únicos que conseguira. Não conhecia a zona. Sabia que era perigosa, mas aceitara o trabalho. Quando não se tem escolha…

Estava nesta aflição, procurando a saída do bairro degradado, quando viu um homem à esquina e avançou abruptamente para recolher a informação que lhe permitisse sair dali.

-O senhor dava-me uma ajuda?

-Toda a que for precisa…

Nesse momento reparou melhor no seu interlocutor: usava óculos escuros, embora fosse noite cerrada, e tinha uma bengala para tactear o caminho. Arrependeu-se de imediato de ter parado. O azar não o largara. O dia fora mau, a noite não melhorara e agora mais este episódio.

-Não esteja a pensar que pelo facto de eu ser invisual estou impedido de o auxiliar… ora diga lá em que posso ser-lhe útil…

-Estou perdido. Dei tantas voltas ao bairro que agora não sei a quantas ando… quero sair daqui e nada…

-Não se preocupe. É um bocado difícil mas não impossível. Ajudo-o com todo o prazer mas precisava também da sua…

-Por quem é…disponha… -interrompeu-o o condutor.

-Tenho aquele sofá e os quatro cadeirões para levar para o terceiro andar. O meu irmão vem já a descer e se…

-Ajudo-o a levar a mobília…

Todo suado, soprando de cansaço mas com o dever cumprido tornou a sentar-se na viatura.

-O prometido é devido…para sair do bairro basta-lhe virar ali à esquerda e daí a uns cem metros está na rua principal. Amor com amor se paga…

De repente lembrou-se de que, no dia anterior, no Rossio, recusara transportar um invisual para aquele bairro… “Será o mesmo?”, pensou.

Ainda mal tivera tempo de reflectir quando ouviu:

-Lembra-se do que me disse ontem na estação do Rossio?

Não se recordava, mas coisa boa não fora. Um dia aziago!

Jorge C. Chora

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sexta-feira, 3 de dezembro de 2010

A cozinheira que trabalhava às escuras

Habituara-se a trabalhar à média luz. À medida que a crise foi apertando, colou-se aos objectivos dos donos do restaurante: poupar a todo o custo. Passou a laborar praticamente às escuras.

Um dia, tamanha era a escuridão na cozinha que fez um arroz de pato no forno, utilizando, sem se aperceber, carne de frango desfiada que estava ao lado da do pato.

-Bonito serviço! – exclamou, quando deu pelo engano.

Calou-se muito bem calada e serviu o prato como se fosse de pato. Um cliente acabou por dar pela troca e reclamou.

A cozinheira, chamada a justificar o engano, negou a pés juntos qualquer eventual engano:

-Deve ser do seu paladar…

-Reafirmo o que disse, não há a mínima hipótese de engano…

Perante a continuação da reclamação, a profissional engendrou uma desculpa:

-Olhe… só se foi pelo facto do pato ter estado ao lado do frango e ter tomado o seu sabor…

O cliente sorriu e concordou com o que ela lhe disse. Continuou o seu jantar, de modo tranquilo, encomendando e consumindo o doce, a fruta, o café e os digestivos.

No final da refeição pediu a conta que rondava cerca de cinquenta euros. Puxou da carteira, tirou cinco euros e colocou-os no pratinho da conta, chamando a cozinheira.

-Quero que a senhora seja testemunha de que estes cinco euros estiveram ao lado desta nota – e abrindo a carteira mostrou-lhe a nota de cinquenta euros que lá tinha.
A cozinheira sorriu e disse:

-Tem toda a razão, ela agora julga ser de cinquenta euros!

Jorge C. Chora

quarta-feira, 1 de dezembro de 2010

As pulseiras

A senhora escorregou no café e deu uma queda aparatosa. Voou quatro degraus e bateu com as costas no chão. Foi imediatamente socorrida mas por sorte não partiu nada, embora tivesse ficado bastante dorida.

Um jovem que aí trabalhava, resolveu desdramatizar a situação:

-Agora, para lhe passar a dor, o melhor remédio era ir à joalharia e presentear-se com duas pulseiras de ouro maciço.

-A minha dor passava com duas pulseiras de ouro? Por amor de Deus! – enxofrou-se, fazendo uma careta estranha, fungando de modo repetido e remetendo-se ao silêncio.

Aflito com a reacção, o jovem desfez-se em desculpas, arrependido da gracinha:

-Mil perdões, acredite que não tive qualquer intenção de a ofender…longe de mim semelhante propósito…

E a senhora, com uma cara séria, olhou-o bem nos olhos, fungou de novo e disse-lhe:

-Não se aflija…o que eu não quero, não admito e considero mesmo ofensivo, é que menospreze a minha dor…

-Mas eu…

-Não me interrompa por favor…deixe-me explicar, fazê-lo entender, compreender bem a situação, a extensão da minha dor…

Cada vez mais apreensivo, o interlocutor torcia os dedos, olhava para o chão, desviando-se do olhar directo e fulminante da senhora.

Ela retomou a palavra, um pouco ofegante:

-O que eu quero dizer é que a minha dor só pode ser compensada, se isso fosse possível, não com duas, mas sim com três pulseiras de ouro maciço!

-Se me permite, posso dar-lhe uma sugestão? – perguntou o jovem, um pouco receoso.

-Claro…

-No fim da rua há uma ourivesaria que é de um tio meu…ele faz-lhe um desconto se for lá comigo…

Jorge C. Chora

segunda-feira, 15 de novembro de 2010

O canto dos linguarudos

Reuniam-se no café e o único assunto que sabiam e gostavam de discutir era em torno do dinheiro, de quem tinha mais, do que este e aqueloutro tinham ou deixavam de ter. Todas as conversas, sem excepção, se encaminhavam para o referido assunto.

Naquele fim-de-semana, para não variar, o mesmo grupo, sentado no mesmíssimo lugar, discutia o tema de sempre: o dinheiro. A única diferença, se é que isso contava, era que se discutia quem tinha as maiores propriedades no concelho. Sicrano e Beltrano vieram à liça por diversas ocasiões e pela primeira vez a opinião foi consensual: sem dúvida eram os maiores.

Sentado na mesa ao lado estava o António, tão ou mais linguarudo do que os vizinhos, mas sem cabidela nos suas conversa devido ao sua falta de estatuto económico: era muito pobre. Desejoso por participar na conversa aclarou a voz e disse:

-Peço perdão…quem sou eu para discordar de tão ilustres senhores…

Entreolharam-se os interlocutores, surpreendidos com a intromissão:

- Falaste Tónio? Queres dizer alguma coisa?

-Se me permitirem…

-Despacha-te…diz lá… - remataram os linguarudos.

-Bom…o que eu digo e repito, para quem me quiser ouvir, é que eu estou de acordo com o facto de eles serem os maiores proprietários…mas nenhum tem uma propriedade que se estenda por três concelhos!

-Por três concelhos? Não há quem esteja nessas condições!

-Há sim… - contrapôs Tónio com um ar misterioso - Querem apostar?

-Tudo o que quiseres…

-Bem, como não sou ganancioso, se perder pago-vos um uísque e se eu ganhar passam a tratar-me por” senhor dos três concelhos” e a levantarem-se para me cumprimentarem…

Desataram a rir-se com a sua proposta mas aceitaram-na, saboreando antecipadamente as bebidas, já que conheciam há muito o Tónio.

-Lembram-se da ponte dos três concelhos?

-Sim, claro!

-Pois a terrinha que está na confluência dos três concelhos é minha…

-Isso é uma terra de nada, uns metrinhos que não valem nada… - apressaram-se a concluir.

-Não tenho a menor dúvida de que assim é… mas a aposta foi outra…

Os presentes no café testemunharam a vitória de Tónio.

Ainda hoje são muitos os que se espantam quando o esfarrapado Tónio entra no estabelecimento e os poderosos da terra se levantam e o cumprimentam:

-Como vai o senhor dos três concelhos?

Jorge C. Chora

sexta-feira, 5 de novembro de 2010

O segredo do senhor "von Kartoffel"

As gargalhadas sacudiam-lhe a jucunda barriga, os enormes peitos e a papada volumosa. De riso fácil e disposição alegre, o tintureiro Kartoffel fazia tudo com gosto e com uma arte e delicadeza irrepreensíveis.

A preparação dos químicos era um momento de verdadeiro espectáculo. As doses eram pesadas até ao miligrama, misturadas em frascos, provetas e vidrinhos. As preparações eram elevadas acima da cabeça e observadas à contra luz, olhadas como se quisesse vê-las à transparência. De seguida eram adicionadas nas tinas, em gestos suaves, harmoniosos, musicais. Quem via, julgava assistir a verdadeiros passos de ballet clássico, mesclado de enérgicas interferências de um bailado moderno, prenhe de inovação e colorido.

Aquelas poções, pese embora a roupagem quase mágica de que se revestiam, eram claras, matemáticas, rigorosas e tão simples que qualquer um podia copiá-las, registá-las,repeti-las.

Sempre que o tintureiro executava o seu trabalho, os proprietários da fábrica têxtil bebiam-lhe as porções, anotavam as quantidades, comparavam-nas com as anteriores.

Ágeis no cálculo, e de olho gordo nas poupanças que fariam se não tivessem de pagar o ordenado a “von Kartoffel”, despediram-no sem apelo:

-Von Kartoffel, agradecemos-lhe a sua contribuição na empresa, mas já não precisamos de si. Já sabemos todos os seus segredos e podemos poupar o seu salário.
O tintureiro sorriu e disse:

-Quando me tornarem a chamar, só aceitarei voltar com o dobro do ordenado…

Sonoras gargalhadas responderam ao desabafo do tintureiro.

-Que tonto…coitado…não tem onde cair morto… - comentaram após a saída do técnico.
Na manhã seguinte, reuniram-se os donos da fábrica. Nunca o mundo lhe sorrira como naquele momento.

Reproduzido todo o processo, sem esquecer as medidas, os pesos, as miscelâneas devidas e até os gestos, foram colhidos de surpresa: a tinta não deu os resultados esperados.

Discutindo o que podia ter corrido mal, chegaram à conclusão que não tinham mexido as tintas e os químicos com uma bengala como “von Kartoffel”costumava fazer. Utilizada a bengala de um dos sócios o resultado foi o mesmo.

Estavam as coisas neste pé, quando um dos melhores amigos do tintureiro, operário da fábrica, por ali passou e desatou a rir à gargalhada.

-De que te ris?

-É que o segredo de von Kartoffel residia na sua bengala…que era oca…

-E o que tem a ver isso com… -interrogaram-se dois dos três donos presentes.

Preparava-se para responder, quando o terceiro proprietário, caiu em si e exclamou:

-Ai que nos tramámos…a bengala tinha os químicos necessários para serem adicionados aos outros que nós conhecíamos…

Jorge C. Chora

segunda-feira, 1 de novembro de 2010

O perfume

Colocou uma gota de perfume no seu delgado pescoço. A reacção foi imediata: a sua pituitária ofendeu-se, o nariz quase se enrugou, e os poucos pêlos que existiam no seu corpo eriçaram-se-lhe.

Arrepiada com o que lhe estava a acontecer, ainda nessa tarde se desfez do fedorento líquido, oferecendo-o a uma amiga que por acaso fazia anos nesse dia.

Mil vezes agradecida lhe ficou a amiga, seduzida pela elegante embalagem que era, só por si, uma obra de arte, algo”retro”, definitivamente muito chique.

O pior estava para vir. Ao chegar a casa, inspirou, sôfrega, o “divino” aroma. Só por milagre não morreu ali mesmo, gaseada pelo terrível perfume, servido na bela embalagem que a levara ao engano.

O desagrado foi tamanho, que ainda hoje qualquer situação profundamente desagradável, tem aquele odor.

E então o que aconteceu ao frasco? Foi pela pia abaixo, dirão os mais bem-intencionados. Nada disso… a história ainda não terminou …

Combalida com o ataque nasal a que fora submetida, logo ali decidiu reagir, e fê-lo também no dia de anos da pessoa que lhe oferecera a prenda.

A oferta era acompanhada por um bilhetinho que rezava assim: Gostei tanto do perfume que me deste que acabei por te comprar um igual.
P.S.- Adquiri-o numa promoção e por isso não aceitam devoluções. Achas que há algum problema?

O bilhete, devido à proximidade do Natal, tinha estampado um querubim.

Jorge C. Chora

sábado, 16 de outubro de 2010

Os sócios

A moeda projectada ao ar, rodopiava e cintilava, açoitada pelos raios solares. Mal tocava a palma da mão era de novo reenviada a cerca de trinta, quarenta centímetros.

Este vai e vem contínuo de arremessos e quedas, era seguido pelo olhar do João, à porta da sua loja. Andava furibundo com o facto de há dois meses não ouvir o tilintar de nenhuma moeda na sua caixa registadora. Maldizia a vida, o negócio, os impostos, a fedorenta crise e as medidas que contra, ou a favor dela, sabia lá ele, se tomavam.

Sentia crescer em si uma raiva ao ver aquele” arrumador”, arrumador uma ova, um”carocho”, um saca - moedas, um perna ágil ao aparecer a voar junto das viaturas já estacionadas sem qualquer intervenção da sua parte “ a brincar com a moeda de dois euros. O lugar da moeda era na sua caixa registadora.

Há dois meses que gastava os seus parcos recursos bancários. As idas ao banco destinavam-se a levantar, levantar e tornar a levantar. Jurara a si próprio abolir este verbo do seu vocabulário. O problema era que mesmo que recusasse conjugá-lo, o modo imperativo se lhe impunha de tal modo que o reduzia à ínfima potência: obedecer sem alternativa.

Estava nesta irritação, o seu olhar acompanhando a trajectória da moeda, alternando com o fuzilamento do “carocho” , quando este deixou escapar a moeda e ela se enfiou entre as grades do esgoto da rua. O homem encolheu os ombros e seguiu o seu caminho.
João, abespinhado, de testa franzida, berrou-lhe:

-Brincar com o dinheiro é o que dá!

-O dinheiro é meu… -replicou um tanto surpreso o arrumador.

-O problema é mesmo esse… é ser seu…

-Ó amigo se tem tanta falta dele, podemos ser sócios…

-Sócios? Em quê? – questionou, com os sentidos alerta.

-Estes lugares à frente da sua loja… podemos reservá-los com uns caixotes seus e depois dividirmos os lucros…

João, em milésimos de segundo, visionou o movimento, fez contas, dividiu e, em simultâneo, falou com sabedoria negocial:

-Sócio, para mostrar a sua boa fé, façamos já a divisão dos lucros apurados nesta manhã. Quanto à moeda caída, não se preocupe … é só menos uma.

Jorge C. Chora

segunda-feira, 11 de outubro de 2010

O "Estupor"

Entrou no jardim afivelando um sorriso cândido e carregando a máscara da simplicidade. A cabeça assemelhava-se a um cata-vento, tantos eram os cumprimentos dispensados à direita e à esquerda.

- Que encanto de homem… - comentou uma senhora ainda jovem.

- Falas de quem? - perguntaram-lhe as amigas – será do” Estupor”?

- Estão enganadas! Falo daquele homem que ali vai …

-Pois sim…é mesmo ele – reafirmaram.

Várias senhoras idosas, numa genuína aflição, rebuscavam os jardins, espreitando em todos os seus recantos, afastando as flores dos canteiros e chamando:

-Vivi…Vivi… onde te meteste …anda, vem… tenho aqui a tua capinha… - chamava a dona, em cuidados.

-Vivi…Vivi … - repetiam, como se fossem o eco, as amigas tremendo de emoção com o desaparecimento da pequena cadela.

-Quem viu a Vivizinha? Digam-me, por favor, se a viram… - pedia em pânico a velha senhora, privada da sua companhia de todas as horas.

Nisto surge um enorme cão, que mesmo sem rosnar infundia pavor, que olha sobranceiro para a multidão concentrada no jardim.

-Minhas senhoras, eu estava a evitar dar-lhes a notícia… - diz a medo o “Estupor.”

-Diga, não se acanhe… -incentivaram as senhoras.

-Está-me a custar dizer-lhes…

Depois de muito insistirem, o homem disse:

-Quando vinha a entrar, vi uma cena horrorosa…esse gigante que aqui está, engoliu um cãozinho…neste caso, uma cadelinha, como acabo de saber…

A dona da engolida, avançou de sombrinha em riste, direitinha ao monstro guloso, com uma sanha assassina.

Como um foguetão, saiu do canteiro a Vivi, que se colocou de permeio, defendendo o feríssimo gigante inocente, da fúria da sua dona.

E o grupo da jovem e das suas amigas, empunharam as suas respectivas sombrinhas e gritaram em uníssono:

-Anda cá “Estupor”…

Jorge C. Chora

quarta-feira, 6 de outubro de 2010

O melhor marido do mundo

Sorriso alegre, anafada e de face luzidia, olhos risonhos, de cotovelos em cima do balcão do café, lançou alto e em bom som a seguinte declaração:

-Tenho o melhor marido do mundo!

Entreolharam-se os presentes um tanto ou quanto surpreendidos. Elas mais do que eles.

-Felizarda!- comentaram as mais invejosas, cobiçando-lhe a sorte que lhes fora negada.

-Hum…hum… -pronunciaram-se as mais desconfiadas – ou ela é cega ou o marido está prestes a pregar-lhe alguma…

Outras, as melhor casadas, caíram em si, prontas a efectuarem o “mea culpa”, reconhecendo que nunca tinham tido a coragem de admitirem em público o quanto tinham sido bafejadas pela sorte dos maridos que lhes tinham cabido na rifa.

Eles, deliciados, exclamam:

-A senhora é um exemplo para as nossas mulheres!

Ia a “coisa” neste pé quando a empregada do café, lança uma sonora gargalhada e diz:

- E desde quando é que a D. Manuela é casada?

-Ó minha linda, se o fosse perdia a oportunidade de fazer estas afirmações pomposas! – e sufocava de riso com as reacções que despertara.

Ao lado, com caras de quem comeu e não gostou, vários senhores concluem:

-Azedumes de solteironas …


Jorge C. Chora

terça-feira, 21 de setembro de 2010

O boneco zarolho

Olhavam e tornavam a olhar para o interior do “ stand”. Aproximavam-se e afastavam-se de modo rápido. Tal como abelhas, esvoaçavam em torno da colmeia, hipnotizados, encadeados, incapazes de se libertarem dos objectos do seu desejo.

A cobiça brilhava nos seus olhos miúdos, saltitando dos lápis para os blocos de papel, passando pelos pequenos bonecos e terminando sabe-se lá em quê. Os gaiatos esfregavam as mãos. Se conseguissem deitar a mão a qualquer coisa: era preciso que fosse uma coisa.

D. Manuela já os tinha topado. Topava-os à légua. Sorriu-lhes e perguntou-lhes:

-Querem escolher algum boneco?

Entreolharam-se.

-E podemos?

-Claro… - e a senhora agarrou em dois pirilampos mágicos e ofereceu-lhos.

-Mas este não tem um olho - reclamou furioso o mais velho.

-Se não tem um olho, então é zarolho… - concluiu a senhora.

-Pois é… - concordou torcendo o nariz.

-Pior era ser cego, não ter olhos … - disse o mais novo.

-Claro, por esse caminho devo estar todo contente por não ser perneta…

-Nem maneta… - tornou o mais novo.

-Bom …zarolho, perneta, maneta, cegueta…a conversa já vai longa, quero o livro de reclamações, porque com tanta deficiência, como posso ficar com ele? Quero de volta o dinheiro que dei por ele.

-Quantos olhos tenho? - perguntou cheia de paciência D. Manuela.

-Dois…

-E acham que eu sou cegueta?

-Quem sabe… - responderam com ar de gozo.

-Então se é possível ser cega com dois olhos, tanto faz ter dois olhos como um ou mesmo nenhum…

-Tem razão. Mais vale ser zarolho do que cegueta de todo. Levo o boneco. – faça-me um embrulho, se não se importa.

Jorge C. Chora

domingo, 19 de setembro de 2010

Bonito serviço

Uma travagem brusca e uma pequena derrapagem, seguida de uma grande nuvem de poeira assinalou o fim da viagem de autocarro.

Os passageiros saíram afogueados, bufando de calor, arrependidos do meio de transporte que tinham escolhido. Para cúmulo do azar, o ar condicionado tinha-se avariado, tinham tido um furo e ainda uma pequena avaria.

Os passageiros amontoaram-se em redor da bagageira do autocarro para recolherem as respectivas bagagens. À medida que elas eram retiradas os donos iam-nas identificando e levando.

Carla foi a última a receber a mala. Achou-a suja e envelhecida para uma mala que acabara de comprar na véspera. Acabou por não dar muita atenção ao assunto.

Em casa dos familiares onde se alojou, após os cumprimentos da praxe, juntaram-se todos em redor da mala para assistir à sua abertura, à espera dos presentes do costume.

Aberta a mala, os presentes não se contiveram:

-Louvado seja Deus!

-O que é que te está a acontecer?

-Que vergonha Carla!

Por mais que a visada tentasse explicar que a mala não lhe pertencia, ninguém a ouvia e repetiam:

-Louvado seja Deus!
-Bonito serviço…

Carla desistiu de explicar o que quer que fosse. À noite dirigiu-se ao mosteiro local e perguntou se podia falar ao padre que chegara na camioneta da tarde.
Mal se viram, o padre exclamou:

-Não queira saber o que me disseram, quando viram o hábito de freira da irmã, na mala…

-Posso imaginar, senhor padre …se posso…

E logo ali decidiram, depois de trocarem as malas, rezarem uma oração pelas asneiras que não disseram, mas pensaram, face aos problemas que tiveram de enfrentar.

Jorge C. Chora

domingo, 12 de setembro de 2010

Clara e o deus dos pés feios

Clara era jovem e bela mas detestava os seus pés. Passava horas a observá-los e achava-os feios. O serem pequenos era a único aspecto que lhe agradava.

Olhava para os dedos e considerava-os ossudos, magros, esqueléticos. Apreciava, de modo crítico, o peito do pé: demasiado alto para o seu gosto. Quanto a uma pequeníssima veia azul que se podia ver do lado direito do pé esquerdo, sofria como se de um defeito imenso se tratasse.

-Que horror! – exclamava, olhando de soslaio o pequeno risco azul que se assemelhava, na sua visão, a um rio caudaloso.

Um belo dia, quando ela molhava os pés no regato do bosque, o deus dos pés feios, ao ouvir os lamentos da jovem, parou e decidiu intervir:

-Posso ajudar-te?

A menina estremeceu. Não queria acreditar no que estava a ver. Diante de si estava uma criatura tão feia, mesmo tão feia, que duvidava da sua existência: Tinha uma barbicha pontiaguda, comprida, revirada para cima, no alto da cabeça dois chifres grandes. O tronco era comprido e os pés (louvado seja Deus!) eram de um bode!

-Mas quem és tu? – e esfregava os olhos, com receio de estar a ser vítima de uma brincadeira.

-Sou o deus dos pés feios. Habito os mesmos bosques que Pã, um antepassado meu, que era o deus dos bosques e dos rebanhos.Ele morou aqui há milhares de anos.

E a menina vaidosa, confidenciou – lhe o seu problema.

-Não acredito! Os teus pés são lindos! Os mais bonitos que alguma vez vi. Quem me dera que a minha mulher tivesse uns assim! - disse-lhe o descendente de Pã .

-Pois se queres, podes trocá-los com os da tua mulher.

Ainda mal acabara a frase e a troca dos pés tinha sido efectuada. Olhou-os assustada. Eram enormes, com joanetes, com os dedos retorcidos devido às artroses, com umas unhas grossas e escuras como garras. Arrepiou-se. Se o arrependimento matasse…

-Senhor, senhor…eu estava a brincar…

-Com isso não se brinca…quem dá e tira vai para o inferno…recuso-me a trocar a única coisa que a minha mulher tem agora de belo…

-Mas eu… - tentou defender-se, sem sucesso, a jovem.

-Não posso aceitar a única coisa que a menina tem agora de feio … - replicou o deus dos pés feios.

A menina agitou-se. Uma revolta enorme começou a apoderar-se de si. Deu uma volta sobre si própria, furiosa, com uma rapidez estonteante e, quando se preparava para falar, acordou ao bater com a cabeça na cama.

Olhou receosa para os seus pés. Continuavam a ser pequenos e lindos. Sentiu um grande alívio. Fora só um sonho. Jurou a si própria deixar-se de excessos de vaidade. Nesse preciso momento, o enorme cajado que o deus dos pés feios usava, caiu com estrondo ao chão.

Olhou em seu redor mas não viu vivalma. Só o cajado lá permanecia.
Terá sido um sonho?

Certo, certo, é que ninguém mais ouviu Clara queixar-se dos seus lindos pés.

Jorge C. Chora

segunda-feira, 23 de agosto de 2010

A manha da velha senhora

Uma velha e muito bem-posta senhora, consumiu um lauto pequeno-almoço: croissants com doce de amoras silvestres, sumo de laranja natural, iogurte de frutas e um café. Ao seu lado estava sentada uma jovem que acabara de tomar uma bica e abrira uma revista.

A idosa olhou languidamente em seu redor e, como quem não quer a coisa, trocou o seu cartão de despesa pelo cartão da parceira ao lado.

Levantou-se, tão veloz quanto um relâmpago, dirigiu-se ao caixa a quem apresentou, com o melhor sorriso, o cartão:

-Por favor, quero pagar a minha conta…

-Com certeza “Madame” – atendeu-a o sempre prestável octogenário, sócio da pastelaria e mestre em salamaleques.

Quando ia passar a banda magnética do cartão pela máquina, reparou nos acenos da jovem da mesa. Ela mostrava-lhe o cartão de despesa, apontava para a cliente e, em seguida, fazia um gesto de troca.

Tendo percebido a situação o cavalheiro remediou a situação:

-Peço desculpa… a jovem da mesa 9 agradece-lhe a oferta do café, mas alerta-a para o facto de se ter esquecido do cartão da sua despesa na mesa.

A senhora armou o melhor sorriso e respondeu-lhe:

-Veja lá a minha cabeça! Faça o favor de me fazer as contas correctas e de acrescentar o café da jovem… - e saiu a murmurar, de modo a não ser ouvida, contra” o estafermo da miúda”.

Jorge C. Chora

quarta-feira, 18 de agosto de 2010

Maria Florentina de cara à banda

Maria Florentina era uma excelente pessoa mas fazia tudo para dar nas vistas. Não precisava, porque se por outra coisa não fosse, a bondade e a ternura que irradiava torná-la-iam notada.

Chegava a sair de sapatos trocados, um de cada cor, tal a ânsia de ser falada. Sentia uma necessidade enorme de ser o centro das atenções: a figura que fazia, boa ou má pouco importava. Imitava os tiques das famosas, quer fossem nacionais ou estrangeiras.

Perante uma assistência boquiaberta, Florentina surgiu à pendura numa mota, com todas as luzes a piscar e uma buzina estridente, a alta velocidade. Florentina levava a boca aberta, escancarada, os olhos esgazeados como se quisesse desafiar o mundo.

-Quem é que ela quer imitar? – interrogaram-se os conterrâneos, sentados na primeira mesa da esplanada.

-Apostamos que é a Lady Gaga… - comentaram os da segunda fila.

-Qual quê… é uma alemã que canta aquela …. – interromperam os da terceira mesa.
No meio da discussão, chega espavorido o António anunciando:

-Sabem lá o que aconteceu… a Florentina teve uma paralisia facial e ficou de boca à banda. Foi de mota para o hospital…

-Coitada da Maria Florentina… - condoeram-se os presentes.

Diz quem a acompanhou e a ouviu que logo que se pôs boa, perguntou:

-Toda a gente me viu? Têm a certeza? Caso não tenham, eu repito a passagem pela esplanada.

Jorge C. Chora

segunda-feira, 9 de agosto de 2010

O Pavão que salvou um galo sem querer

Nas festas dedicadas à Santa era costume leiloarem os mais diversos produtos, entre os quais aves de capoeira. Chegada a vez do galo, este arrancou um poderosíssimo córócócó que despertou a feira e os licitadores. Foi disputado por inúmeros interessados e acabou por vir parar às mãos de um casal que o trouxe para a capital.

O destino final do pomposo galo era retornar à província, à aldeia a que pertenciam os novos proprietários para, quiçá, ser assado pelo Natal.

Quando passavam em frente à loja do bairro, resolveu a jovem ave enclausurada começar a cacarejar a plenos pulmões:

-Cócórócó…cócórócó…

O proprietário da loja, conhecido pala alcunha de “Pavão”, tal o calibre de vaidade que apresentava, assomou à porta e disse:

-Se querem gozar ao menos tragam um pavão…agora o tretas de um galo, por favor…

O galo ouviu e não gostou. O” tretas de um galo?”. Toda a noite cacarejou, ofendido com o que ouvira.

Logo pela manhã, um fiscal bateu-lhes à porta:

-É aqui que mora um galo que cacareja noite e dia? Tivemos uma denúncia…

De nada valeu dizerem-lhe que daí a uns dias iriam à terra e levariam o galo.

-À hora do almoço passarei por aqui para me assegurar de que ele teve o fim merecido. -sentenciou num tom que não admitia réplica.

Às 13h em ponto o fiscal bateu à porta. Foi convidado a entrar e a provar o pitéu.
À primeira garfada, tão duro era o galo que partiu um dente.

-Ai…ai…meus ricos dentes – exclamou dorido.

No seu esconderijo, o jovem galo só não desatou a cacarejar, porque os donos lhe tinham amarrado o bico.

Ainda hoje o estupor do galo está vivo. Cacareja de tal modo, que rivaliza com a sirene dos bombeiros.

Jorge C. Chora

terça-feira, 3 de agosto de 2010

Quem sai aos seus...

Eduardo e Fábio estavam irritados com o avô. Recusavam ser designados como conservadores. Embora fossem muito jovens, sabiam ou pelo menos pressentiam que aquela designação não pretendia acrescentar-lhes nada de bom.

-Ó avó, conservadores porquê? Não são só os velhos, perdão, os idosos… – emendaram - que são conservadores?

-Nada disso meninos! Vocês com essa tenra idade, ainda nem à adolescência chegaram, e já o são profundamente – respondeu-lhes o avô.

-Mas ó avô, o que queres dizer com isso…diz-nos porque somos conservadores…

-Só com uma condição…

Entreolharam-se, torceram o nariz e comentaram, receosos:

-Mau, as tuas condições trazem água no bico…quase sempre….

-É pegarem ou largarem… - pressionou o avô.

-Aceitamos.

Um aperto de mão para selar o acordo. – propôs o avô.

No canto da sala, a avó apreciava a cena e esboçou um leve sorriso.

-Então é possível saber por que motivo somos conservadores?

-Claro…claro – assentiu - e foi andando para o quarto dos netos.

Quando chegou ao destino, apontou para as camisas que estavam no chão e perguntou-lhes:

-Quem é que as conserva ali no chão? E as meias? E as cuecas? A partir deste momento, já sabem, toca a arrumar tudo…

A avó, de olhos esbugalhados, olhava para o marido e para os netos e, mal fez menção de falar, o avô colocou o dedo indicador colado aos seus próprios lábios e sussurrou-lhe ao ouvido:

-Eu não me ofendo se me chamares conservador!

-Pois é, quem sai aos seus…- e na mão, abanou a camisa do marido que acabara de apanhar do chão.

Jorge C. Chora

quinta-feira, 29 de julho de 2010

Francisco e o Dragão Anão

O pequeno Francisco olhou e não acreditou. Olhou de novo e ali estava, em cima de uma pedra o estranho bicho. Media um palmo e meio se tanto. Um palmo dos do Francisco.

-O que é isto?- exclamou sem se conter.

Por alguma razão não teve medo. Observou-o com muita atenção. Tinha na cabeça uns corninhos pequenos e uns olhos vermelhos, muito vivos. Tirava constantemente a língua comprida, que enrolava na ponta. Do nariz, dois pequenos orifícios, saíam pequenas faíscas cuja direcção mudava de acordo com o movimento da cabeça. As costas tinham uma espécie de pequenas pedrinhas até à cauda, que terminavam numa seta carnuda e verde. De lado viam-se duas asas, cobertas com uma espécie de escamas multicolores.

-Quem és afinal? Consegues falar? Tens nome…? - perguntou o Francisco.

-Calma, tem calma…uma pergunta de cada vez… - respondeu-lhe com uma voz pausada, forte e segura.

-Começa por dizer-me quem és…

-Esqueceste-te de pedir-me por favor…

-Desculpa-me, esqueci-me…por favor – emendou de imediato o Francisco.

-Sou o Hip… foram os meus pais que assim me chamaram porque, quando era pequeno estava sempre com soluços…

-Com soluços?

-Sim… - e pôs-se a imitar - hip…hip….hip…

-Então és pequenino…

-Sim e não… – disse-lhe o Hip.

-Não entendo…

-Eu explico. Sou pequeno de tamanho mas grande de idade.

-Agora é que não entendo mesmo nada…

-Tens de ter calma. Dá-me tempo para te contar e vais ver que me entendes. Tudo tem o seu tempo.

-Bem…estou curioso… conta-me.

- Vi pela primeira vez a luz do dia há muito, mas mesmo muito tempo, ainda os avós dos teus avós não tinham nascido, nem sonhavam nascer.

-Mas então, se tens tanta idade, como é que ainda tens esse tamanho?

-Antes de mais preciso de saber o teu nome…

-Sou o Francisco…

-Tenho muito gosto em conhecer-te. Olha, voltando à nossa conversa… tenho este tamanho porque sou anão…

-Anão? Mas és assim de nascença?

-Sim, tal como os meus antepassados, desde que eu me conheço… e conseguimos sobreviver até aos dias de hoje porque fomos diminuindo de tamanho…

-E há outros como tu?

-Que eu saiba não….Minto, tenho uma prima…mas não vive por estas bandas…

-E as pessoas deixam-te em paz? O que é que elas dizem quando te vêem? Nunca te quiseram fazer mal? E…

-Lá estás tu a querer fazer-me mil perguntas ao mesmo tempo. Assim deixas-me nervoso e começo a deitar mais chamas…posso queimar-te sem querer! – e, logo de seguida, lançou uma labareda em direcção ao céu que chamuscou o rabo da velha gaivota que por ali passava e assim reagiu:

-Quem ousa chegar-me fogo ao rabo? Onde estão os malvados que me querem mal?

-Perdão D.ª Gaivota, foi sem intenção. A culpa é minha… irritei o Hip sem querer…
-desculpou-se Francisco.

-Logo vi que isto era coisa do Hip, esse velho e irritadiço dragão, com idade para ter juízo, mas sem melhoras nenhumas…

-Conhece o Hip?

-Todos o conhecem por estes lados. Tem o hábito de repreender as pessoas que não se portam bem, aquecendo-lhes as faces com algum calor. Castiga os que fazem alguma coisa que não devem: ficam com a cara encarnada. É por acção do Hip.

-E as pessoas aceitam? Não o perseguem? – espantou-se Francisco.

-Como, se não o vêem?

-Diga? O Hip é invisível?

-Claro !- exclamou a velha gaivota – se o vissem já tinham acabado com ele.

-Então como é que eu o vejo?- surpreendeu-se Francisco.

-Porque ele está bem disposto e simpatizou contigo!- disse-lhe a gaivota- além de que deve querer dizer-te alguma coisa importante.

-É verdade Hip?- perguntou Francisco.

-Se a minha amiga gaivota te disse é porque sabe! – respondeu-lhe mal humorado Hip.

-Todas as crianças contam com a protecção do Hip. Ele não perdoa é aos meninos ou aos que já deixaram de o ser, maldades, mentiras … acções que prejudicam os outros…

-Quando as pessoas sentem a cara a arder…. É porque … - tentou concluir Francisco.

-É porque o Hip está próximo e a asneira aconteceu ou estava para acontecer! – interrompeu a gaivota.

-Então o Hip…

Mais uma vez a gaivota lhe cortou a palavra e o raciocínio:

-Está cansado de trabalhar, descansa pouco ou nada, e ninguém ou quase ninguém sabe que ele existe.

Se alguém ainda não sabe porque razão às vezes fica roborizado, sabe agora qual o motivo. Também nunca viu o Hip ou estou enganado?

Jorge.C.Chora

terça-feira, 13 de julho de 2010

O Sargento Sábio

No tempo da guerra colonial, um jovem estudante de medicina, com a cabeça repleta de heroicidades, comunica à mãe que vai oferecer-se como voluntário para o exército.

A mãe deita as mãos à cabeça, não sabendo bem o que dera ao seu rebento, e o que fazer ao seu súbito apetite: se resolvia o caso com uma chapada, à antiga portuguesa, ou com uma descompostura quilométrica. Optou pela segunda hipótese, mas sem qualquer sucesso. O moço fez-se de surdo.

Logo que pôde dirigiu-se ao centro de recrutamento. Questionado pelo sargento de serviço sobre o que desejava, todo afoito disse ao que vinha:

-Quero oferecer-me como voluntário.

-Muito bem… - e o sargento encaminhou-se para a máquina de escrever, senta-se e dispara – nome e idade…

Em voz grossa, de peito inchado, despejou o nome, como se fosse um escultor a trabalhar a pedra.

O sargento martelou o nome e a máquina resistiu à investida de forma heróica.

Grafado o nome e a idade, voltou à carga:

-Profissão?

-Estudante do primeiro ano de medicina.

O sargento suspendeu a escrita. Sem sequer voltar a olhar para o mancebo, tirou o papel da máquina e disparou:

-Nós precisamos é de médicos. Vá acabar o curso e depois volte.

Sem esperar a resposta do mancebo, voltou-lhe as costas, não sem que antes lhe tenha desejado um bom-dia.

O país ganhou um bom cirurgião e, pelo que conheço da figura, livrou-se de um militar que vou ali e já venho. Safa!

Jorge C. Chora

terça-feira, 6 de julho de 2010

O cheque dentário

Com uma cara de poucos amigos, entrou no café, sentou-se com as costas da cadeira viradas para a frente e ordenou:

-Uma cerveja, um pastel de nata e um rissol.

Bebeu a cerveja e ia a metade do rissol quando desatou aos ais.

-O que é que o senhor tem?-perguntaram os funcionários.

Agarrado à boca, pediu a chave para ir à casa de banho. Saiu logo depois, com um pequeno guardanapo, com uma pintinha de sangue e pediu, numa aflição, um bagaço para desinfectar a boca, pois tinha espetado um osso!

-Um osso? O mais que pode ser é um bocado de camarão! – exclamaram os empregados.

Após” bochechar“ a bagaceira, dirigiu-se ao balcão e intimou:

-Qual de vós me acompanha ao dentista?

-Acompanhar ao dentista?

-Sim…não vêem a minha dor? Chamem uma ambulância…

Os funcionários arregalaram os olhos. Eles que nunca tinham ido ao dentista, estavam a ser solicitados para acompanhar um marmanjão com um dói dói…

-Mas que idade tem o senhor!

Nisto, saí da cozinha o ajudante, homem enorme que trabalhara numa clínica veterinária, cuja secreta ambição era ser dentista, com um facalhão impressionante, todo sorridente, a oferecer-se:

-Quem precisa de um dentista?

O homem, que já desandara sem pagar a conta, criou asas e ainda houve quem ouvisse pela rua fora a sua aflição:

-Olha que o cheque dentário me ia saindo caro!

Jorge C. Chora

segunda-feira, 5 de julho de 2010

Almoço para dois

Surgiu na curva aos ziguezagues. Os pneus da viatura chiaram e o condutor, num frenesim, sacudia-se e agitava o pano de pó. Conseguira escapar, até ao momento, de uma ferroada do besouro. Pelo zumbido, era dos grandes. Pior do que isso, mostrava uma tenacidade sarnenta e feroz nos ataques que proferia.

Mal acabara de descrever a curva é mandado parar. Era uma operação stop. O agente aproxima-se. Faz uma continência a preceito, batendo em simultâneo os calcanhares:

-Sr. Condutor, identifique-se e mostre-me os documentos da viatura, por favor….
Enquanto o automobilista cumpria a ordem o agente não se conteve:

-Aos ziguezagues depois do almoço…

-Sabe Sr. Agente… o besouro…

-O besouro? Vamos ver que história vai contar quando soprar o balão… -disse o polícia olhando-o de soslaio.

As palavras ainda não tinham sido ditas quando o polícia lança aos quatro ventos um grito de dor: levara uma valente ferroada no pescoço.

-Pelo visto almoçou o mesmo do que eu… - comentou o motorista.

-O mesmo não digo eu… o Sr. ficou-se pelo aperitivo e eu pelo prato principal…. – concluiu.

JorgeC.Chora

sábado, 26 de junho de 2010

A metamorfose

Compareceu à entrevista um tanto ou quanto contrafeito. Tinha de satisfazer um pedido irrecusável de um familiar. Tinha um amigo, a quem muito estimava, que necessitava de um gestor. Uma questão de negócios mal orientados, associada a gastos excessivos, por parte de um proprietário que se limitara a herdar e a delapidar…

Às nove em ponto, foi-lhe pedido que entrasse. Foi apresentado ao proprietário. Irrepreensível no seu fato Armani, sorriu-lhe, estendeu-lhe a mão e foi directo ao assunto:

-Preciso de alguém que me tire de apuros. O seu primo afiançou-me que era a pessoa indicada.

-Ele costuma ser bom avaliador…mas não há bela sem senão… - respondeu-lhe o gestor com cautela e estudando quem tinha na sua frente.

-Bom não percamos tempo…vamos às soluções que me propõe…

-Para ser mais eficaz, preciso de saber se já tomou algumas medidas, como ter despedido funcionários…

-Mas claro, despedi metade…

-E segundo os seus cálculos foi o suficiente?

-Não sei mas posso despedir mais…

-E os salários dos que ficaram…mantiveram-se? - perguntou o gestor.

-Reduziram-se 10%...

-E a produtividade?

-Exijo a mesma de quando estavam o dobro dos trabalhadores, mas estou a pensar em duplicá-la…

-Mas então o que acha que ainda posso fazer por si? – admirou-se o gestor.

-Que convença os que ficaram que ainda devem agradecer a consideração de que estão a ser alvo…

O gestor olhou atentamente o interlocutor. Quis assegurar-se de que ele não estava a brincar e disparou:

-Quer que eu convença os que ficaram…que ainda lhe devem estar gratos…

-Perfeitamente!

O gestor demorou alguns segundos a responder mas acabou por dizer:

-Bom, safadices sei fazê-las tão bem como o amigo, mas metamorfoseá-las em actos santos, confesso que ainda está fora do meu poder e alcance…

Jorge C. Chora

segunda-feira, 21 de junho de 2010

O encapotado que lia a necrologia

Quer chovesse quer fizesse sol, o velho funcionário afixava, sempre à mesma hora, a lista dos falecidos no quadro pendurado ao lado da taberna. Constavam da lista os naturais do concelho e também os que aí tinham entregado a alma ao Criador.

Poucos minutos após a afixação da necrologia, um corrupio de curiosos aproximava-se e ia comentando os falecimentos:

- Ai já não era sem tempo…ruim qu`ele era… já lá está…

- A vez chega a todos…

- Paz à sua alma…

-Pois é… ninguém escapa…

- Querias ficar para semente… e logo tu…

Teciam-se comentários de toda a índole, mas a má-língua era a que predominava. Quanto mais mal diziam, mais querido era o morto: pertencia ou tinha pertencido à pandilha da tasca, conheciam-lhe os podres e também as virtudes embora naquela hora, evitassem os elogios e salientassem as velhacarias, porque assim todos participavam. Era um código.

Todos os dias, quando a luz escasseava, aproximava-se, sabe-se lá vindo de onde, envolto num capote, cambaleando, um homem apoiado num cajado que ficava especado, a ler a necrologia.

Cerca de dez minutos depois, lançava um grito de alegria: Aleluia…aleluia…

Ninguém presenciava a cena, devido à hora a que acontecia. Um dia alguém viu e divulgou o que se passava.

A curiosidade levou-os a fazer-lhe uma espera e a inquirir o homem após o estranho ritual:

-Afinal o que se passa consigo? Qual a razão das aleluias?

- É que até ao momento nunca consegui ler o meu nome na lista!

-Pois se está vivo como quer aparecer nela! - espantaram-se os amigos.

-Aí é que não sei…talvez se enganem… - respondeu com uma voz cavernosa - virando-se para os presentes.

Foi quando os amigos se deram conta que dentro do capote não havia ninguém.

Tem a certeza de que não é o caro leitor(a) que está metido neste capote?

Jorge C. Chora

quarta-feira, 16 de junho de 2010

O Provador

Na aldeia todos tinham a sua função. A do Tomé era cobiçada: provar a carne da taberna que era servida aos visitantes e turistas estrangeiros.

Tomé era desdentado. Um desdentado como provador de carne? Onde é que isso alguma vez se tinha visto?

Visto ou não visto, o facto certo e indelével era a qualidade do serviço prestado: o que Tomé comia sem nenhum dente, podia ser comido e degustado por todos os clientes independentemente da idade, saúde física ou dentária.

Quem não gostou do sucesso do Tomé foi o jovem dentista, recentemente instalado.
A sua propaganda consistia precisamente em propalar aos sete ventos a dificuldade que os desdentados tinham em comer. Era necessário ter o maior cuidado com a dentição.

Os aldeões replicavam:

-Isso era dantes. Agora temos o Tomé e não precisamos de dentes.

O jovem viu-se em dificuldades. A clientela era tão escassa que se tornou no único habitante da aldeia que não tinha dinheiro para comer os bifes seleccionados pelo Tomé.

Conversa puxa conversa conseguiu chegar às falas com o provador. Ofereceu-lhe uma prótese de uma qualidade tal que Tomé se deixou render: Era mais fácil comer, digeria melhor os alimentos, podia comer torresmos crocantes, roer até ao osso o entrecosto e deleitar-se com os alimentos estaladiços.

Assustado, o taberneiro viu a vida a andar para trás. O que seria de si e do seu negócio? Quem lhe escolheria a carne?

Lamentou-se ao dentista e este condoeu-se da sua situação, embora não se tivesse esquecido do mau bocado que também estava a passar. Propôs ao taberneiro que falassem ao Tomé.

-Ao Tomé? Agora que ele tem dentes quer lá saber de alguma coisa! - queixou-se.
-Não será bem assim…não custa tentar… - replicou o médico.

Juntaram-se os três e dentista propôs:

-Gostaria de comer um bife com a qualidade que a carne sempre aqui teve.

-Mas esse é que é o problema…. - manifestou-se o taberneiro.

-Não. Se o amigo Tomé tirar os dentes para seleccionar a carne…

-Mau… - hesitou o Tomé, já a ver-se privado dos novos dentes….

-Quando for comer coloca-os de novo …- sugeriu o esfomeado médico.

Um sorriso radiante surgiu na face de ambos.

-Agora só falta resolver o meu problema - alertou o esfomeado - eu peço ao amigo Tomé que fale a todos os habitantes da aldeia e aos clientes da casa, da maravilha que é cuidar dos dentes e a vantagem que é tê-los … e o preço acessível que vou levar…

-Por quem é…conte comigo…

-Connosco…- rematou o taberneiro.

-Se agora pudesse ser um bifezinho … - murmurou o desfalecido arquitecto do entendimento.

-É para já.

Jorge C. Chora

domingo, 13 de junho de 2010

Apanhado

Só por acaso é que não expelia fumo pelas ventas. Estava furioso. Fora apanhado no momento exacto em que enfiava os dedos na gaveta dos chocolates. Em vez de os agarrar, fez barulho ao amarfanhar o papel vegetal no processo de busca.

-O que estás para aí a fazer? Estás à procura dos chocolates! - gritaram os familiares, em tom de repreensão - Não sabes que …

Pura e simplesmente saiu porta fora para não ouvir o que se ia seguir. Vagueou pela cidade e deu consigo na Gulbenkian. Havia uma exposição sobre a natureza morta.

Entrou e foi atraído para as pinturas sobre doçaria. Parou em frente aos quadros de Josefa d`Obidos. Deliciou-se com as queijadas, imaginou-se a comer o pão-de-ló,
as hóstias de ovos, o bolo de chocolate, o folar… Desviou o olhar e deu de caras com as compotas de cereja e figos cristalizados num quadro de Juan van der Hamen.

Começou a babar-se …olhou para um quadro de Flegel e viu uns insectos que se deliciavam com o doce…Levantou a mão, como que para os afugentar, invejoso da sorte dos malditos insectos…

-Peço desculpa mas é proibido comer neste espaço e também tocar nos quadros - disse-lhe um jovem guarda.

Não era um dia sim. Resolveu sair e voltar para casa. Ao chegar, tinha a mulher à sua espera.

-Aposto que foste comer doces e fazer disparates. Importas-te de medir a tua glicemia?

Embora de má vontade mediu-a, até porque era uma oportunidade de demonstrar a sua força de vontade e inocência.

-Parece impossível, olha para isto, olha-me para este valor altíssimo… - disse desgostosa a sua mulher.

Ainda pensou em dizer algo em sua defesa mas desistiu ao imaginar a resposta da sua mulher:

-Pois, diz-lhe que sim, agora basta-te olhar para eles…fazem-te tão mal como se os tivesses comido… Julgas que sou totó…

Jorge C. Chora

domingo, 6 de junho de 2010

O homem que não queria dar os bons dias a ninguém

Três homens, em amena cavaqueira, trocavam impressões sobre o que fariam caso lhes saísse o euromilhões. O mais pequeno investia no seu negócio, o magrinho comprava um casarão e o maior nada disse.

-Então e tu?

-Desembucha homem. Vá lá, confessa-te…

Após muita insistência, com um ar um tanto ou quanto envergonhado, dispôs-se a levantar o véu:

-Olhem… - e parou, indeciso, provocando novos rogos aos companheiros – Bom, foram vocês que quiseram saber…

-Mau… fala de uma vez por todas…

-Bem, pura e simplesmente deixava de dar os bons dias a quem quer que fosse!
-Pode lá ser! - reclamou o pequenino.

-A nós também?

-Sim – confirmou secamente.

Um dos amigos abriu a boca mas foi incapaz de proferir uma só palavra. O outro, passado um bom bocado, franziu a testa, inchou o peito e desabafou:

-Ainda bem que avisaste. Afinal, ao fim destes anos todos, pura e simplesmente não sabíamos quem tu eras. Mas já agora, se não é pedir muito, explica as tuas razões, se é que as tens…

-São simples. Se fosse rico nunca me levantava de manhã, da cama…

-Logo, não davas os bons dias a ninguém - concluíram em uníssono os amigos, enquanto encomendavam mais três cervejas.

Jorge C. Chora

terça-feira, 25 de maio de 2010

Os Indomáveis

A cabra escoiceia, furiosa, entrincheirada no seu reduto pedregoso, a intrusa que lhe quer ocupar o espaço. Um assobio estridente, agressivo, cortante, põe termo à refrega.

Pararam as cabras, com os pêlos eriçados, ao som do assobio do pastor Aníbal. O sardão que há horas se aquecia ao sol, sente que o sangue se lhe esfria num ápice. Terá de voltar a expor-se, de novo, ao calor solar para readquirir a temperatura perdida.

Aníbal tem o condão de ser obedecido. Obedecem-lhe os cães, os lobos, as cabras, mesmo as mais renitentes e ainda não nasceu quem lhe possa desobedecer.

Como não há regra sem excepção, só um animal nunca lhe mostrou medo, muito menos lhe obedeceu e, até obrigou Aníbal a estar de atalaia: um lobo acinzentado, sempre pronto a arreganhar os dentes e a mostrar o seu mau humor.

O único prazer de Aníbal era tocar flauta. Ninguém lhe ensinou. Começou por imitar o vento, o trovão, o farfalhar das folhas acariciadas pela brisa, a sua agitação em dias de tormenta, o bater das asas dos descarados pardais, os ataques das águias e milhafres…

Da sua flauta saíam sons que abraçavam a Primavera, repudiavam o Inverno, acompanhavam o baloiçar das folhas que caiam e chapinhavam nas águas frescas, frequentadas pelas deusas encaloradas das fontes.

Nestas ocasiões, o lobo aproximava-se. Sentava-se sempre do lado direito de Aníbal, sem qualquer receio. Por sua vez, o pastor sentia-se em paz, ladeado por aquele espectador tão especial, seu irmão indomável.

Mal estes momentos acabavam, arreganhavam os dentes um ao outro e partiam para as suas vidas.

Passaram-se os anos e o lobo, trôpego, escanzelado dirige-se para o lado direito de Aníbal. Este estranha. Não está a tocar. Percebe ou julga perceber o que está a acontecer.

Tocou como nunca. A seu lado o lobo sonhou que voltara a ser jovem, a perseguir as suas presas, a correr pelos montes…

Aníbal acabou de tocar. Olhou para o lobo. O seu amigo estava deitado e não mais arreganharia o dente a ninguém.

Jorge C. Chora

sexta-feira, 21 de maio de 2010

O Manitas d`Oiro

O seu pai era pianista e a mãe guitarrista. Bom, nem sempre foi assim: umas vezes trocavam e a mãe ficava ao piano e o pai à guitarra.

Filho de quem era, alcunharam-no, logo à nascença, de Manitas d`Oiro. Nem outra coisa se admitiu ou se poderia colocar como hipótese, até porque os avós de ambos os lados se dedicavam, como amadores, à música.

Credenciais com este peso poucos as podiam apresentar e vai daí a atribuição deste nome, que à partida coroaria um artista de eleição, no fim da carreira.

Manitas fez jus ao nome e às esperanças que nele depositaram? Sim e não. Mau. Parece que temos discurso político! Fez ou não fez?

Os anos correram lentos, arrastados, direi mesmo, de modo penoso:

-Manitas vai estudar… - ordenavam os pais.

-Sim …vou já… -e as horas passavam -se sem que ele se mexesse.

Alvo da chacota de colegas da mesma idade, dos mais velhos e, espantem-se, dos mais novos, torturavam -no sempre que podiam:

-Ó Manitas quando nos mostras o oiro?

-Ó Manitas dá-me o oiro…

-Ó Manitas já roubaste o oiro?

-Ó Manitas…. - e diziam-lhe o que lhes vinha à cabeça.

Manitas respondia -lhes à letra ,mas com uma bonomia tal, que quase os incentivava a continuar.

A descrença nas suas capacidades foi-se agudizando à medida que o tempo passava. Ele não tinha sucesso nos estudos ,para a música era uma negação, para o desporto nem se fala.

Passou a Coitado. O Coitado isto, aquilo e aqueloutro…

Um belo dia pediu aos pais dinheiro para se inscrever num curso. Deram-lho sem sequer perguntarem qual era.

Ia às aulas, trancava-se no quarto e estudava .Só aos pais disse que pretendia ser massagista e estes apoiaram-no.

Estabeleceu-se e a sua “arte” foi sendo elogiada e reconhecida. Hoje, os que o conhecem, recomendam-no a quem tem dores:

-Só O Manitas d`Oiro te pode livrar disso!

Caso o caro leitor estivesse à espera de um desfecho miserabilista, de acordo com os tempos que correm, desengane-se: ainda pode haver histórias de sucesso. Não acredita? Vá buscar uma lupa, muna-se de um potente foco e procure. Caso não encontre, é porque não o fez de acordo com as regras. Quais regras? Bom, aí é que a porca torce o rabo…mas que as há …

Jorge C. Chora

quinta-feira, 13 de maio de 2010

Que azar!

A festa foi pantagruélica. Os convites foram entregues, com a devida antecedência, às figuras gradas do povoado.

A vaca era desmesurada, tenra, suculenta. O espeto em que foi assada teve de ser feito.

Prepará-la foi o cabo dos trabalhos, tendo de ser chamados especialistas para o efeito.

Durante dias banquetearam-se, até enjoarem o pitéu, e concluírem que não conseguiam comê-la toda.

Reuniram-se e decidiram que mais valia partilhar o que sobrava ou tinham de deitar fora o que ainda havia.

As portas do recinto da festa foram abertas de par em par. As pessoas acotovelavam-se, desconfiadas de que o pouco que ainda havia não dava para todos.

A desconfiança era justificada. Alguns felizardos conseguiram, com recurso a empurrões, caneladas e sopapos, afastar os famélicos concorrentes.

Uns gramas de carne e fortes dores nas glândulas salivares foram o que conseguiram.

Mal a festa acabou, os vendedores da vaca apresentaram uma conta astronómica, justificada pela qualidade da vaca, pela forma como fora alimentada, pelas mordomias que lhe tinham sido prodigalizadas: passeios, massagens à japonesa para que a carne fosse tenra, cerveja misturada nos alimentos…

Reuniram-se de novo e decidiram, devido ao preço a pagar, que por uma questão de equidade, todos os habitantes do povoado deviam participar no esforço de pagamento.
Os que nem sequer tinham cheirado a vaca rebelaram-se:

-Que história é essa?

- Vivemos em comunidade, logo temos de fazer um esforço colectivo! - gritaram exacerbadas as figuras gradas.

-Vocês comem e nós é que temos a indigestão? – escandalizaram-se os deserdados do pitéu.

O pior é que, anos a fio, a cena se repetiu e as despesas a dividir foram cada vez maiores.

Hoje, o povo apresentou na assembleia municipal uma proposta para a alteração do nome do povoado: Tresanda a vaca!

Jorge C. Chora

sábado, 8 de maio de 2010

O remédio do Mindo

Mindo é homem de muitas viagens. Viajou e trabalhou a bordo dos navios nórdicos. Serviu no bar, aturou este mundo e o outro, viu e calou muita coisa. Entre Cabo Verde, os países do Norte da Europa e o resto do mundo foi ganhando calo e uma filosofia própria e adequada a cada um e às circunstâncias.

Em terra ao fim de uns anos, montou um bar. Sabe com rigor o que os clientes querem.
Atrás do balcão vê um patrício seu .Como é evidente, sabe o que ele deseja, e dá-lhe conversa:

-Está um vento que até nos põe a cabeça zonza …

-É verdade… tem aí o remédio?

-Claro - responde Mindo enquanto agarra no garrafão de grogue, que lhe escorrega da mão, mas logo consegue agarrá-lo com firmeza.

Enquanto isto se passou, a clientela repreendeu-o:

-Bô (você) tem de ter cuidado…

-Dá cá mais um antes que partas…e não fique nenhum…

Mindo volta ao ataque:

-Então e você compadre está melhor dos dentes?

-Nem por isso Mindo. Um grogue daquele para melhorar.

Dá um relance pela pequena sala. Está tudo nos conformes. Zé do gorgomilo alto,bochecha e dirige-se à porta , faz menção de deitar fora o grogue com que diz estar a desinfectar a garganta: o chão está mais seco do que o da ilha do Mindo.

No canto esquerdo da sala, está sentado oTreme-Treme,que está sempre com frio e ordena:

-Mindo, o meu copo está vazio…

-Estou a caminho…

Ao som da “sodade” de Cesária Évora, a clientela vai-se meneando e escorropichando
grogues. Exige que Mindo beba também um.

-Como não estou doente bebo à saúde e às melhoras de todos - e tira de baixo do balcão um copo,supostamente de grogue, previamente cheio de água, que bebe de um gole, e estala a língua com satisfação,enquanto diz - ah! grande remédio!

Jorge C. Chora

quinta-feira, 6 de maio de 2010

O Capeta envergonhado

Ninguém sabe ao certo quem o homem é. O que se sabe, e isso todos o afiançam, é que ele é como o fado: nasceu sabe-se lá onde, se em África ou no Brasil, suspeita-se também de que numa rua de Alfama, de uma mulher vivida e falada. Certeza, certezinha, é que vive cá, que aqui se fez e se faz.

Cresceu sem eira nem beira e especializou-se nas trapalhices de todo o género. Aprendeu o que não devia e irmanou-se ao desenrascanço. Não anda, desliza, ginga como um bailarino, serpenteia como uma surucucu e dá o bote quando menos se espera.
Esperam-no na feira da Ladra. Tem dívidas. Um ror delas, contraídas ao jogo, em farras e actividades pouco recomendáveis.

-As dívidas são sagradas…- ameaça de sobrolho franzido o Capeta- em representação do chefe.

- Verdade mais sólida e incontestável não há… dívidas são dívidas, são sagradas, nunca falaste tão bem… - respondeu-lhe o Maganão maneando as ancas, como um pugilista preste a atacar o adversário.

- Então vens para acertar as contas…não era sem tempo… - fungou, sobranceiro.
- Venho propor-te um jogo. Caso ganhes, fico a dever-te o dobro. Se eu ganhar, fico com a dívida paga…

- O chefe não aceita jogos…

-Mas ó chefe… neste momento o chefe és tu… estás é com medo dele … - arriscou o devedor.

- Medo? – e o Capeta, inchou o peito e concluiu - é coisa que nunca tive…

A mesa de jogo foi improvisada em cima de um caixote. Ainda o discípulo do demo não tivera tempo de piscar um olho e as cartas viciadas do Maganão ditaram-lhe não uma, nem duas, mas precisamente três derrotas.

Pediu a desforra e o Maganão, liberal, destilando mais veneno que a surucucu de quem era irmão, concedeu-lha:

-É um direito de quem perde, ter a possibilidade de desforra.

Seguiram-se mais duas derrotas do Capeta. O Maganão atirou-lhe:

-As dívidas são sagradas… tens uma semana para me pagares. Caso não me pagues, os juros serão diários…

Há quem tenha visto o Capeta a sair da igreja e tenha escutado o seu pedido ao Senhor:

- Peço-te, Senhor, que me reconduzas ao estatuto de anjinho … mais merecedor do que eu não há …

Jorge C. Chora

domingo, 25 de abril de 2010

A Fotografia

O que ela tinha de belo não compensava a prepotência de que era dotada. Pior ainda, era gostar de o ser, fazer gala em sê-lo.

Resolveu tirar uma fotografia e convidou um amigo para lhe fazer esse favor. O amigo não foi escolhido ao acaso. Experiente, era também um profissional de mão cheia e, aceitou fotografá-la, porque tinha um fraquinho por ela, ou melhor, uma enorme paixão e ela sabia -o.

Durante duas horas fez orelhas moucas aos pedidos do fotógrafo:

-Eu acho que fica muito melhor assim….-e colocava-se de modo diverso ao pedido -para logo de seguida assumir outra posição que nada tinha a ver com a solicitada.
O fotógrafo sorria, mas aos poucos a dor que sentia no rosto, pelo esforço dispendido a fingir sorrisos, ameaçava transformar-se num esgar de dor.
O sol escaldava. As tonturas apossavam-se do fotógrafo e o sorriso ia-se evaporando mas ela não se dava por satisfeita:

-E agora uma assim….- e colocava a mão direita em forma de cálice, como se fosse colher néctar do céu.

-Acaba com o meu sofrimento Senhor…-pedia o fotógrafo, com a expressão de dor de quem acaba de ser vítima de alguém que por maldade lhe agrafou a face.

De repente, três gaivotas que esvoaçavam no local, encetaram um voo picado e, sem falharem o alvo encheram-lhe a mão, que imitava um cálice, cheia de cocó.

-Aí que horror…que nojo!

O amigo, olhando para o céu de forma disfarçada, murmurou:

-Obrigado!

Juram todos os que estavam presentes que ribombou um trovão e por cima dele se fez ouvir uma voz inesquecível:

-De nada meu banana…

Jorge C. Chora

segunda-feira, 19 de abril de 2010

A Pega Rabuda

Quando o sol incidia nas suas penas pretas, elas reflectiam uma paleta de azuis, verdes e vermelhos. Os mirones andavam em redor da gaiola, buscando captar-lhe toda a beleza. A pega abria as asas, espreguiçando-se de uma forma dengosa, expondo-se o mais possível, tirando partido do espectáculo dado pelas suas reluzentes penas.

Miúdos e graúdos juntavam-se em redor da gaiola. O dono sorria, olhava para a sua lucrativa pega rabuda e fazia-lhe sinais disfarçados: levantava o polegar direito (muito bem) e pouco depois o polegar esquerdo (continua).
A pega entendia tudo e dava-se ao luxo de lhe responder:

-Tchak tchak (sim) - e deixava que mais pessoas se juntassem para a ver.

Depois lançava outro sinal sonoro:

-Choc…Tchak ( é agora)

O proprietário chegava-se e colocava um cartaz na gaiola: Dá a liberdade à pega só por dez euros.

-O que é que o senhor quer dizer?

-Quero dizer que se fizerem uma recolha entre os que aqui estão, de 10 euros, eu dou a liberdade ao pássaro.

- Dá a liberdade? - surpreenderam-se uns quantos mirones.

-Sim…abro a gaiola e deixo-o fugir.

Logo que o peditório era feito a promessa era cumprida. A gaiola era aberta e o dono despedia-se da pega:

-Adeus minha linda…

E a pega, sem qualquer demora, abria as asas e voava para longe dali. Ia direitinha para casa, ou melhor, para a gaiola onde se encontravam outras pegas, na casa do seu dono.

O negócio ia de vento em popa. A pega era bem recompensada com insectos seleccionados e o dono tinha sempre aqueles dez euros garantidos com a artimanha.

A pega tornou-se, à medida que o tempo passava, cada vez mais conversadora e vaidosa.

Um belo dia, um jovem esperou pelo abrir da gaiola e quando a pega saiu, foi atraída por uma outra pega tão bela como ela, dentro de uma gaiola com a porta aberta.
Mal entrou ,deu pelo logro: não havia nenhum pássaro, mas somente um espelho.

-Tchak…rroach…choc (estou tramada) - lamentou -se.

-E eu também! - desabafou o ex-dono.


Jorge C. Chora

segunda-feira, 12 de abril de 2010

O Baile da debutante

A rapariga via as horas a passarem e mostrava-se nervosa. Olhava para o relógio, de início espaçadamente, mas agora de minuto a minuto consultava-o, embora nem visse de facto as horas. De modo inconsciente, quanto mais olhava, sabia que menos tempo faltava para a hora de saída e esta ,de certo modo, chegaria mais cedo.

Os colegas observavam-na, mas evitavam perguntar-lhe a razão do nervosismo. Sabiam por experiência própria as respostas tortas que ela dava quando se enervava, ou estava com os” azeites”, como ela dizia.

Os colegas, mesmo sem quererem, tinham os olhos presos no vai e vem rápido que ela executava, de uma ponta à outra do balcão. Por fim até dava pulinhos.

Semelhante agitação não passou despercebida ao seu chefe que parou ostensivamente de trabalhar para a fitar.

Sentindo-se observada com aquela intensidade, ficou a roer-se por dentro, contendo uma resposta menos própria.

Faltavam ainda 5 minutos para a saída. Tinha de fazer das tripas coração para não pedir para sair. Sabia que se o fizesse, perderia o tempo e o feitio, para além de inviabilizarem o pedido ainda receberia um sermão sobre as suas obrigações e, mais grave do que isso, sairia mais tarde. Alturas houve em que chegaram a dar-lhe mais trabalho…
Calada durante os segundos que faltavam, explodiu à hora exacta da saída:

-Quem advinha para onde vou?

Ninguém ousou adivinhar.

-Vá digam… eu ajudo… vou ter aulas… aulas de?

O chefe, com um sorriso velhaco, diz, fingindo muito interesse pelas actividades da gaiata de dezoito anos:

-Talvez para as aulas de catequese…

A funcionária ia morrendo com uma apoplexia. Nunca lhe passou pela cabeça responder-lhe que ia ter a sua primeira aula de condução.

Os colegas ficaram siderados. O silêncio entrecortado da respiração colectiva e ofegante dos colegas, adensou o clima de tempestade preste a explodir.
A jovem vira-se para o chefe e diz-lhe ,com a maior calma:

-Se fosse o senhor a dá-las, não faltaria por nada deste mundo… - e faz uma vénia como se estivesse num baile de debutantes.


Jorge C. Chora

sexta-feira, 9 de abril de 2010

Nem por encomenda!

Olhou para a mulher de modo disfarçado e ela suava. Não estava calor nenhum. Fazia frio e o Inverno ainda ia a meio.

Sabia perfeitamente a causa do nervosismo da esposa. Resolveu ver se a situação melhorava por si própria. Piorou. Os lábios dela tremiam-lhe e suava de modo intenso. Não podia, de modo nenhum, prolongar o sofrimento estampado no seu rosto. Resolveu suavizar o mal-estar:

-Estás mal disposta?

-Não… não…

-Esqueceste-te de alguma coisa em casa? - e abrandou a velocidade ,que já era pouca, e iniciou a manobra para parar a viatura.

-Hum… hum…. Desculpa-me, acho que deixei o ferro de engomar ligado… tenho essa impressão e não consigo lembrar-me de o ter desligado…

-Mas tu não estiveste a passar hoje…

-Olha … estou confusa… estou com um pressentimento de que o deixei ligado…

O marido estacionou o carro. Sorriu e disse-lhe:

-Um momento…. - e inclinou-se um pouco para trás, esticou o braço, remexeu de baixo do banco e puxou um saco, que abriu e mostrou …

-Trouxeste o ferro?

-Acalma-te. Ele está aqui.

-Obrigada - e um sorriso terno começou a despontar-lhe no rosto, mas logo desapareceu.

-Agora lembraste – te do ferro de viagem… e julgas que ele… - e o marido abriu um segundo saco, que se ocultava junto ao primeiro - e mostrou o pequeno ferro de viagem.

-Obrigada…

- Agora vais falar com o teu filho, que está em nossa casa, neste momento, pronto a responder-te às perguntas que lhe queres fazer…

-Ó filho diz-me se…

-O Gás está fechado, as torneiras e o quadro eléctrico também… Boa viagem – interrompeu o filho.

Finalmente, um sorriso rasgado, feliz e despreocupado assenhoreou-se da senhora, que desabafou:

-Ai se eu não tivesse tanta paciência com as tuas manias…

Queria um marido assim? Só nas histórias estimada leitora.

Jorge C. Chora

segunda-feira, 5 de abril de 2010

A Barbuda

Sentadas no banco do jardim, duas senhoras de meia idade, tricotavam. Acompanhadas pelos maridos e por um casal amigo, aproveitavam para se aquecerem ao sol. A conversa versava as frivolidades costumeiras que ajudam a passar o tempo e a matar o silêncio:

- O tempo está mesmo incerto…a humidade é terrível….

-Os meus ossos que o digam…

-Não há meio desta constipação me largar…

Um vozeirão ao lado, oriundo da esquina oculta do prédio, antes de se entrar no jardim, interrompeu-lhes a conversa:

-Minha barbuda…. … essa barba mata-me….tanto pêlo confunde-me…

Entreolharam-se os que apanhavam sol. Inclinaram as cabeças para não perderem pitada da conversa.

-Uma barba tão farta… ó meu amor, pode ser motivo de admiração para quem goste… ainda não decidi se ela te fica mesmo bem… - e o vozeirão desmanchava-se num riso portentoso, daqueles que atroam os ares e rivalizam com o trovão.
E o homem insistia:

-Minha barbuda… é uma barba indecente, de provocar inveja a um marinheiro regressado da campanha do bacalhau…

Colocando-se na pele da senhora que estava a ser alvo de tamanha grosseria, os senhores mexiam-se, incomodados, pedindo um castigo merecido para semelhante energúmeno:

-Não há direito de tratar ninguém deste modo…

-Nunca, mas mesmo nunca, tinha ouvido um tratamento tão repulsivo…

-Nos tempos que correm é possível acontecer tudo, mas mesmo tudo…

-O que uma mulher atura…meu Deus - queixaram-se revoltadas as senhoras que tinham parado de tricotar.

-Parece impossível… - concordaram os senhores.

E do lado oculto da esquina os mimos continuavam:

-Aí barbuda… o que vão dizer quando te virem… escondem-se … é o mais certo - e os ares vibravam com as estrondosas gargalhadas.

A situação tornava-se, a cada minuto que passava, mais penosa e inaceitável.
O vozeirão foi-se tornando cada vez mais audível e surgiu na esquina da casa um homenzarrão, de barba e cabelo hirsutos, com quase dois metros de altura que dizia:

-Anda barbudinha … estamos atrasados… eu não te vou levar ao colo - …- e trazia à trela uma cadelinha com uma barbaça que alto lá com ela.


Jorge C. Chora

quinta-feira, 1 de abril de 2010

O Engravatado

Dois jovens casais, sentados à mesa da esplanada de um café, pediam aos transeuntes que os auxiliassem a pagar o que lhes faltava da despesa que tinham feito:

-Só nos falta um euro para pagar a conta…

Aos que lhes pareciam mais pobres, pediam um euro, a outros dois e, aos que aparentavam maior importância, chegavam a pedir quatro ou cinco.

À passagem de um senhor de meia-idade, de barba grisalha, gravata de seda italiana e com um monograma visível na camisa, o choradinho refinou-se:

-Calculámos mal a despesa e veja Vexa. que, para mal dos nossos pecados…desculpe-nos dizer-lhe …estamos envergonhadíssimos …faltam-nos dez euros para fazer face à despesa…

Penalizado com o sofrimento dos jovens e solidário com a vergonha demonstrada, o cavalheiro apaziguou-os:

-Acontece aos melhores. Não se preocupem. Posso sentar-me um bocado convosco?

-Com certeza, faça o favor… -e piscaram, de modo disfarçado, o olho uns aos outros.

-Muito obrigado. Vou aproveitar para tomar o pequeno-almoço com a juventude…- e olhava para as duas jovens com um sorriso encantado e sedutor.

Quanto mais babado e delicado o senhor se mostrava, menos remorsos tinham os acompanhantes das jovens. “ O gagá quando vir como elas lhe mordem, vai ver quanto lhe custam os sorrisinhos”, pensaram os dois sabidos meliantes.

-Estejam à vontade, peçam alguma coisa mais… - ofereceu o senhor.

Não se fizeram rogados.

O empregado teve de interromper o alegre convívio do grupo:

-Peço-lhe mil perdões senhor doutor, mas o seu sócio está a chamá-lo ao telefone. Ele pediu-me que lhe dissesse que é por breves momentos…

Na sua ausência, os quatro aproveitaram para afinar estratégias.

Segundos depois de falar ao telefone, com um sorriso enorme nos lábios, pediu ao empregado que levasse para a mesa mais cinco sandes de presunto.

Enquanto o funcionário se dirigia ao balcão, o cavalheiro saiu pela porta traseira onde o esperava o autor do telefonema:

-Então…rendeu? Quanto é que os totós tinham?

-Vinte euros…mas foi difícil surripiá-los… dá para o gasto e a lição ficou-lhes barata…não há nada como realmente… Agora vão aprender mesmo a pedir e não a roubar … para isso cá estou eu…

-E eu também …ora os fedelhos - enxofrou-se o segundo engravatado.

Na mesa da esplanada, cada vez que passava um aperaltado, os quatro pediam, pianíssimo, em coro:

-Se nos desse cinco cêntimos…

Quando todos os pedinchões, os que estavam à mesa e o que já tinha saído, se preparavam para abandonar a área do restaurante sem pagar, os engravatados por trás e os jovens pela frente, surgiram-lhes os seguranças, que os conduziram ao patrão, em fila indiana.

À medida que iam entrando no gabinete, recebiam uma vassoura, uma esfregona e o respectivo balde e ainda um pano de louça.

Calculada a dívida e o trabalho necessário para a pagar, foram-lhes distribuídas tarefas:

-Varrer a esplanada, lavar o chão do restaurante e, após os almoços dos clientes, lavar a loiça e limpá-la…

- Mas o engravatado comeu mais do que nós… - refilaram as duas raparigas.

-Então, no final, fica a dar banho ao cão e as meninas a secá-lo…

Jorge C. Chora

quarta-feira, 24 de março de 2010

O "Peçonha"

Baixou ao hospital e foi um corrupio de médicos, enfermeiros e técnicos ao seu redor. Ninguém sabia o que o homem tinha. Convocaram-se especialistas que nem ao diabo lembrava… e nada. Em desespero de causa, e à socapa das múltiplas direcções de serviço, chamaram uma bruxa, amiga da empregada da limpeza.

-Não consigo descobrir nada! Vejo tudo turvo…ele sabe o que tem e cala-se…coisa boa não é… - e convocou uma assembleia de amigas e colegas para a auxiliarem.

Calado que nem um rato, o homem não dizia, não disse nem diria o que se passara: simplesmente mordera a sua própria língua, que era tão peçonhenta ou tão pouco, que o envenenara de modo brutal e incompreensível para a comunidade médica.

Aflitos com a evolução dos sintomas contraditórios que apresentava, que apareciam e desapareciam num abrir e fechar de olhos, acharam por bem chamar algum familiar ou conhecido que pudesse dar pormenores, sintetizar a história clínica, dizer algo que os ajudasse a diagnosticá-lo e consequentemente a tratá-lo.

Já conformados com a impossibilidade de o curarem, levantaram as mãos ao céu, quando o maqueiro entrou e exclamou:

-Olha o Peçonha! O que é que te aconteceu ó má-língua do diabo? Não me digas que mordeste a tua língua venenosa…

O especialista em venenos exclamou:

- Eureka! É mesmo isso, o homem está envenenado! Quase que se ouve o som da cascavel …
O maqueiro, que conhecia o Peçonha de ginjeira, acalmou os presentes e disse:

-É fácil tratá-lo… é só fazerem-lhe umas perguntas…

-Perguntas? Mas que perguntas? - Interrogaram-se os presentes.

-Quaisquer…desde que ele liberte o veneno…

E os presentes cada vez mais desconfiados, cruzaram os braços e esperaram pela intervenção do maqueiro que não se fez rogado:

-O que achas de Beethoven?

-O que se pode esperar de um compositor cujo nome significa “canteiro de rabanetes”?

-Canteiro de rabanetes?

-Sim…em holandês… é mesmo isso o que significa, por isso só pode ser um compositor de 2ª categoria…

-O Ferrari é um dos melhores automóveis da actualidade…

-Um carrito de trazer por casa…

E perante o espanto da assistência, o Peçonha recobrou as cores, levantou-se da cama
e saiu como se nada tivesse acontecido.

O Peçonhas anda por aí…

Jorge C. Chora

sexta-feira, 19 de março de 2010

O Milionário

O “Milionário”cambaleava, de modo perigoso, até conseguir agarrar-se ao balcão da taberna. Ancorado, mantinha-se durante horas no seu posto. Ninguém sabia que idade tinha, ou qualquer outra informação pessoal a seu respeito. O que todos sabiam e podiam afiançar, é que ele sempre ali estivera. Talvez tivesse ali nascido, quiçá!

-O que sai hoje “Milionário? – perguntou-lhe o dono.

-O costume…

Um copo de bagaço e um croquete surgiram, como que por artes mágicas, à sua frente.

-Milionário? – Interrogou-o um recém-chegado que não era cliente da casa. – Já foi rico… empobreceu com a crise…

O visado sorriu, pigarreou, empertigou-se um pouco, endireitou a gola esfarrapada da camisa e disse:

-O que lhe posso dizer, com testemunhas, é que durmo todos os dias rodeado de tanto, mas tanto dinheiro, que acredito que V. Exa. nunca o terá, por muito rico que possa ser…

-Então é rico mas gosta de passar por pobre…com a criminalidade que existe hoje, nem é mal pensado…é uma excelente estratégia…

-Se assim fosse, eu era uma autêntica aberração…uma cavalgadura… passar por pobre, sendo rico…imaginem… - desabafou o vagabundo que dormia rodeado por uma fortuna incalculável, afastando e juntando os cotovelos ao corpo, como se fosse voar.

-Então não percebo nada! – Concluiu espantado o estranho.

-Vou explicar-lhe…não quero que fique com minhocas na cabeça… - e antecipando os segundos de fama, aclarou a voz, afectada pelas noites ao luar e pelos sonhos com as notas de euros.

Ainda não acabara a frase quando o gerente do banco ao lado da taberna, assomou à porta e disse:

-Ó Milionário, vai lá tirar o teu colchão da porta do banco porque está na hora de abrirmos…


Jorge C. Chora

segunda-feira, 15 de março de 2010

Esta malta não toma banho!

A dor de barriga apanhou-o a descer o beco. Parou. Sabia que dificilmente poderia progredir sem haver azar. Cruzou as pernas e apertou-se o mais que pôde. Conseguiu refrear o irrefreável. “Só mais um bocado, vou conseguir chegar a um café”, pensou.

Olhou em redor. Nada de cafés. Lembrou-se de que nem dinheiro trocado tinha para encomendar uma bebida. Só tinha uma maldita nota de cem euros. De relance ainda tentou recordar-se de alguma casa de banho pública no local. Depressa lhe veio à memória a sua oposição à construção desse tipo de edificação, desperdício de dinheiros públicos, segundo a sua opinião. Se o arrependimento matasse!

Que pena não poder recuar, por artes mágicas, uns séculos atrás que era ali mesmo que se aliviaria. Era um” passar vento “! A necessidade tornou-se ainda maior e obrigou-o a desapertar o botão das calças. No princípio das escadas surgiram três transeuntes.

-Maldição! Não posso mais – murmurou, empalidecendo, numa primeira fase, para de seguida ficar esverdeado. Não se aguentou. “E agora?” Questionou-se, para de supetão desandar do local. Logo por azar não trouxera o carro.

Entrou no metro, sentou-se, apertou o nariz e, bem alto sentenciou:

-Esta malta não toma banho!


Jorge C. Chora

sexta-feira, 5 de março de 2010

O dia em que o rei disse não!

Ninguém no reino sabia, ou sequer imaginava, o que se ia passar nesse dia. Os magos da corte, cujo papel era adivinhar o que ia acontecer, falharam redondamente na sua missão e pagariam com língua de palmo o seu fracasso. Já verão como, se tiverem um pouco de paciência.

O rei acordara sem saber se estava ou não bem-disposto. Doía - lhe a cabeça. Um estranho silêncio rodeava-o. O rei pura e simplesmente acordara meio surdo, e não o notara, tal o sossego que habitualmente reinava na câmara.

O camareiro-mor, enrodilhado aos pés da cama do poderoso rei, mal o ouvira mexer-se, levantara-se e iniciara a preparação do vestuário que o seu senhor ia usar. As cortinas da cama foram corridas com suavidade, enquanto o reposteiro-mor ajeitava a almofada real para facilitar o apoio a sua majestade, no sentido de o ajudar a levantar-se e ajeitava o cadeirão para que ele se sentasse.

Vestido e alimentado, seguiu para uma audiência particular que lhe tinha sido pedida e agendada para esse dia.

Fuinha, um homem incrivelmente rico, conseguira o encontro com o rei, assim do pé para a mão, ninguém sabia como. Há três dias que o proprietário Fuinha não dormia, devido ao nervosismo em que se encontrava. Desejava justiça. Tinha um caso urgente a apresentar que lhe estava a causar, ou melhor dizendo, lhe viria a provocar um prejuízo económico, caso não fosse resolvido a seu contento, e isso era coisa a que não estava habituado.

O queixoso era um homem muito magro, quase só ossos, que comia desalmadamente e estava sempre esfomeado. Mexia-se muito, dava estalidos com os dedos, pigarreava enquanto ensaiava o que ia dizer a sua Majestade. Tinha quase a certeza de que conseguiria convencer o rei da justeza da sua causa.

O caso era simples: uma inquilina sua, a Joana doceira, enviuvara há quinze dias e já lhe tinha confessado não ter capacidade para lhe pagar a renda em devido tempo. Pedira-lhe um adiamento pois estava com problemas…

-Problemas… todos têm problemas - resmungou Fuinha – e eu que os resolva. Por este caminho eu é que os vou ter… menos uma renda é sempre menos uma…não me faz falta…mas é uma questão de princípio… a única saída é expulsá-la… e uma palavrinha do rei ao juiz…

A sala de audiências abriu-se e o porteiro fez lhe sinal para entrar. Sentado numa cadeira alta, colocada em cima de um estrado, estava o rei. Num plano inferior dois conselheiros: um novo, que mais parecia ter engolido um pau de vassoura, tão empertigado estava, e o outro, velhote, desgrenhado, muito encolhido, quase com vergonha de estar ali. Era um antigo hortelão que o rei tornara nobre e seu conselheiro, depois dele o ter curado de um mal de estômago.

A audiência começou.
-Sua Majestade, o marido da minha inquilina Joana morreu e eu venho pedir a Vossa Majestade que interceda… pois ele era o ganha-pão da família … e não sendo possível ressuscitá-lo…- e Fuinha, atrapalhado, foi interrompido pelo rei:

-Ó bom homem, os meus poderes não chegam a tanto…

O proprietário arregalou os olhos. Não queria acreditar no que lhe estava a acontecer. O rei não podia interceder!

-Mas… -balbuciou Fuinha.

-Tenho de dizer não ao seu pedido! Não tenho poderes para ressuscitar o marido de Joana.
Fuinha tremia da cabeça aos pés ao ver a renda fugir-lhe. Ressuscitá-lo! Por que tinha falado em… e aqui já duvidara se teria pedido isso mesmo ao rei.

-Mas a Joana…

O hortelão lembrou-se, de repente, de quem era Joana e disse ao rei:

-Sua Majestade, a Joana doceira é a que faz os doces de que tanto gosta!

-Hum...hum…. – e colocava a mão em concha no ouvido esquerdo.

O hortelão, que já percebera que o rei estava com dificuldades em ouvir, comunicou por gestos e palavras:

-A Joana - e acto contínuo, apertou a sua orelha direita com dois dedos…


-Mau … - interrompeu o rei, pensando que o seu conselheiro tivesse perdido o juízo e lhe estivesse a dizer que a Joana era bonita…

-Não…-acalmou-o o hortelão, e logo de seguida imitou o gesto de que estava a comer e a lamber-se…

-Ah! Agora percebi. A Joana faz os doces de que eu gosto!

-Isso…

-Hum… o marido morreu…está com dificuldades - condoeu-se o rei e ordenou - tragam-na para o palácio, a ela e aos seus. Que nada lhe falte. Só coloco uma condição: que me faça um doce todos os dias.

O hortelão mal ouviu a sentença, ganhou asas e desapareceu para dar a boa nova à Joana.

Enquanto o rei abandonava a sala, o jovem conselheiro espumava de raiva, receoso de que o Fuinha lhe exigisse o dinheiro que lhe dera para conseguir a audiência.

Os doces de Joana trouxeram o fim das intrigas e inimizades na corte. Os cortesãos que estivessem zangados, pura e simplesmente não tinham direito ao doce nesse dia.

O único problema que Joana teve daí para a frente era o de que os comilões lhe comessem os doces antes da hora, mas o amigo hortelão resolveu-lhe esse sarilho: arranjou-lhe uma colher de pau de meio metro com que ela defendia os doces até à hora de irem à mesa e serem degustados.

Os magos, que não tinham adivinhado a surdez do rei, que tinham fracassado no que se ia passar nas audiências, nunca tinham sonhado, mas mesmo nunca, falhar de novo redondamente na previsão de que iriam levar com a colher de pau todos os dias, quando tentassem surripiar os doces e prová-los antes de eles chegarem à mesa.

Jorge C. Chora

sábado, 27 de fevereiro de 2010

A Gata Renhau - Nhau

Vou contar-vos a história de uma gata vaidosa. Chamava-se Renhau-Nhau e descendia de uma antiga, ou melhor dizendo, antiquíssima família de felinos.

Uma sua antepassada tinha tido como dona, D. Teresa, e Tareco, o marido da referida gata, por incrível que pareça, pertencia a Egas Moniz. Quando falamos de D. Teresa, é claro que falamos da mãe do nosso primeiro rei, D. Afonso Henriques. Quanto a Egas, é evidente que, embora tenhamos duas figuras muito importantes da nossa história com esse nome, falo da primeira, do aio do nosso rei, daquele que ainda agora falámos.

A gata era muito vaidosa e passava os dias a espreguiçar-se e a ver-se ao espelho. Recusava dar-se, ou mesmo falar, com a maioria das outras gatas pois não tinham a sua dignidade:

-Que horror! Tão rafeiras que elas são… mesmo desinteressantes…

Quando passava por elas até fingia não as ver. Eram gatas rafeiras, como ela dizia, e ela, afinal, uma Renhau – Nhau, com hífen e tudo. O hífen não é só o tracinho que separa o Renhau do Nhau: este tracinho era a coisa mais importante, pois era ele que lhe atribuía raça e a separava dos rafeiros, pensava ela.

A nossa gata, comportou-se de tal modo com as suas amigas, que elas decidiram retribuir-lhe da forma como eram tratadas: deixaram de lhe falar e fingiam não a ver.

Triste e só ficou Renhau-Nhau. A cada dia que passava ela emagrecia, o pêlo caía-lhe e os olhos perdiam o brilho. A princesa tornou-se uma bruxa, daquelas antigas, mesmo muito, mas mesmo muito feia.

Tudo o que era gato ou gata fazia troça da Renhau e cantavam sempre que a viam:

Aí a Renhau que merece tau tau
Tão vaidosa qu`ela era
E feiosa qu`ela está

E a outrora bela Renhau chorava, e chorava ainda mais quando, mesmo as gatas que ela nunca tinha visto cantavam com quanta força tinham os versos que a magoavam:

Aí a Renhau que merece tau tau
Tão vaidosa qu`ela era
E feiosa qu`ela está

Foi por essa altura que ela conheceu o mais rafeiro dos gatos, o Faneca. Alegre, brincalhão e amigo de todos, tratou a Renhau-Nhau com a simplicidade e delicadeza que dispensava a todos os que o rodeavam, como um verdadeiro príncipe que era, pouco se preocupando com o facto dela parecer ou não uma bruxa.

À medida que o tempo foi passando e o contacto com o mais rafeiro dos rafeiros se foi intensificando, o comportamento da nossa gata alterou-se, começou a aprender a respeitar os que a rodeavam, recuperou a sua beleza e, espanto dos espantos, passou a gostar também dos que eram diferentes dela.

Como acabou esta história?

Renhau-Nhau agradeceu ao deus dos gatos a sorte que tinha tido, e sempre que se dirigia ao seu gato rafeiro dizia cheia de nhau…nhaus e admiração:

-Meu príncipe…

E o mais rafeiro entre os rafeiros, sempre que isto ouvia, afagava-lhe as orelhas felpudas e respondia-lhe:

-Diz princesa…

Jorge C. Chora

domingo, 21 de fevereiro de 2010

SÃO BORRAS SENHOR!

Um aldeão das Beiras pediu à mulher que despachasse cinco alqueires de azeite para Lisboa. O assunto seria de somenos importância e de fácil resolução, não fosse dar-se o caso de estarmos na época do racionamento em Portugal, em vigor na 2ª guerra mundial.

A mulher dirigiu-se à Vila para tratar do despacho. Como que por artes mágicas, o fiscal da comissão reguladora, sujeito gordo, bexigoso e enxertado em corno de cabra, do qual até os lobos ao pressentirem a sua presença, perdiam o pio, quer dizer, deixavam de uivar e recolhiam às tocas, veio a saber do trato. O capeta apreendeu de imediato o azeite por falta de guia, remetendo num ápice o processo para o tribunal da comarca, localizado a uns quilómetros da Vila.

Ordenou com toda a pompa, que a prova do delito fosse guardada num armazém local, do qual guardou religiosamente a chave, encafuando-a no bolso direito, maior do que os alforges da mula que o transportava. Guardada a prova a ser apresentada em tribunal, descansou o zeloso funcionário, com a consciência tranquila de ter prevenido tão horrendo crime.

De noite, com a sensação do dever cumprido, roncou tanto ou tão pouco que as mulas no andar de baixo escoicearam o curral de tal modo, que os taipais se tornaram semelhantes a um crivo.
Na presença do juiz, o fiscal parecia inchado, e os acusados, mais pequenos que um borreguito nascido na véspera do seu infortúnio.

Julgado o caso, alegaram os réus que se tratava unicamente de enviar para uma fábrica de sabão, as borras de azeite e que a prová-lo (e isto dito entre muitos ais…) podia ser verificado o que estava nas bilhas:

-São borras senhor!

O desalmado fiscal ria-se com a defesa ingénua do casal, que tremia da cabeça aos pés e se lamentava em simultâneo: ai eu…ai eu… ai eu…

Na véspera um casal amigo do peito lograra entrar no armazém e trocar o conteúdo das bilhas.
Perante semelhantes provas, qual teria sido a atitude do juiz?

O casal foi absolvido.

Jorge C. Chora

sábado, 20 de fevereiro de 2010

É Meu

Gotas de suor escorriam da testa de Eduarda. As suas mãos ocupavam-se a colher amoras silvestres. Era Verão, estava-se em Agosto e eram quase quatro da tarde. Ao seu lado e ocupadas na mesma tarefa encontravam-se Laura e Francisca. Eram colegas de escola, encontravam-se de férias e todas partilhavam um gosto: adoravam compota de amoras silvestres feitas pela D. Adelaide, mãe de Francisca.

A destreza de Laura não evitou que se tivesse picado num dedo e parasse a colheita para chupar o pingo de sangue. Francisca ao ver o que sucedera à amiga apressou-se a depositar as amoras que tinha, no chapéu que estava a seus pés, para a auxiliar. Ao debruçar-se sentiu um restolhar e pareceu-lhe ver umas folhas a mexerem-se no chão. Parou a observar. Eduarda e Laura imobilizaram-se.

- O que se passa Francisca?

- Silêncio, há aqui qualquer coisa… - respondeu-lhes, colocando o dedo indicador em frente aos seus lábios.

Calaram-se e colocaram-se à escuta.

- Estou a ouvir qualquer coisa… - disse Laura.

- Eu também - concordou Eduarda.

Os sons começaram a ouvir-se de forma mais nítida. Eram latidos sem margem de dúvida. Apressaram-se a afastar as folhas e surgiu uma bola de pêlo amarelo: era um cachorro.

- É meu! - bradou Eduarda.

- Eu também o quero… - reclamou Laura.

Francisca calou-se. As duas amigas continuaram a discutir e a esgrimir argumentos.Com cuidado Francisca pegou no cãozinho e quando o virou para si verificou, e as amigas também, que ele tinha um olho inchado, fechado, e o peito ensanguentado.

- Pensando melhor, a minha mãe é capaz de não achar muita graça a um cãozinho lá em casa - comentou Eduarda, disfarçando um esgar de repulsa.

- Não tinha pensado nisso. Tens toda a razão! A minha também precisa de ser poupada e evito-lhe dissabores - apressou-se Laura a dizer.

Francisca levou-o e D. Adelaide acolheu-o e ajudou a tratá-lo. Um mês depois tornou-se uma autêntica beleza canina e foi baptizado pelo trio de amigas como “Pitt”, mas depois só “Brad”, inspiradas no seu ídolo.

Eduarda e Laura não deixariam passar um dia, um único que fosse, sem que dissessem:

- Então Francisca, quem são as amigas, que te deixaram ficar com o Brad?

Jorge C. Chora

segunda-feira, 15 de fevereiro de 2010

Sumos e Massagens

A carrinha estacionou no princípio da rua e dela saíram quatro belas raparigas e dois rapazes. De imediato, começaram a descarregar pacotes de folhetos que os rapazes separavam e empilhavam em quatro montes. Cada rapariga recolhia uns molhinhos e dirigiam-se depois para o início da rua, uma de cada lado, e as outras duas para o fim, também para lados separados.

Um dos rapazes, olhando para o relógio, retirou um pequeno apito amarelo, da cor dos folhetos, esperou uns segundos e deu o sinal de partida.

De ambos os lados as funcionárias deram início à distribuição dos folhetos, movendo-se em seguida para se juntarem no centro. Em passos cadenciados e vigorosos, as longas e torneadas pernas tremiam o estritamente necessário, mostrando elegância e firmeza, apanágio de verdadeiras modelos.

Os folhetos eram aliciantes. Anunciavam diferentes serviços de equipas profissionais em construção e manutenção de jardins, piscinas, saunas e solários.

O percurso das funcionárias estava segmentado em várias partes e no fim de cada uma, os rapazes iam ao seu encontro com mais uma remessa de panfletos. Acto contínuo, havia um pequeno descanso em que cada funcionária estendia as pernas e era massajada, por alguns segundos, correndo o funcionário para o outro lado da rua para proporcionar à outra colega o revigorante tratamento. Nos dias de calor distribuíam um sumo fresco.

Da parte da tarde, o proprietário da empresa, ao chegar ao escritório encontrava, geralmente, grandes filas à sua espera. Uma fila com aqueles que queriam recorrer aos serviços da empresa, encomendando serviços ou construções e duas outras filas, uma de rapazes e a outra de raparigas para se inscreverem nos serviços de distribuição.

-Ou acordam ou vão ambos para a rua! Até parece que estão a sonhar com o paraíso – vociferou colérico o encarregado empoleirado na parte de trás da carrinha, farto de esperar pela Amélia e pelo João, com mais de cinquenta quilos de panfletos publicitários para serem distribuídos.

-Já vai chefe…Já vai – resmungaram ambos, sonhando com sumos e massagens.

Jorge C. Chora

sábado, 30 de janeiro de 2010

Danças

As pernas tremiam-lhe e sentia arrepios desagradáveis, ritmados, a apossarem-se de si. Resistia, com quanta força tinha à enorme, enormíssima, premente, inadiável vontade de ir à casa de banho.

O tempo gasto na deslocação à” casinha”, ainda que fossem só uns exíguos minutos, era visto com maus olhos, algo contrário às boas práticas instituídas, um crime de lesa-majestade.

A ordem era resistir, resistir como um Homem, imaginar-se a marchar contra os canhões, puxar pelo brio, não dar parte fraca e enquanto isso, balancear-se, colocar-se ora sobre a perna esquerda ora sobre a outra.

A mirá-lo estava Laura e percebeu o que se passava, até porque ela também estava com o mesmo problema e adoptara o balancear como forma de suportar o suplício.

-As Mulheres também resistem…-murmurou Laura, tentando solidarizar-se.

-Também o quê? - interrogou Afonso.

-Resistem… - disse já a medo.

-Resistem a quê?- retorquiu um tanto ou quanto mal humorado Afonso.

-Às necessidades… - respondeu.

-Macacos me mordam se entendo o que se está a passar! – desabafou Afonso - ora apoiando-se numa ou noutra perna.

-Ora pois sim… - fungou agastada Raquel - eu estou na mesma - e uma lágrima envergonhada escorreu-lhe pela face, enquanto mudava o apoio para a perna esquerda.

Pelo altifalante, uma voz metálica interrompeu o diálogo:

-D. Laura e senhor Afonso, apresentem-se com a maior brevidade possível no departamento de pessoal.

Mal entraram na sala, a directora puxou dos seus galões e disse, balanceando-se ela também:

-Nas horas de trabalho, os senhores em vez de trabalharem ensaiam passos de dança?

Não tiveram tempo de responder, pois acabava de entrar o director geral que os mirou de alto a baixo e comentou:

Era o que faltava, uma companhia de dança na minha empresa…

Jorge C. Chora

sexta-feira, 22 de janeiro de 2010

A MULHER QUE A SABIA TODA

Marta mandou esculpir a cabeça de seu marido e colocá-la num pedestal, no quintal da sua casa. Na base do pequeno monumento mandou gravar a seguinte inscrição: A um Homem que merece.
O velho Fabião achou exagerado o acto de sua mulher e comunicou-lhe isso mesmo, embora, lá no fundo, se sentisse não só honrado como profundamente reconhecido.

Desse dia em diante as relações entre o casal atingiram um ponto de harmonia tal que mesmo quando ele se exaltava, a doçura de Marta logo o apaziguava. Fabião andava nas nuvens e tudo o que ela fazia lhe agradava.

A cabeça esculpida, à medida que o tempo passava, parecia humanizar-se, tomar cor, assemelhar-se cada vez mais aos tons avermelhados de Fabião.

A sovinice de Fabião foi cedendo e a sua amada foi recebendo o que nunca recebera antes: flores e bolos.

A aldeia cobriu-se de espanto perante os arroubos românticos do conterrâneo e a felicidade de Marta.

A notícia da cabeça esculpida no quintal do casal correra entretanto e logo foi associada ao milagre da metamorfose testemunhada por todos. O lugarejo transformou-se quase num campo de menhires, tantos foram os pedestais semeados em tudo o que era canto.

A desilusão depressa se apoderou da população pois não obteve nem de perto nem de longe o que Marta alcançara.

As comadres de Marta deixaram-se de rodeios e insistiam amiúde:

-Qual é o teu segredo? Como mudaste o Fabião?

-Qual segredo nem meio segredo! - e sorria …

-Tu é que a sabes toda…

Passaram-se alguns anos e a comunidade desistiu de descobrir o segredo do casal. Ainda hoje, sempre que Fabião se irrita, Marta continua a ir ao seu quintal, com uma pequena cesta de tomates e atira-os à cabeça esculpida, enquanto grita:

-Toma Malandro que é para saberes. Não gostas? Toma outro. Ai agora não falas? Toma lá o terceiro que três foi a conta que Deus fez.

Logo a seguir, despeja-lhe um balde de água e remata:

-E agora lava-te seu porcalhão!

Jorge C. Chora