segunda-feira, 25 de abril de 2016

ORDINÁRIO,MARCHE !


Doem -lhes os pés
de tanto andar
e de não saírem
do mesmo lugar.
Que dores, quererem andar
e terem de recuar,
impedidos de caminharem
por ordens tonitruantes:
Para trás que esse é o
vosso lugar.
Ordinário, marche!
E à juventude continuam
a doer-lhe os pés,
de tanto andarem
e não saírem
do mesmo lugar.
E o 25 que não chega!

Jorge C. Chora



domingo, 24 de abril de 2016

A SÁBIA ANALFABETA


Afirmava-se, sem qualquer margem para dúvidas, que D. Laurência tinha mais anos do que a viúva de Matusalém. Era nisso que acreditavam as vizinhas, sem  excepção, pois falasse-se de quem se falasse, aí estava o comentário de D.Laurência: muito boa pessoa, faleceu há cinquenta anos, após uma vida de sacrifício e conduta irrepreensível.

Interrogavam-se as más-línguas do bairro, como era possível que numa freguesia como aquela em que habitavam, em que mais de 20 em cada cem pessoas, com comportamentos pouco ortodoxos, a seu ver, D. Laurência produzisse o comentário: muito boa pessoa, sobre alguém que nunca se tivesse casado e tivesse uma caterva de filhos.

O marido de Laurência deitava as mãos à cabeça com os gastos que a sua mulher fazia em livros, principalmente de História sobre os mais diversos assuntos.. Que ele soubesse, Laurência era analfabeta, dos pés à cabeça.

-Não sei porque gastas tanto dinheiro em livros Laurência…

-O dinheiro é meu e que eu saiba não te falta nada “Manel”…

Manel calava-se e o que é certo é que ficava embasbacado ao ouvir as opiniões fundamentadas de Laurência sobre história, filosofia, economia, política, literatura e sobre muitos outros assuntos.
Um dia Laurência morreu. No seu funeral compareceram conhecidas figuras da cultura. Manel surpreendeu-se : c onhecia-os todos , como amigos de Laurência, mas desconhecia o que faziam na vida. Todos se referiram à sua mulher como uma sábia.
Intrigado, Manel questionou um dos amigos da mulher:

-Se Laurência era analfabeta, como chegou a sábia?

-Ela comprava  e emprestava os livros de que precisávamos. A condição era de lhe explicarmos, da forma mais simples e clara, o seu conteúdo. Os livros  tinham de ser consultados de forma a servirem para outros, como se nunca tivessem sido manuseados.

Manuel vendeu os livros a um alfarrabista, que se surpreendeu:

-Por que razão é que uma pessoa que nem ler sabia queria tantos livros?

-Os sábios têm coisas assim! - respondeu-lhe Manel, perante o ar incrédulo do comprador.

Jorge C. Chora




sexta-feira, 15 de abril de 2016

UMA BENÇÃO DIVINA OU O PAGÃO DESAVERGONHADO


Serapião tremia de frio e de fome. Entrou na igreja protegendo-se da chuva e da temperatura rigorosa que se fazia sentir. Jamais orara mas, depois de despedido e escorraçado, aprendeu o Pai Nosso e rezava-o com fervor.

Nesse dia, a oração foi dita com uma enorme fé, acompanhada por um pedido simples: obter uma refeição decente, como já há muito não comia.

Fora do templo, Barnabé atou um porco ao poste ali existente e entrou numa loja de animais para comprar rações. Cobrara uma dívida insignificante, confiscando o bácoro e agora ia para a feira vendê-lo pelo quíntuplo do dinheiro que o desgraçado lhe devia.

Serapião saiu mais leve e fortalecido da sua devoção. Olhou em frente e viu o porco à sua frente.

-Obrigado Senhor…sabia que atenderias o meu pedido! – e, acto contínuo correu para a sua dádiva, colocou-o debaixo do braço e repetiu a frase que aprendera após a sua recente conversão -  Deo Gratias … Deo Gratias!

Quando o confiscador do animal saiu da loja e não viu o porquinho, desatou aos berros e a correr pela rua fora. Acabou por alcançar Serapião que lhe disse, convicto e ofendido:

-Está enganado meu amigo. Este animal não é, nunca foi e jamais será seu. Foi uma dádiva divina. Se quer um para si, reze. Se tiver fé, muita fé, pode ser que Ele lhe dê um – E deu-lhe um safanão que o atirou de pantanas, para uma vala cheia de dejectos, enquanto concluía: estes pagãos amigos do alheio estão cada vez mais atrevidos!


Jorge C. Chora

quarta-feira, 13 de abril de 2016

O FIM ABRUPTO DOS AMORES DE SANCHA E CRISPIM

                                                  
 Crispim e Sancha são um casal de periquitos que vive num grande eucalipto que pertence a uma escola primária. As penas que ele tinha formavam um grande colar preto no pescoço que, com a idade, se tornaram rosa-alaranjado na nuca. Ela, um pouco mais pequena do que ele, com o tempo ficou com a cabeça toda verde. Foi nesta árvore que viveram os pais de Sancha e Crispim ,tal como os pais dos seus pais. Em boa verdade, também ali nasceram os filhos e os seus netos. O grande eucalipto, era a casa de gerações de periquitos da mesma família.

Todas as manhãs dão os bons-dias com um enorme chilrear. A professora Bela sorri e devolve o cumprimento:

-Muito bom dia para todos vós.

Os mais novos saem cedo do lar e dirigem-se aos lagos e regatos das redondezas onde se vão banhar, alinhar as respectivas penas, alindarem-se e verem-se reflectidos nos espelhos de água.

Passam a manhã comendo sementes, sobrevoando os campos e debicando frutos. Regressam ao eucalipto onde a mãe Sancha os espera e os acolhe.

Um dia, mal a campainha tocou, a algazarra tomou conta do pátio da escola. No fim do intervalo o chão ficou cheio de migalhas de pão que atraíram a família de Sancha e Crispim.

Márcio, aluno do 4º ano, trouxe às escondidas, uma fisga para a escola. Virou-se e lançou uma pedra para o meio do bando. Atingiu Sancha num olho.Tornou a atirar e feriu um dos periquitos mais pequenos numa pata.

Sancha levantou-se, ensanguentada e cheia de dores, saltitou a muito custo até ao pequenote ferido e colocou-lhe uma asa por cima. Sancha não resistiu ao ferimento e tombou no chão, no momento em que a professora Bela se dirigia para a aula.

Bela apanhou-a e viu que Sancha, no lugar do olho esquerdo tinha um buraco que sangrava. Bela deixou tombar uma lágrima. Márcio, que se voltara e ainda estava a guardar a fisga, regressa e acode-a na sua aflição.

Bela olha para o Márcio com imensa tristeza, mostra-lhe Sancha e diz-lhe:

-Estes passarinhos não se comem…

No chão, saltitando numa só pata, aproximou-se o passarinho da perna partida, piando aflito.
Márcio pegou nele e perguntou à professora por quem ele tinha uma grande admiração:

-Posso cuidar dele?

Bela acariciou-lhe os cabelos revoltos, beijou-o na face e acenou que sim com a cabeça.

A partir desse dia o menino trouxe sempre um pão que esfarelava e deixava em cima do muro, ao pé do eucalipto. Márcio não se apercebeu da morte de Crispim, dias depois da morte por apedrejamento da sua Sancha.

Quantos dos periquitos-rabijuncos que vemos na região de Lisboa serão da família de Sancha e Crispim?

Jorge C. Chora



quarta-feira, 6 de abril de 2016

A ABERRAÇÃO


Numa tarde de verão, ouvi o que me pareceu um bater aflito de asas, na varanda fechada da traseira da minha casa. Fui ver e vi um periquito que se debatia, por retornar à liberdade. Pé ante pé, abri totalmente duas das quatro janelas de correr e retirei-me.

Duas horas depois, regressei à varanda. Não ouvi qualquer barulho e pensei que o pássaro reconquistara os céus. Enganara-me. Ele ainda lá estava, muito quieto, como que querendo passar despercebido. O periquito não era idêntico aos que povoavam a minha rua e habitavam uma enorme árvore na escola primária da Mina, na Amadora, ou aos congéneres de Benfica: não era um periquito selvagem.

Na rua perguntei a todos os que encontrei se conheciam alguém a quem tivesse fugido o passarinho. Descrevi-o em pormenor, das plumas à cor dos olhos mas sem qualquer sucesso. Estranhei que não pertencesse a ninguém e voltava à carga com os olhos vermelhos do bicharoco, inconfundíveis, um verdadeiro passaporte para o identificar. Das duas, uma: ou viera de longe ou o dono queria ver-se livre dele.

Acabei por lhe comprar uma grande gaiola, uma casa, sementes e tudo o que fazia falta para o manter numa situação de conforto. Condoído com a solidão do bicho, comprei uma fêmea e instalei-a na gaiola. Acalentei a ideia que viriam a ter filhos.

Passaram-se meses e nada de ovos. Espantava-me com a agressividade do periquito, que em vez de namorar a recém-chegada, que era linda e pequenina,
lhe dava sovas de criar bicho, capaz de metamorfosear o Sebastião come tudo sem colher, num manso e exemplar marido, libertando-o do execrável papel de agressor.

Já as penas da “esposa” escasseavam quando decidi aprofundar o assunto e falei com um entendido nesta variedade de pássaros.

-Com olhos vermelhos? O que o meu amigo tem em casa é uma aberração, que não é macho nem fêmea!

-Como assim?- questionei-o, convencido, de que gozava com a minha ignorância e com os cuidados que eu prodigalizava à passarada.

Afiançou-me a veracidade do seu diagnóstico e aconselhou-me a devolvê-lo à liberdade. Pois sim. Como agressor que se prezava, não só não saiu como redobrou os maus tratos à bela, pequena e triste fêmea. Agora sabia porque ninguém se dava como dono do passaroco de olhos vermelhos.

O pior estava para vir: descobri que a “menina”  que eu introduzira na gaiola, era um pequeno e jovem macho.

 A minha salvação partiu de uma vizinha que trabalhava num infantário. Um belo dia ofereceu-se para os levar para a enorme gaiola que existia no pátio da escola e ver como se davam.

Dito e feito. Deram-se às mil maravilhas, viveram felizes e contentes, para gáudio da pequenada e felicidade do ex-dono.

Jorge C. Chora



segunda-feira, 4 de abril de 2016

O BRIO ÀS URTIGAS

                                        
Farto de ter carros velhos, despesas com oficinas, avarias permanentes e sem aviso prévio, resolvi comprar um pequeno utilitário novinho em folha. Feitas e refeitas as contas, lá chegou o dia em que o fui buscar e contrair uma dívida que levei cinco penosos anos a pagar.

O automóvel estava tapado, tal e qual uma prenda de natal. O vendedor, decerto amante da tauromaquia, tratada a burocracia, num passe de mágica, aproximou-se e efectuou uma chicuelina, revelando o reluzente objecto da minha cobiça.

Fui até Benfica, uma viagem bem curta, e fui surpreendido por um estranho barulho vindo do motor. Mau, pensei, ainda nem sequer estriei o carro e já tenho avarias?

Regressei ao stand e à sua respectiva oficina. Veio ter comigo um senhor de meia-idade, com um bloco na mão, trajando uma impecável bata branca, tão aprumado que me fez recordar um membro do corpo docente dos liceus da minha época.

Queixei-me da avaria e levantei o capô. O senhor olhou, viu uns fios pendurados e diagnosticou:

-Isto são uns fios sem interesse…não têm qualquer função…podem ser retirados…Já volto.

Vi a minha vida a andar para trás. Um carro novo com fios a mais? E nessa altura passou por mim um homem novo com um fato de macaco a quem pedi ajuda e disse o que se estava a passar.

-Fios sem interesse? Este recepcionista tem a mania que é mecânico! – E explicou-me que os” fios” se destinavam ao aproveitamento dos gases do motor “fire”.

Resolveu-me o problema, encaixando os tubos nos respectivos lugares, o que se tinham esquecido de fazer antes de mo entregarem.

Dois dias depois, ao fazer a marcha -atrás, o meu filho alertou-me para o facto das luzes não acenderem. Dirigi-me de imediato à oficina, onde deparei com o mesmo recepcionista.

-Luzes de marcha - atrás? Este modelo não tem!

Nem sequer reagi. Dirigi-me ao mecânico, e ele disse-me:

-Não lhe dê atenção. Este modelo tem duas pequenas peças de plástico deficientes. Não fizeram a revisão antes de lhe entregarem o automóvel!

Em minutos ficou tudo resolvido.

Este carro serviu-me durante anos a mim e também ao meu filho que o “herdou”.

Quanto ao recepcionista, que eu saiba, nunca chegou a ser aprendiz de mecânico.

Jorge C. Chora