sexta-feira, 13 de dezembro de 2013

O agradecimento

                                                    
Uma cobra gigante, escapou por um triz à morte por atropelamento, porque foi puxada, uma fracção de segundo antes, para fora da estrada.

Profundamente agradecida ao seu salvador, não descansou enquanto não o recompensou.

Ofereceu-lhe, ainda que aquele que a socorreu tivesse recusado com todas as suas forças, uma bela casa, perto da sua.

Um dia, quando já o Inverno se aproximava, ao passar em frente à residência que oferecera, decidiu entrar. Bateu à porta e como ninguém respondeu, foi penetrando sem ruído e perguntou:

-Ó da casa, pode-se entrar ou já ninguém mora aqui?

Respondeu-lhe o silêncio. Serpenteando pelo lar fora foi dar a uma sala, em que o proprietário, refastelado num sofá, dormia a sono solto.

Aproximou-se sem produzir o mínimo ruído, deu um salto, enroscou-se-lhe ao pescoço e estrangulou-o.

Verificou e reverificou se a sua presa estava morta.”Morta e bem morta”, concluiu.

Circulou pela habitação, certificando-se de que não havia mais ninguém.

Ao regressar à sala e ao rever a sua obra, bateu com a ponta da sua cauda no chão e consolou-se:”Por que hei-de ir tão longe à procura de alimento, quando o tenho aqui, à mão de semear?”

Saiu cheia de alegria, antecipando os lautos repastos que passaria a ter, sem despender qualquer esforço.”Que parte comerei em primeiro? Não posso engordar muito, senão os meus amigos suspeitarão e ainda terei de repartir as refeições…”

E mais uma vez, atravessou a rua, a pensar no seu auspicioso futuro alimentar, quando o autocarro de que a tinham salvado meses antes, lhe passou por cima, desta vez, sem qualquer falha.

Jorge C. Chora


terça-feira, 10 de dezembro de 2013

O tocador de didgeridoo

                                            


Sons ritmados e atraentes, soprados pelo tocador de didgeridoo abraçavam os transeuntes que paravam para o ouvir.

 Entusiasmado, girava o seu tronco como se de um dervixe se tratasse e, ao mesmo tempo, num jogo harmonioso, percutia dois pratos metálicos.

A caixa de moedas que tinha à sua frente, continuava vazia. Olhava-a como que hipnotizado, incrédulo com a avareza dos ouvintes.

Começou a cantar, quase murmurando no início:” …e eu também como, e já estou preocupado com a minha barriga…ela está vazia…os meus gases já não têm cheiro…” E os seus lamentos iam crescendo de intensidade.

A caixinha encheu-se e o artista esmerou-se ainda mais e, cheirando os espectadores, continuou:” …amanhã já poderei comer uma feijoada, como esta linda senhora,  ou camarões como aquela jovem…”

Tocou mais uns minutos, levantou-se e agradeceu:” Obrigado meu Deus por recompensares a minha arte e, já agora, por encheres a minha barriga e por permitires restabelecer o meu equilíbrio intestinal.”

Mais à frente, um acordeonista, com a caixa vazia à frente, foi interpelado pelo artista do didgeridoo,  enquanto lhe dava a primeira moeda:
-Os seus gases também não cheiram a nada?
-

Jorge C. Chora

terça-feira, 3 de dezembro de 2013

Intrujões

   
 Prometer muito
 e dar pouco ou nada,
 é lema de maus políticos
 e quejandos,
mais habituados,
a  tirar do que a dar,
useiros e vezeiros em receber.
São piores do que pragas de gafanhotos,
pois  essas ainda deixam vestígios:
campos pejados com milhares de cadáveres  dos da sua espécie,
tributo à sua voracidade, testemunho da sua passagem,
enquanto os primeiros os apagam,
 mais depressa do que o diabo esfrega um olho,
 negando a pés juntos terem alguma vez por aí passado,
jurando não só, que nunca por lá estiveram,
 mas que nunca, por nunca,  lá estarão!


Jorge C. Chora

domingo, 1 de dezembro de 2013

Hotel Clarabóia

O Sol acabou de se pôr. O rabirruivo assumiu o seu posto de pernoita e abrigo. Penetrou pelo espaço entre a clarabóia do prédio e o telhado. Instalou-se no rebordo interior da caixa das escadas.

O pequeno Francisco entrou e sorriu. Acabou de ver o passarinho e sossegou ao pensar:”Já está no quentinho”.

O sorriso quase se apagou ao observar melhor o pássaro. Estava na berma da saliência e ele achou que o rabirruivo corria perigo.

-Vai mais para dentro…podes cair…

O pássaro saiu do seu silêncio e respondeu-lhe:

-Não te preocupes…mesmo que caia, posso sempre voar…

-E se adormeceres?

-Bom…com a queda acordo, abro as asas e voo… -o mesmo não acontece contigo, pois não as tens e cairás…

-Mas porque não tenho asas?

-Porque não precisas  delas … não és um passarinho como eu…

-Bom, então dorme bem - e entrou para sua casa, pé ante pé, não sem que antes, pelo canto do olho, verificasse se o pequeno amigo se mantinha no mesmo sítio.

De repente, apanhou um susto, ao ver o passarinho cair. Ainda não se refizera, quando o viu dirigir-se a si, esticar o bico, beijar-lhe a testa, e dizer-lhe:

-Dorme bem, meu bom amigo.

E no mesmo patamar, Bli, a gata amarela, que saíra aproveitando a porta aberta do andar, de olhos abertos, assistiu ao voo e lamentou-se:”ainda não é desta vez que sinto no meu palato o sabor deste rabirruivo!"


Jorge C. Chora

segunda-feira, 18 de novembro de 2013

O menino e o vento

                                                           
Era uma vez um menino que queria correr mais do que o vento. Foi falar com ele e desafiou-o:

-Corro mais do que tu. Queres fazer uma corrida comigo?

-Sim, pode ser…

Logo após a competição ter começado, o menino tropeçou e caiu. O vento parou e perguntou-lhe:

-Aleijaste-te?

-Obrigado por teres perguntado. Mas porque não continuaste a correr?

-Porque uma corrida só vale a pena ser corrida se tivermos companhia… -disse-lhe o vento.

-Não compreendo o que dizes! – admirou-se o menino – Numa corrida o que é importante  não é chegar em primeiro lugar?

-Sim e não! - respondeu-lhe, com ar misterioso, o vento.

-Agora é que não percebo mesmo nada! –  declarou um pouco aborrecido o menino.

- Achas que valia a pena correr sozinho? Sem adversário? – perguntou-lhe o vento.

Ele pensou e chegou à conclusão de que era melhor estar acompanhado. Se não tivesse companhia, a competição não tinha a menor graça. Concluiu também que o vento era um bom amigo e pediu-lhe ajuda.
O vento soprou então com toda a força que tinha, mostrando-lhe o que ele tinha de fazer.

-Mas eu nunca conseguirei correr tanto como tu! – exclamou  desanimado o menino.

-Precisas de ganhar asas nos pés e isso não se consegue sem esforço! – explicou-lhe o vento.

-Mas eu não sou um pássaro…

Depois de um ano de esforço, na primeira corrida em que entrou, o jornalista que assistiu à corrida, escreveu: O vencedor da corrida tem asas nos pés.

Jorge C. Chora


domingo, 17 de novembro de 2013

A mulher dos dois chapéus

                                                                                                                                 

A vassoura era o seu instrumento de trabalho .Usava-a com garbo e raramente parava de trabalhar, com excepção dos breves e indispensáveis momentos de descanso. Retomava a sua actividade com a força e a determinação que a caracterizavam. Não ficava uma folha caída no chão por varrer, um simples bilhete de transporte por recolher. Voltava atrás quantas vezes fossem necessárias. Mariana, assim se chamava e chama a trabalhadora, usava dois chapéus de palha ao mesmo tempo. Um inclinado para a frente que lhe tapava a testa e o outro, encaixado no primeiro, voltado para trás, trazendo-lhe protecção para as inclemências do tempo.

Quando lhe atribuíam uma zona de trabalho diferente, mesmo que fosse por pouco tempo, a sujidade acumulava-se no bairro que ela deixara. As folhas dos plátanos, no Inverno, depois de uma ventania ou de uma chuvada mais intensa pejavam as ruas, tornando-as inseguras e feias. A agravar a situação, as folhas dos panfletos publicitários, que as pessoas teimam em deitar para o chão misturavam-se com os jornais que depois de lidos tinham o mesmo destino.

Quando a senhora aparecia, desencadeava uma autêntica guerra às folhas, que esvoaçavam na ponta da sua vassoura, até formarem montes que ela recolhia e ia depositando no lixo, sem tréguas e sem sinais de esmorecimento.

D. Mariana, a mulher dos dois chapéus, era o símbolo da limpeza, do trabalho árduo e de empenho na profissão. Naquele tempo não havia “sopradores”,carros “vassouras” e equipas conjugadas no combate à sujidade que hoje, felizmente, há. Em contrapartida havia a mulher dos dois chapéus, a D. Mariana, que eu vi já há alguns anos, bem perto da porta da Câmara Municipal da Amadora, instituição que ela serviu, com brio, quando estava no activo.

Vivam todas as Marianas deste país!


Jorge C. Chora

sábado, 16 de novembro de 2013

Concorrência desenfreada...

                  
  Os avós passaram o tempo a beberem este mundo e o outro. Os pais arrastaram-se pela vida fora. Os netos, fazendo jus aos antepassados, herdaram-lhes a vagabundagem e a bebida.
Para sustentarem os vícios que lhes foram deixados, especializaram-se em enganar os conterrâneos.
Os olhos dos netos esbugalharam-se, quando viram um casal à sua frente encontrar uma carteira no chão. Depressa gizaram o plano para se apropriarem do seu conteúdo.

-Foi por estas bandas que perdi a carteira… -disse a neta, arregalando os olhos.

O casal abriu a carteira, olhou para uns documentos que ela continha e perguntou:

-Como é que a senhora se chama?

Revirou os olhos e pretendeu evitar a resposta:

-Ainda não fui tratar do cartão de cidadão…

- Mas aqui há um documento de identificação…. -  respondeu-lhes o casal que tinha encontrado a carteira.

-Não me lembro de o ter deixado na carteira… - tentou esquivar-se a candidata à posse.

-Pois assim não é possível devolver-lha… - concluíram os achadores - até porque ela pertence a estrangeiros – e continuaram a caminhar, dirigindo-se a uma esquadra da polícia que se encontrava na esquina.

Antes de conseguirem chegar à delegação policial, os netos interpelaram de novo o casal que encontrara a carteira:

-Somos descendentes de franceses….é muito provável que os documentos estejam em nome dos nosso antepassados…,

-Nem franceses nem ingleses…ela pertence a… - E não tiveram tempo de acabar a frase, pois um sem abrigo apoderou-se dela e enquanto fugia gritou:

-Ela não é vossa nem é minha…ela é de quem a apanhar…

E na correria desenfreada, quando olhou para trás para controlar os seus perseguidores, chocou com um grupo de amigos do alheio que lhe ficou com a carteira e lhe disse:

- Faz de conta que somos a troika…vai-te e não digas a ninguém…

Jorge C. Chora




sábado, 2 de novembro de 2013

Guardado está o pedaço...

Tinha o estômago a dar horas. Os seus olhos fixaram-se na vitrina do restaurante onde se encontravam expostas três enormes postas de peixe. Sentou-se e pediu ao empregado a maior das postas.

-Peço desculpa, mas a maior está reservada para o patrão…

-Então a segunda maior… -tentou o cliente.
-Torno a pedir-lhe desculpa, mas essa é destinada à patroa…

-Mau…não me diga que a terceira também está reservada …

-É verdade..e é para mim, que hoje estou convidado a almoçar com os patrões…

-Ainda pode comer uma bela feijoada… -sugeriu o empregado.

-Venha lá ela… -conformou-se o cliente.

Passado um bocado entraram os donos que disseram ao empregado:

-Daqui a uns minutos vai chegar um amigo que convidámos para almoçar. Mande fazer o peixe.

-Mas só há três postas…

-E depois? Escolha outro prato para si…

-Por acaso não há. A última dose de feijoada acabou de ser servida… -explicou o funcionário.

-Olhe, gordo como o senhor está, bem pode fazer dieta e agradecer-nos o cuidado que estamos a ter consigo. – replicaram os proprietários.

Na mesa, o cliente protegeu com ambos os braços o prato que tinha à sua frente ao ver o funcionário aproximar-se e exclamou:

- Não estou de dieta!

Afastou-se o empregado resmungando entre dentes:

-Não está, mas devia estar…



Jorge C. Chora

segunda-feira, 14 de outubro de 2013

Fado

Se sai do coração é fado
embora digam que nem tudo
o que daí jorra o é.
Ai não ?
O que é o amor senão fado?
E a fúria e o encanto, também a inveja e a má-língua,
a velhacaria e as saudades ?
Tudo o que saí do coração pode ser fado, seja escrito ou cantado,
porque o que hoje está rabiscado, amanhã pode ser cantado.
Se sai do coração, é mais do certo, será fado,
embora digam que nem tudo o que daí brota o seja.
Certo, mais do que certo, é que tudo o que é profundamente sentido,
amanhã será fado, seja cantado ou rabiscado.


Jorge C. Chora

terça-feira, 1 de outubro de 2013

Ushanka,o gorro milagreiro

O senhor era feio. Assemelhava-se a uma mistura de abutre e de mocho velho, caso fosse possível acasalar estas espécies! Teoricamente não era, mas na vida real, era a prova provada, de que os impossíveis não existiam! Para além da fealdade, da qual não tinha culpa absolutamente nenhuma, associava outras características não menos penalizadoras, das quais devia assumir, de facto, a total responsabilidade: implicativo e pouco social.

O cavalheiro apercebeu-se de que certos sons tinham o condão de acalmar as pessoas, de as tornar mais abertas, permeáveis e receptivas à presença de estranhos. O som era o de pombos a arrulharem. Mandou fazer um gorro à russa, onde cabia um casal de pombos.

Todos os dias, antes de sair, encafuava o casal, que ia ao pombal buscar, no interior do seu gorro e saía à rua todo sorridente.

Já no jardim, aproximava-se de um grupo de senhoras que ali se encontrava. Pouco depois, era convidado a sentar-se entre elas e o número de senhoras idosas ia aumentando gradualmente, à medida que as pombas iam produzindo os sons acolhedores. A estas senhoras juntavam-se outras mais jovens e atraentes.

A cachaça a que era tão afeiçoado e lhe causava aquela vermelhidão na ponta do nariz, era confundida com timidez excessiva, com um rubor amoroso e delicado.

Aos poucos, sem dizer uma única palavra, tornou-se uma figura indispensável, um acompanhante de valia.
Quando ao fim da tarde as senhoras regressavam a casa, ele dirigia-se à taberna. Os frequentadores habituais rodeavam-no e demonstravam o espanto:

-Como é que tu consegues juntar as senhoras ao pé de ti? O que é que lhes dizes? Que conversas tens?

-O homem sorria e estendia o copo. Enchiam-lho de cachaça. Depois de muito instado, contava duas ou três coisas sem importância e murmurava, de modo misterioso:

-Qualquer dia conto-vos…

Um dia resolveu embaratecer os custos da alimentação dos pombos. Começou a dar-lhes uma ração de má qualidade e de baixo preço e a cortar-lhes a quantidade.

Dias depois, ao aproximar-se das amigas, estranhou a forma como estas o olhavam.

-O que é que o amigo tem a escorrer-lhe pela testa abaixo? – Interrogaram-no - com um ar enojado.
Antes que o homem respondesse, adiantaram-se os pombos:

- Basta cheirarem…

Jorge C. Chora


quarta-feira, 11 de setembro de 2013

A árvore encantada

Cresceu sem ninguém dar por ela, ao fundo do jardim, num piscar de olhos. Perguntaram ao jardineiro que árvore era aquela e quando é que fora plantada.

-Não faço a mínima ideia, não fui eu que a plantei.. – ele bem suspeitava de quem tinha sido, mas não  se atrevia a dizê-lo - nunca vi nenhuma igual…Sei que é encantada e mais nada…

-Como assim? -  espantou-se a directora do refúgio infantil.

- Quando as crianças se acolhem à sua sombra e lhe fazem pedidos, ela escuta-os… -respondeu o jardineiro

A directora olhou-o, incrédula. Afastou-se dois passos e tornou a olhá-lo, certificando-se de que ele estava mesmo à sua frente e que o ouvira bem.

-Está a dizer-me que ela ouve as crianças?

-Sim…

Sempre achara aquele jardineiro um bocado estranho. Ela sabia que ele fora ensinado por uma antiga professora que repreendia os trovões, ralhava com o diabo e a quem os deuses temiam quando saiam da linha. Já o vira a falar com as plantas, fazer-lhes festas, cantar e colocar-lhes música para que a escutassem. Agora ele queria convencê-la de que a árvore escutava as crianças e acedia aos seus pedidos!?

No dia seguinte, ao ver os gaiatos protegerem-se do sol sob a frondosa copa, foi, pé ante pé, colocar-se à escuta.

-Com o calor que está, sabia-me bem uma laranja… - disse um dos miúdos.

E a árvore inclinou-se um bocado e apresentou-lhe uma enorme e suculenta laranja.

-E a mim, um morango, imaginem só… – disse a medo outro.

A directora arregalou o olho. Um morango!? Em Agosto e sem ser de estufa!? Uma árvore que não é uma laranjeira e dá laranjas?

E o morango surgiu, grande e limpo, ao alcance da mão do petiz.

A senhora sacudiu a cabeça. Beliscou-se, certificando-se que estava acordada. Mas o que se passa aqui? Interrogou-se e resolveu tirar a limpo a situação:

-Eu queria uma banana… - pediu com uma vozinha, imitando os petizes, escondida dos seus olhares.

E a árvore inclinou-se e ofereceu-lhe uma enorme banana.

A directora estendeu a mão e quando ia colher o fruto pedido, um ramo juntou-a aos pequeninos e disse:

-Junto deles conseguirá tudo…

E o jardineiro sorriu e disse para os seus botões:

-Será que consigo enxertá-la noutros jardins? Isto só pode ser obra da minha tutora. Até tremo quando me lembro do trovão, que teve que engolir o som, para não assustar os seus meninos! Do diabo que fugiu a sete pés quando quis intrigar e, da corrida que deu aos deuses da discórdia, quando se quiseram instalar na escola sob o pretexto de ser o melhor caminho!

E nesse mesmo dia, o jardineiro só parou depois de enxertar todas as árvores das escolas da cidade.

Na tua escola há alguma árvore que fale?

Não deixes que a cortem!


Jorge C. Chora

quarta-feira, 4 de setembro de 2013

A decisão

Ameaçaram-no e ele reagiu construindo uma muralha à volta da sua torre. Ao verem as medidas que implementara,  tornaram a fazê-lo, aumentando o tom e a dimensão da ameaça.

Respondeu o visado construindo uma muralha ainda mais forte e alta do que a anterior. Sempre que era intimado, a resposta era imediata: Construía defesas mais altas e eficazes.

Um dia, os sitiantes, decidiram retirar-se e deixar de proferir os truculentos avisos. Acharam que tinham isolado o sitiado sem gastar um cêntimo em acções bélicas.

No interior da fortaleza,  as críticas não se fizeram esperar: eles próprios tinham-se enclausurado e agora estavam perdidos e sem saída. Acabariam por morrer à míngua!

Riu-se o castelão dos dislates que ouvia. Mandou que abrissem a 24ª porta da muralha.
Um pelotão executou as ordens e, ao abrir a referida porta, deixou à vista o pano da muralha.

-E então agora?- surpreenderam-se os habitantes.

O castelão chamou a criança que brincava no pátio e entregou-lhe um martelo, dizendo-lhe:
-Se deres uma martelada naquele muro, ganhas um presente e darás uma grande alegria a todos os que aqui estão.
Olharam os habitantes da fortaleza com certa piedade o seu castelão.

-Coitado, perdeu o juízo com o disparate que fez!

Eis senão quando, a criança desfere uma grande martelada e faz um enorme rombo que deixa ver com toda a nitidez o exterior do castelo.

Fez-se um silêncio sepulcral, só quebrado por uma voz tonitruante e furiosa vinda do lado oposto do castelo:

-Então o inimigo podia invadir o nosso castelo por esse ponto fraco nas muralhas?


Jorge C. Chora

domingo, 18 de agosto de 2013

O sapo alado

Era uma vez um sapo que surpreendeu toda a comunidade ao nascer com asas. À medida que crescia,  a comunidade revelava  a sua estranheza ,sempre que com ele se cruzava:

-Porque precisas tu de asas, um mero sapo como nós? Como nós quer dizer…

E o sapo alado, engolia em seco, contendo a sua vontade em dar-lhes uma sapatada daquelas valentes, que lhes tirassem, de uma vez por todas, a vontade de pronunciarem disparates.

Nascera assim, não pedira a ninguém as asas. O que mais desejava é que elas não lhe tivessem surgido e que ele fosse igual aos outros. Igual aos outros, ponto e vírgula: só sob o ponto de vista físico, porque ter uma cabeça semelhante à deles, não obrigado!

Num ano muito quente e quase sem chuva, a desgraça abateu-se sob a colónia local de sapos: metade deles  adoeceu e os filhos não vingaram devido à falta de charcos e pelo facto dos existentes terem secado.

O sapo alado assistiu à desgraça e sem que ninguém lho pedisse, bateu as asas e subiu aos céus. Procurou nuvens até que as encontrou. Assim que as viu, deu-lhes pontapés, com toda a força que tinha, empurrando-as para a sua região. Em seguida, dirigiu-se ao vento frio que soprava noutro local e falou assim:

-Amigo vento, nestas paragens ninguém te olha com bons olhos. Se vieres para as minhas bandas, vais ver que serás bem-vindo…

Em terra, os que o viram aos pontapés desabafaram:

-O que faz aquele palerma ao pontapé às nuvens?

Pouco depois, um vento frio fez-se sentir e daí a pouco, chovia de modo abundante.

E foi só a partir daí que os sapos passaram a incluir, nas suas orações, um pedido:

-Dai-nos, Senhor, a alegria e a bênção de manter a saúde ao nosso sapo alado, para que ele possa cuidar de nós…

Jorge C. Chora



sexta-feira, 26 de julho de 2013

Diogenizar/Um processo em curso

                                                                                                                                 
Às três da manhã, a notícia surpreendeu os noctívagos: Tinha nascido na principal maternidade do país, uma criança com a cabeça semelhante à de um cão. Meia hora depois nascia a segunda. Ao longo da noite nasceram largas dezenas de bebés com essas características. O repórter exultava com o que sucedia: que fenómeno é este que está a acontecer na capital? Em breve era obrigado a alargar  o âmbito geográfico da reportagem  porque, um pouco por todo o país, chegavam novas de recém-nascidos com cara de cão.

Pela manhã, as surpresas ainda não se tinham esgotado. O homem das notícias engasgava-se, minuto a minuto, ao contar o que se passava na maternidade central.

”Chegam a este local várias viaturas oficiais transportando inúmeras altas autoridades. Peço desculpa, chegaram todos os membros, incluindo os seus auxiliares directos. Dirigem-se para um pequeno palco, acabado de montar, em frente ao edifício, repleto de microfones. Os decisores mais credenciados tomam assento nas primeiras filas, sucedendo-lhes, por ordem hierárquica, os seus ajudantes. Os representantes das forças vivas, foram chegando e, ao fim de meia hora, a assembleia estava repleta. As televisões encontram-se a postos e espera-se, a todo o momento, uma comunicação.”

Publicidade relativa ao suicídio dos mais idosos e sobre os prémios que os seus descendentes receberiam, caso os incentivassem a cometê-lo e tivessem sucesso, interromperam a emissão.

“Sua excelência aproxima-se dos microfones. O discurso vai ter início, e será transmitido em directo quer pela rádio quer pelos outros órgãos de comunicação presentes.

-Cidadãs…cidadãos .Um passo em frente foi hoje concretizado: nasceram os primeiros concidadãos modelos do nosso país, resultado da nossa política de Diogenização. Daqui para o futuro, não mais veremos o apego aos bens materiais e externos a si próprios, tal como os salários e benesses do trabalho, colocados de modo egoísta. As suas necessidades serão mínimas, água e pão, e eles próprios abolirão as frivolidades sociais,…Viverão em casas minúsculas, terão um único fato, o de trabalho. Viverão como cães, o ideal máximo da nossa política de Diogenização. Para os relembrar, a todo o momento do ideal que lhes traçámos, trouxemos presentes em barro, que representam pequenos barris, habitações mais do que suficientes, que recordam a nossa figura inspiradora: Diógenes, o Cão.

Como não queremos ser avaros nos presentes, dar-lhes-emos também um cajado, para se apoiarem na sua longa caminhada e para se auto-flagelarem sempre que saiam do caminho de virtude que lhes oferecemos.
Finalmente, uma palavra destinada aos que não nasceram nesta época feliz: Estamos condenados a ter o que desejámos, a prescindir de viver em elegantes barris e a deambular pela cidade, procurando, de lamparina acesa, homens de virtude que (in)felizmente nunca encontraremos…

Jorge C. Chora
 


terça-feira, 23 de julho de 2013

A menina e os besouros

 Os escaravelhos zumbiam, tentando libertar-se dos fios que lhes prendiam as patas aos dedos das meninas que os tinham cativado na sebe dos ligustros. Em cada dedo prendiam um besouro e passeavam-se no pátio da escola, cruzando-se umas com as outras, até que ouviam a sineta a dar por findo o recreio. Cortavam os fios rente aos seus dedos e libertavam-nos, obrigando-os a transportarem o resto do fio como se fossem caudas brancas.

Dia após dia repetia-se a diversão: as flores brancas dos ligustros, pejadas de escaravelhos, eram fonte inesgotável para a apanha e prisão destes besouros voadores.

Adelaide condoía-se com a situação. Não achava justo que os prendessem e se divertissem com eles, deixando-os, no fim, presos às suas algemas de fio, que se embaraçavam nos galhos, impedindo-os de voarem.

À noite esgueirava-se do seu quarto, dirigia-se à sebe e procurava tirar os fios das patas dos besouros. O trabalho era delicado e moroso.

Um dia, enquanto se dedicava à sua missão, encontrou-se com um enorme escaravelho que se lhe dirigiu e disse:

-Em nome de todos os escaravelhos, agradeço-te a tua compreensão e bondade. Levantas-te todas as noites para nos dares a liberdade, sacrificando o teu descanso.

Adelaide assustou-se, não só com o tamanho do escaravelho mas também pelo facto de ele falar. Recomposta do susto respondeu-lhe:

-Amigo. Não gosto de vos ver sofrer. Peço desculpa do comportamento das minhas colegas. Elas não fazem por mal. Só querem divertir-se…

-Nós sabemos disso…achamos é mal que elas não tenham em conta o resultado das suas brincadeiras…mas o que havemos de fazer?

-Estejam descansados. Todas as noites virei soltar-vos dos fios com que elas vos amarram…

-Obrigado em nome de todos. Como poderemos agradecer-te pelo que estás a fazer por nós?

A menina ficou calada e depois, sem qualquer fingimento, respondeu:

-A vossa liberdade é o vosso agradecimento. Isso basta-me…

-Sabemos que tu és a única menina que não sais da escola por teres a tua mãe longe. Queres ir todos os dias dar-lhe um beijo de boas noites?

-Mas como?

Eis senão quando, três enormes besouros apareceram ao seu lado e a convidaram a subir para o seu dorso.
Uma hora depois, ao chegar a sua casa, encontrou a sua mãe a dormir e beijou-lhe ao de leve a testa, sem a acordar.

A mãe, desde essa altura, ao acordar, diz para si própria:

-É curioso, parece-me que a minha Adelaide todas as noites me vem dar um beijo de boas noites!

Jorge C. Chora


quinta-feira, 18 de julho de 2013

O rebanho voador

Sentado num caixote de frutas, rodeado de ouvintes, um velho de sapatos rotos, prende a atenção dos compadres:

- Existiu outrora um pequeno reino, localizado numa república do faz de conta. Os habitantes dessa república diziam desconhecer, por completo, o referido território e as manigâncias ali existentes. Nesse reino abundavam pastores que decidiram prescindir das cavalgaduras que lhes serviam de meios de transporte há séculos. Substituíram-nas por outros, dotados de imensos cavalos de potência, importados de uma região onde, em tempos idos, havia a Prússia.

-Mas que pastores eram esses? - Interroga um dos ouvintes.

Olharam surpresos, os presentes, para o basbaque que questionava o narrador:

--“Atão o compadri nã sabia”?Pois ouça e aprenda…

E sem demora o contador seguiu com a sua história.

-Esses pastores, não tinham uma única cabeça de gado. É estranho? Pois é…mas naquele reino era mesmo assim. Na verdade existia um único rebanho que se fartava de viajar: hoje podia estar nas terras do Regueifa e amanhã nas do Manuel do Mel, ao sabor das visitas de um fiscal cuja missão era contar as cabeças de gado que cada um possuía.  Contadas as cabeças, estabelecido o subsídio que os proprietários receberiam por cada uma, restava aos mesmos deslocarem-se à instituição para o receberem.

O rebanho, terminada a visita do fiscal, voava até às terras onde seria preciso apresentá-lo. Quanto aos brincos de identificação do gado, os pastores do reino tornaram-se especialistas em colocá-los e retirá-los num ápice.

Um dos pastores tornou-se até especialista em ocupar as casotas dos cães e, enquanto o fiscal contava o gado, ele balia e o dono da propriedade dizia:

-Ainda há mais uma ovelha  perdida por aí…ouça…

E dentro da casota o homem balia:

Méé…méé…

-E quem fazia de ovelha? - perguntou o basbaque..

-Era rotativo…

-Bem..bem…  a história já está comprida…vai lá tomar um copo que nós pagamos… - propuseram unanimemente os presentes, enquanto palpavam as chaves dos seus  carrões.

Jorge C. Chora




sábado, 6 de julho de 2013

O homem das serpentes


Subia a rua poeirenta, depois de ter atravessado a fronteira entre Espanha e Portugal. Os gaiatos ao darem por ele, gritaram:

- O homem das serpentes…fujam antes que alguma salte….

E o vendedor da banha da cobra, progredia, de modo lento, envolto em rolos de poeira, soprada pelo vento que se levantara. Da saca que transportava às costas, assomavam três cabeças de répteis vigilantes: duas viradas para a frente e a terceira para trás.

Numa mão transportava um pequeno boião que apresentava aos aldeãos, que entretanto começaram a surgir, alertados pelos gritos:

-O homem das serpentes…

-Para “animales e hombres”...se curam dolores de cabeza, dientes, entorses, coisas que incharam, males de piel…, cura tudo… - anunciava num “portinhol” coxo, mas que dava para entender.

E apresentava à esquerda e à direita os pequenos potes de banha que ia impingindo à medida que falava sem parar.

A certa altura parou as vendas e anunciou que ia beber um “vino”. Entrou na taberna e sem nada ter pedido, foi-lhe colocado à frente um copo de tinto e três tampas quase rasas com o mesmo líquido.

As serpentes saíram do saco e lamberam o néctar ao mesmo tempo que ele. Um estalido de aprovação à bebida que acabara de tomar, assinalou o regresso dos animais ao saco.

O regresso à praça fez com que as cinco mulheres, que lá se encontravam, se retirassem de imediato. Constava que as serpentes saltavam do saco e se enroscavam nas pernas das mulheres que traíam os maridos. Ninguém queria passar por semelhante teste, até porque, desde que o homem das serpentes começara a aparecer na aldeia, muitos dos casais considerados estéreis, tinham sido bafejados com o nascimento de pimpolhos e ele não vendia banhas para essa enfermidade.

Nesse dia, aconteceu que elas saltaram do saco e se enroscaram às pernas dos três notáveis da aldeia.

-Mas o que é que se passa com elas?- questionaram os enroscados.

-No se preocupen Excelências …elas tambien reconhecem quien promete e no cumpre…

A partir desse dia, o homem das serpentes e os seus animais, sempre que há campanhas eleitorais, são contratados para assistir aos comícios. O número de candidatos reduziu-se de tal forma que é necessário recrutá-los pela internet. O problema é que as serpentes não são poliglotas e os estrangeiros, que não são parvos, sabem-na toda e aproveitam-se do facto.

Jorge C. Chora




sexta-feira, 5 de julho de 2013

A cobra empinada

Ouviu um silvo perto de si. Voltou-se e viu-a: a cobra estava empinada e silvava. O pastor avançou três passos e desferiu-lhe uma violenta pancada com o seu cajado. A cobra ficou estendida no solo, inerte, morta e bem morta.

Tinha acabado de comer a bucha que a sua mulher lhe tinha preparado. O saco de papel pardo onde a sandes vinha, estava disponível. Enrolou o animal no pulso e introduziu-o no referido saco. Guardou-o no bolso porque se lembrou de que uma das filhas se queixara de ter contraído sarna e que certa parte da cobra, se fosse frita, era remédio santo para a maleita.

Chegou a casa e a família ainda não regressara. Lançou o saco para o quarto da filha e repousou na cadeira da sala.

Saiu de madrugada com o rebanho. Nunca mais se lembrara da rastejante que devia ser frita.
Quando a filha se levantou ia morrendo de susto. Atravessada na soleira da porta estava a cobra, bem viva, empinada de novo, silvando furiosa.

Aos gritos acudiram os vizinhos,  que lhe moveram uma perseguição em forma. O réptil conseguiu, como por artes mágicas, escapar aos seus perseguidores.

Alguns dos habitantes da aldeia, afirmam que a viram entrar no comboio em Tunes, outros julgam tê-la visto na estação de S. Bartolomeu de Messines.

O certo é que muitos a viram sair do comboio na capital. Os homens que a viram, perseguiram-na com sanha, logo seguidos por inúmeras mulheres.

A cobra entrou na casa de banho da estação. Quando a multidão chegou, homens e mulheres, separados, postaram-se às respectivas portas. Vinha a sair, garantiram os homens, uma beldade de olhos verdes. Do lado onde se encontravam as mulheres, todas foram unânimes em garantir que o que viram foi um belo homem de olhos azuis.

Ultrapassada a barreira dos perseguidores, a pessoa que saíra, lambeu os lábios deixando ver uma língua bífida e desapareceu na noite Lisboeta.

Meses depois, numa consulta psiquiátrica, compareceu um alcoólico que garantiu ter visto um enorme grupo de homens e mulheres, de língua bífida, que de vez em quando rastejavam e pareciam ter o maior prazer em fazê-lo.

Ao longo dos tempos há notícias que dão conta do mesmo fenómeno em muitos pontos do país.


Jorge C. Chora

quinta-feira, 27 de junho de 2013

As socas de Gervásia

Estremeceu de medo ao ver a idosa senhora, encarquilhada, ao cimo da escada. Embora pequena, parecia gigantesca. Calçava umas tamancas repletas de lama e ajeitava o carrapito, mostrando uma boca escancarada onde existiam meia dúzia de dentes podres e amarelados.

A miúda tremia ao olhá-la. A única segurança que tinha era-lhe transmitida pela mão da sua avó, que a apertava com força. Ia ser entregue naquela casa, para que a criassem.

Abandonada pelos pais, fora acolhida, com todo o carinho, pela avó, a quem segurava a mão, numa derradeira despedida. Não dormira a noite toda a pensar no que lhe ia acontecer.

D. Gervásia continuava de boca aberta e deu-lhe as boas vindas:

-Minha filha, aqui serás tratada como uma pessoa da família. Se te portares bem, herdarás estes meus sapatos quando eu morrer!

A pequena Maria, ainda hoje não sabe como não morreu, de facto, fulminada, mal isto ouviu.

Olhou com atenção para as monstruosas socas. A lama seca cobria-as mas deixava ver uns pregos laterais, também sujos, que prendiam o couro à madeira. Esboçou um gesto de fuga, mas a sua avó acalmou-a, segurando-lhe a mão com firmeza e afagando-lhe a cabeça. Imaginou-se a atravessar o rio local com elas. Ao menos não me afogava, e este pensamento fê-la acalmar-se.

Nesse dia comeu feijão-frade, com cebola, ao almoço. Ao jantar deram-lhe cebola com feijão-frade e à medida que o tempo passava percebeu que a maioria das refeições era mesmo baseada nessa qualidade de feijão.

Tentou, em diversas ocasiões, esconder a comida, mas sem sucesso. Chegou a deitá-la fora, para baixo das pipas da adega. D. Gervásia ordenou que a apanhasse e a comesse, pouco se importando que ela estivesse com areia. De todas as vezes que tentou o truque, foi apanhada e a ordem foi sempre a mesma:

-Apanha-o e come! Depressa que o tempo escasseia!

Sem falta, logo de manhã, carregava os latões com a calda que os trabalhadores iam deitar nas videiras.” Dar água à cura”, era assim que chamavam a este trabalho, saía – lhe do pêlo, devido ao vai e vem a que era obrigada.

Apanhar vides era outro dos trabalhos que a sua criação implicava. Eram necessárias a toda a hora, nomeadamente para o lume, para fazer carvão e para as enxertias. Em casa sobejavam-lhe as tarefas e escasseavam os tempos mortos. Chegou a pensar que D. Gervásia devia vender a mula já que ela substituía, em boa parte, o seu trabalho.

Só por sorte foi à escola e a frequentou uns meses, não chegando a um ano. Aprendeu a ler mas faltou-lhe a oportunidade de consolidar a escrita:

-És cá precisa em casa. Sabes ler e é tudo o que necessitas. Deixa a escrita para os escritores!
Sempre que a via a tentar escrever, partia-lhe os lápis e repetia:

-Deixa a escrita para os escritores!

Ainda hoje recorda com saudade a professora que organizou uma festa de baptismo para os alunos que ainda não o tinham recebido, como era o seu caso.

Em casa, D. Gervásia  infernizava a vida de todos, mesmo a do marido, com as suas exigências.
Um belo dia, o marido, num ataque de fúria e de bebedeira, matou-a.

Maria entrou em pânico. Correu como uma louca em direcção ao quarto de D. Gervásia, meteu-se debaixo da cama e trouxe as tamancas. Com elas bem presas, correu para o quintal e atirou-as para a fogueira que os trabalhadores tinham feito.

-As tamancas é que eu não herdo!

Jorge C. Chora





segunda-feira, 10 de junho de 2013

A estátua

                                                 

 Numa praceta exígua, ergueram uma estátua a um activo colaborador da ditadura. Um homem que a detestava, dedicou -lhe durante a sua vida um ódio de estimação e transmitiu-o ao filho. Quando o pai morreu , o filho herdou-lhe os parcos haveres e o ódio de estimação.

A atitude saiu-lhe muito cara e ao mesmo tempo desgastante. Como assim? Calma que eu conto. A praceta ficava-lhe a meio caminho entre a habitação e o local de emprego e era o percurso mais curto que podia realizar. Pouparia quase vinte minutos no trajecto, com todas as vantagens daí decorrentes.

Depois de se consumir, durante anos, para evitar passar pelo local, achou que devia alterar a sua posição. O ódio herdado permanecia incólume mas optaria por passar pela praceta todos os dias.

Logo no primeiro dia, ao passar bem em frente à estátua, uma dor de barriga súbita, resultado de uma forçada retenção de gases, fê-lo parar e contrair-se. Não é tarde nem é cedo! Mostro-lhe o desprezo que ele me merece e ainda me alivio, pensou. Dito e feito.

De forma pontual e sem falhas, todos os dias, repetia o gesto e os sons, o culto do desprezo e da saúde.
Um dia acabou por reparar que estava rodeado de pessoas que repetiam com exactidão tudo o que ele fazia. A única diferença é que tinham mudado a estátua, ninguém sabia quem ela representava e, na sua frente, existia um grande cartaz que baptizava a praça com outro nome: Praça da flatulência.

O número de pessoas a seguir o ritual não tem cessado de aumentar.


Jorge C. Chora

quinta-feira, 6 de junho de 2013

A mãe da Humanidade

Bastava puxarem-lhe pela língua e pela malandrice que D. Laura não deixava os créditos por mãos alheias.

 Um chorrilho de asneiras e um sorriso aberto era derramado sobre os interlocutores, deixando-os zonzos ou melhor, abananados e mudos durante o resto da conversa.

Da mesma terra de D. Laura era o dono do café que a atazanava sempre que podia. Nesse dia tinham alguns dos fregueses apostado no número de palavrões que ela diria quando a irritassem de modo deliberado.

Atrás do balcão, o dono ia registando, numa ardósia, com pequenos traços, a frequência das asneiras. Quatro traços verticais e o quinto, horizontal, contabilizavam grupos de cinco.

D. Laura reparou no afã do senhor e deu uma espreitadela. Apercebeu-se do ele fazia e zangou-se a valer: uma sucessão de carvalhos complementou a reprimenda.

O escriba contabilizou-os, todos, à medida que iam sendo proferidos. E foi aí que D. Laura ficou brava:

-E nem registar sabe, pois de cada vez que eu digo a palavra assinala-a como asneira. Carvalho não é um palavrão: ele é o pai da humanidade. Tem de haver respeito por ele! Sem ele a humanidade extinguia-se!

E foi assim que D. Laura passou a ser conhecida como a mãe da humanidade.


Jorge C. Chora

quarta-feira, 5 de junho de 2013

A hora da fumaça

                                                                                                                              
A colheita de citrinos decorria de modo calmo, talvez demasiado calmo para quem tinha contratado. A mão -de - obra era local. O pomar era grande e a produção do ano bastante boa.

Após duas horas e meia de trabalho, a chefe do grupo, acercou-se do patrão e comunicou-lhe uma decisão:

-Vamos fazer uma paragem. Está na hora da fumaça.

Julgou ter ouvido mal. Hora da fumaça!? Viu-as afastarem-se em direcção a uma pequena casa no fundo da propriedade. Em pleno Alentejo, estranhou o hábito de fumar por parte das trabalhadoras rurais.

No dia seguinte, a cena repetiu-se, à mesma hora, pelas 9.30 h..

-Está na hora da fumaça! - comunicou-lhe a chefe.

Sem se conter disse:

-Também gosto de fumar um cigarrinho! Vou convosco.

-Fumar um cigarrinho? Nenhuma de nós fuma!

-Como assim? Então acaba de me dizer que está na hora da fumaça… -replicou o patrão Paulo.

-E está…elas já vão a caminho da casinha…

Sem perceber nada do que se estava a passar, sentiu o sangue a subir-lhe à cabeça. Querem lá ver as maganas a gozarem comigo? Pensou. Conteve-se e conseguiu formular um pedido:

-Posso ir convosco?

-Claro…se prometer não fumar…

A coisa ia de mal a pior. Seguiu ao lado da chefe até à casinha da fumaça. Quando chegaram ela abriu a porta. No interior nada se via, mas ouviu-se um coro de vozes:

-Agora traz o patrão? Ele é capaz de não caber aqui dentro!

-Vamos lá estar caladinhas e façam o favor de ser educadas. Mostrem que o pessoal de cá sabe receber! - resmungou a chefe.

-Os anafados protegem-se…- reclamaram - Aproveitando o escuro no interior e a impossibilidade de serem reconhecidas.

Passado um bocado, com os olhos adaptados, o avantajado negociante conseguiu ver que as mulheres estavam à roda de um braseiro, esfregando as mãos, batendo os pés e algumas, levantando, de modo disfarçado as saias, aquecendo a alma.

A partir desse dia, o patrão Paulo era o primeiro a avisar o pessoal:

-Está na hora da fumaça!


Jorge C. Chora

segunda-feira, 3 de junho de 2013

O pitéu

Na  fatia de pão colocou  atum,  maionese, azeitonas verdes intercaladas com  pretas e duas fatias de presunto tipo pata negra. Parou e observou. Decorou o prato com uns arabescos de chutney de manga e continuou a empilhar.

Quando se cansou do que estava a fazer, foi ao jardim e trouxe duas bonitas flores comestíveis: uma begónia e uma capuchinha . Lavou-as bem e colocou-as no topo da torre de Babel.

O seu ajudante, esmerou-se a pôr a mesa, a escolher um vinho adequado, quando reparou que o seu” chef” após tirar o avental, se dirigiu ao bengaleiro e começou a vestir o seu casaco.

-Ó” chef”, não vamos comer?

-Claro!

-Mas está a preparar-se para sair…

-Sim, sim…vamos sair - e acabou de se arranjar - enquanto o fotógrafo da equipa captava imagens de vários ângulos da “Torre de Babel”.

-Mas, afinal, se está tudo pronto, a mesa posta, o vinho aberto… -espantou-se o ajudante.
-Não há mas nem meio mas…Vamos comer ao restaurante.

Quando o empregado de mesa lhes perguntou se já sabiam o que iam comer, a resposta não se fez esperar:

-Duas sandes de atum, com uma folha de alface simples e aquele vinho branco que costumam ter…bem fresco, por favor.

E como não há missa sem sacristão:

-E isso bem depressa! – ordenou o ajudante.


Jorge C. Chora

domingo, 19 de maio de 2013

O "Dito Cujo"


Nunca saíram tanto de mãos dadas como nos dias d`hoje. Exceptuando um arrufo ou outro de somenos importância, é vê-los tal e qual as comadres em tempo de bonança.

Circulam de nariz empinado e respondem, a quem os questiona, de modo afectado, como se tivessem sido ofendidos:

- Isso não nos parece nada bem…

Insistem os pobres mortais em obter respostas às questões que colocam e ei-los que, de queixo apontado à lua, tornam a ripostar:

-Isso não nos parece nada bem…

Por mais voltas e tentativas que se façam, apertos que se tentem …o máximo que se obtém é de novo, a mesma resposta:

-Isso não nos parece nada bem… -e segue-se um aviso - E não nos toques, que isso não nos parece nada, mas nada bem….

E é deste modo que os senhores”Não-nos-parece-nada-bem”  e “Não me toques” vão deixando passar o tempo sem se arreliarem nem se deixarem incomodar. O culpado é o outro.

O outro? Sim, aquele, … o “Dito Cujo”…esse mesmo…

O pau cai e as costas não folgam…

Jorge C. Chora

segunda-feira, 13 de maio de 2013

O cabeço


O cabeço era improdutivo como sempre fora, segundo se recordavam os habitantes do povoado mais próximo. Alguém disse, ninguém sabe quem, que ali cresceria algo absolutamente necessário para a subsistência da região.

Organizaram-se grupos para testemunharem o fenómeno. Ao fim de uns meses, a concentração populacional foi de tal ordem, que ali cresceu uma verdadeiro cogumelo populacional.  A terra foi vendida a peso de ouro, assim como as casas, mal acabadas, mas depressa despachadas.

O grupo de vigilância do cabeço, engrossava semana a semana. Um belo dia, ouviram-se logo pela manhã grandes gritos de alegria. O cabeço estava coberto de pequenos montinhos, semelhantes a tufos. Dezenas de pessoas correram para o local.

-O que é isto?

Analisados os montinhos, a desilusão apoderou-se dos presentes: era cócó de cabra…

No fundo, no vale, um pastor apascentava a sua cabrada. Foi ainda nesse dia que circulou a notícia, de que no cabeço do outro lado do vale, iria surgir o que afinal não aparecera ali.
O chiar das rodas de uma carroça fez-se ouvir. Um homem idoso, desceu, recolheu e carregou todo o esterco que coube no seu transporte.
Uma hora depois, circulando pelas ruas do povoado, anunciava:

-Estrume para as hortas caseiras…

Uma hora depois, a terceira fila de compradores que se tinha formado, ficou de mãos a abanar: O estrume tinha-se esgotado.

- Amanhã há mais… - anunciou o vendedor, de olho no rebanho.

Jorge C. Chora

terça-feira, 7 de maio de 2013

A Procissão das flores


Os dois pequenos vasos, um com uma roseira e o outro com uma laranjeira, ambas meio murchas, eram transportados com todo o cuidado. Pé ante pé, os seus carregadores, esforçavam-se por mantê-las à sombra, deixando aqui e acolá que ficassem expostas ao sol por uma questão de saúde.

Atrás deles seguia uma pequena multidão que se arrastava nos seus fatos domingueiros. Alguns carregavam regadores e, de quinhentos em quinhentos metros, revezavam-se e deitavam-lhes, à vez, um pingo de água.
Quando o pingo caía, a multidão orava e formulava os seus desejos de modo audível:

-Deus queira que sobrevivam e dêem frutos e flores. Que tenham forma e conteúdo! Que sejam bonitas, suculentas e correspondam às nossas expectativas!

E a procissão seguia, lenta mas determinada, pelas vielas do burgo, podendo ver-se, penduradas nas janelas, toalhas de plástico desbotadas fazendo as vezes das antigas colchas nos dias festivos.

Um vento fraco, mas persistente, atingiu os integrantes da procissão. Lamentaram as condições climáticas adversas e queixaram-se amargamente: era só o que nos faltava!

A marcha parou. Trocaram-se impressões. Ninguém se entendia e começaram a surgir estratégias peregrinas. A que vingou foi a que propôs acabar com a rega gota a gota, porque podia amolecer a terra, enfraquecer as raízes e ser levada pelo vento.
Entretanto a ventania aumentou.

Ainda a procissão ia a meio quando alguém gritou: Elas morreram!

-Quem…quem …?- interrogaram-se, assustados, entreolhando-se.

-As plantas…

Uma debandada colectiva teve lugar. A roseira e a laranjeira ficaram abandonadas, no meio da rua. A secura matou-as.

As pessoas que tinham estado presentes, procuraram, num frenesim enlouquecido, encontrar amendoeiras, tangerineiras, medronheiros…o que aparecesse e os abrigasse. Até este momento…nada…

Jorge C. Chora


quinta-feira, 2 de maio de 2013

A fuga


Guerrearam-se para se instalarem na grande cadeira de braços. Ao fim de uns minutos descobriram que cabiam os dois e refastelaram-se. Olharam para a avó e pediram:

-Conta-nos aquela história -e apontaram o livro colorido.

Desfolhou a avó as primeiras páginas e parou na primeira figura, representando pintainhos e ovos no ninho.

-Os pintainhos nascem dos….- E suspendeu a frase, esperando que eles a acabassem.

- Dos ovinhos … -completaram Francisco e a Matilde.

E as páginas foram sendo viradas, surgindo uma couve e uma cenoura.

-Para o burro… - gritou o Francisco, excitado, recordando-se dos animais da quinta da vizinha dos avós, a que ele dera cenouras e couves à mão.

-Muito bem - incentivou a avó – apontando para a outra figura que mostrava um prato de sopa e perguntando para que serviam também as ditas couves.

A reacção dos pequenitos não se fez esperar. Fugiram da cadeira-trono a sete pés, com os rabos cheios de fraldas, a gritarem em uníssono:

-Sopinha não! Sopinha não!

Não fosse o diabo tecê-las, durante dez minutos, ninguém mais deu pela presença dos miúdos.

Jorge C. Chora

sexta-feira, 26 de abril de 2013

Os telegrafistas


Entrava como uma seta. Ao balcão pedia um café e uma miniatura e desandava para a sua mesa. Era sempre a mesma. Comia depressa o que encomendara.

Seleccionava as moedas necessárias para pagar e ia batendo com uma delas no tampo da mesa. Com os olhos fixos só ele sabia onde ia batendo, de modo ritmado durante uns minutos.

De repente tudo mudava. As batidas transformavam-se em longas, curtas e muito curtas. Era essa a impressão que causavam a quem escutava e se ia irritando à medida que o som se impunha e chamava a atenção dos presentes.

A cena repetia-se todos os dias, mais minuto menos minuto, há anos. Um dia, sem que nada o fizesse prever, quando o senhor começou a bater com a moeda, ouviu-se um tamborilar em tudo idêntico, vindo do canto oposto da sala.

De início o nosso homem nem se apercebeu que alguém batia como ele. Um bocado depois, tomou consciência dos sons e descodificou a mensagem:

-Durante anos procurei-te. Não tive sorte. Há dias, quando me disseram que um idoso como eu se sentava num café e passava horas a tamborilar, soube que só podias ser tu.

-És tu António ? – perguntou, em morse – E  soergueu-se, em busca do  amigo que não via há trinta anos.
Tinham sido telegrafistas de profissão, colegas de curso, colocados a milhares de quilómetros de distância um do outro. Era raro o dia em que não comunicavam. No meio do mato, tinham hora marcada para a troca das poucas notícias a que iam tendo acesso. Tinham sido trinta e seis anos de serviço, sempre em bolandas, transferidos segundo as necessidades de serviço existentes. Nunca tinham deixado de comunicar, até ao momento em que foram colocados em diferentes províncias do império e se reformaram.

A partir desse dia, à hora combinada, encontram-se, apertam as mãos e cada um vai para o seu canto tamborilar, para desespero de quem lá está à mesma hora.

 Jorge C. Chora

quinta-feira, 18 de abril de 2013

Vaidades galináceas


A galinha olhava com desdém a sua vizinha codorniz. Cacarejando de modo depreciativo, não tirava os olhos dos pequenos ovos que a codorniz tinha acabado de pôr. As suas penas tremiam, tamanha era a risota convulsiva e exagerada:

-Hi…hi… que ovos raquíticos…só com uma lupa se conseguem ver…

A codorniz encolhia-se toda e desculpava-se:

-Para o nosso tamanho são até bastante grandes….e somos muito esforçadas, pois cada ovo que a senhora põe, nós temos de ter cinco para igualar o tamanho do seu…

-Têm toda a razão, os meus são cinco vezes maiores do que os seus. Faz-se uma omeleta com um só…repare que além de grandes, são nutritivos, apetitosos e desejados por todos…

-É uma questão de gosto… -replicava a codorniz, olhando com doçura os seus pequenos ovos pintalgados.

O dono dos galináceos, interrompeu o diálogo:

- Ambas têm razão naquilo que dizem, isto claro, em relação aos tamanhos. Perdem-na, quando a D. Galinha se satisfaz em pôr só um ovo dia sim, dia não e a D. Codorniz, podia esforçar-se um pouco mais se os tivesse um pouco maiores… -E enquanto isto dizia, esfregava as mãos pensando quanto lucraria se isto se concretizasse.

A galinha caiu em si. Como poderia ela pôr mais ovos, sem dar cabo da sua saúde e da qualidade dos seus ovos? E a sua vizinha codorniz? Como poderia tê-los ainda maiores, tendo em conta o seu tamanho?

A codorniz e a galinha entreolharam-se e, em uníssono, propuseram:

-Ponha o senhor os ovos que nós organizamos a venda!

Jorge C. Chora

segunda-feira, 1 de abril de 2013

O coqueiro


O coqueiro via-se ao longe, de muito longe. Ele anunciava a ilha, era o seu símbolo. Os mais velhos contavam e recontavam a lenda. No princípio do mundo, logo que as árvores apareceram, aquele coqueiro estava no continente. Depois, o pedaço de terra em que ele crescera, separou-se e viajou até ao meio do mar, transformando-se na ilha.

O tempo foi passando e foram surgindo outros coqueiros, familiares do mais velho. Não resistiram às tempestades, às violentas ondas que invadiram a terra, furiosas e com ímpetos destrutivos. Os ciclones fizeram o resto: dizimaram os poucos que tinham nascido.

O único sobrevivente foi o velho coqueiro. A fama dos seus cocos chegara a locais muito distantes. Habitantes desses mundos, chegavam à ilha atraídos pelos benefícios inultrapassáveis do consumo dos milagrosos frutos.

A água de coco, um autêntico néctar, era bebida em pequenos cálices. Eram tantas as virtudes que lhe atribuíam, que é difícil enumerá-las. Uma delas, talvez a mais cobiçada, é que ela rejuvenescia quem a bebesse. Filas intermináveis de idosos, esperavam dias e dias pela sua vez. Mal bebiam sentiam-se outros. Abandonavam as bengalas, que eram guardadas num armazém que foram obrigados a construir para o efeito.

Uma, entre muitas das enormes filas que se constituíam, era de jovens mulheres. Tinham em comum, o desejo de terem filhos que fossem sãos e fortes. A fertilidade era outra das virtudes inerentes à água. Outra fila, era formada por jovens que procuravam obter uma invejável virilidade.

O coco ralado era desejado para a culinária. O seu sabor, garantiam os utilizadores, não tinha paralelo em relação a qualquer outro. Bolos, sobremesas e pratos variados eram um sucesso.

Os tapetes e capachos feitos a partir da palha do coco, eram dos mais belos, ornamentavam as casas e traziam a sorte aos seus proprietários. As escovas utilizadas para puxar o lustro, faziam-no de tal modo que as pessoas não necessitavam de espelhos. As vassouras então, eram cobiçadas porque garantiam uma limpeza ímpar.

Um belo dia chegou ao local um homem muito rico que ofereceu pelo coqueiro uma fortuna. O jovem que estava a governar a ilha, convenceu os seus habitantes a vendê-lo. Alegava que o dinheiro fazia falta para construir um hotel de luxo. Defendeu ainda que todas aquelas actividades não faziam sentido nenhum, que deviam ser proibidas, por falta de higiene, por serem rudimentares e não se encontrarem ao nível da ilha.

O coqueiro foi transplantado para um arquipélago relativamente próximo. Morreu um ano depois.

O hotel nunca foi construído. Os visitantes deixaram de vir e a terra acabou, a pouco e pouco, por ficar despovoada porque os seus habitantes ficaram sem meios de subsistência.

O dirigente que vendera o coqueiro, vendeu a ilha a um poderoso país, cujo primeiro acto foi plantar um coqueiro em tudo idêntico ao antigo.

Jorge C. Chora


sábado, 23 de março de 2013

O dom do pequeno elefante


Quando nasceu, todos os familiares se surpreenderam com o tamanho das suas orelhas. Era natural que um elefante nascesse com essa característica, mas assim tão grandes é que ninguém se recordava.

À medida que o tempo passava, o mais letrado da manada, sossegava os restantes, contando-lhes a história de Dumbo, o elefante voador, e concluía:

-Quem sabe se não temos um segundo como ele…

Os ouvintes torciam a tromba, fingindo acreditar na possibilidade remota e um tanto idiota.

O pequeno orelhudo tinha uma vida difícil e a todos os momentos se recordava das suas especiais características anatómicas, porque passava a vida a tropeçar nelas. A mãe tinha de levantá-lo e fazia-o, enlaçando-o com a tromba de um modo suave. Sempre que isso acontecia, ela lançava uns olhares intimidativos ao seu redor e ninguém se atrevia a troçar do que sucedera.

Numa das deslocações da manada, em busca de melhores pastos, o elefante parou, obrigando a sua progenitora a fazê-lo também. Pós-se à escuta. Todos o imitaram durante um certo tempo. Ninguém ouviu nada.

-O que estás a ouvir? - perguntaram-lhe, impacientes, os restantes, cansados de nada escutarem.

-Ouço sons ao longe…uma espécie de correria de uma manada…

-Tem paciência, mas só tu é que escutas esse som… -E retomaram a sua pachorrenta marcha.

Percorridos uns bons quilómetros, aí sim, todos sentiram a terra tremer e, pouco depois, assistiram a uma manada de búfalos em debandada, perseguida por uma matilha esfomeada de leões.
Três dias depois, o pequeno parou e pôs-se de novo à escuta.

-O que foi agora?

-Sons estranhos. Parecem-me pequenos trovões. Não sei do que se trata…

Três horas após terem recomeçado a andar, cruzaram-se com um grupo de caçadores furtivos. Eles mataram um dos elementos mais velhos da manada para lhe tirarem os dentes.
A partir desse dia, sempre que o grupo o via parar e colocar-se à escuta, todos se imobilizavam. Só as moscas se atreviam a zumbir à sua volta. Evitaram deste modo muitos maus encontros.

Agora, todos o respeitam no grupo. Ao caminhar, tem sempre dois amigos, de ambos os lados, que o ajudam a amparar as suas duas preciosas orelhas. Ao longe, parecem trigémeos inseparáveis.
E tu, já descobriste o dom especial daquele teu colega que te parece estranho?

Jorge C. Chora

segunda-feira, 18 de março de 2013

Lágrimas de crocodilo


Os crocodilos reuniram-se com os seus associados e dependentes, caimões, jacarés,  aligatores e gaviais e planearam capturar a luz de sol. Executaram o golpe e aprisionaram-na numa enorme caixa forte. Na mesma caixa guardaram tudo o que era precioso, como as sementes que dariam origem aos alimentos, os pós de cócegas destinados a ser espalhados pelas pessoas mais tristes,  as liberdades dos povos e até os livros com as regras básicas para o entendimento dos seres pensantes.

A pouco e pouco, quando já eram horas dos raios solares aparecerem, a multidão veio para a rua à espera que o dia nascesse.

Pelas nove horas da manhã, ainda a noite não dera lugar ao dia. Às dez, as pessoas começaram a ficar alarmadas.

Foi mais ou menos por essa altura que os crocodilos apareceram e disseram:

-Não se preocupem. A luz há-de aparecer…

Os relógios registavam as diferentes horas e a luz do dia continuava sem despontar.
Os répteis que a tinham retido, voltaram a comunicar com os humanos:

-Não tenham receio. Vocês tinham um excesso de luz e não souberam aproveitá-la. Deixaram-na esgotar. A sua falta é benéfica, porque daqui a um tempo, quando ela regressar, saberão apreciá-la melhor.

E as horas iam-se esgotando, e o dia sem dar sequer um sorriso.

-O dia só retornará, se nós o conseguirmos trazer de volta. Como? Perguntarão. Fazendo sacrifícios, poupando, insistindo em poupar, juntando dinheiro para podermos comprar fatias do dia, queremos dizer, algumas horas de sol durante as 24 horas que o dia tem .- sentenciaram os jacarés.

As populações fizeram sacrifícios durante anos e pagaram, pagaram, cada vez mais caro, o acesso aos raios de sol que brilhavam cada vez, durante menos tempo. Socorreram-se os povos, de todos os bens que os pais e avós tinham junto para emergências.

Esgotadas as riquezas, os crocodilos e os seus sócios resolveram emprestar o dinheiro de que as pessoas precisavam, mas em troca de exigências tão grandes que ainda pioraram a situação.

Entretanto, por falta de luz, as plantas, as sementes e as colheitas diminuíram de tal modo, que provocaram a morte em massa de animais e indivíduos. Foi então que os crocodilos perceberam que já não valia a pena libertarem o sol porque deixara de haver quem lhes pagasse. Reuniram-se à volta da caixa forte e derramaram as suas famosas lágrimas que, como sabem ,são poucas e falsas: são lágrimas de crocodilo.

Jorge C. Chora


quarta-feira, 6 de março de 2013

Nos tempos que correm!


Olhava em redor, como que avaliando a possibilidade de encontrar, escondida, bem escondida, a falcatrua que procurava. Os olhos pareciam saltar-lhe das órbitas, tal a velocidade a que se deslocava , da direita para a esquerda, de alto para baixo e para todos os cantos do quarto.

Na mão trazia um metro articulado, de madeira, que ia abrindo e fechando, brandindo no ar, apontando em todas as direcções como se de um ponteiro se tratasse. Todas as residentes naquele quarto, assim como  as dos outros,  sabiam do que se tratava. Ninguém ignorava o que se ia passar dentro de pouco tempo. Pelo arfar audível, cada vez mais intenso, sabiam as presentes de que estava para breve, muito breve mesmo, o desencadear da acção.

O momento aconteceu. A senhora lançou-se para o chão, de modo atlético, fazendo uma flexão, sustendo o seu peso num só braço, levantando com o outro a colcha da primeira cama, do lado direito do quarto.

-Ah! Cá está a malandra! - exclamou vitoriosa – Puxando a extensão eléctrica do aparelho de aquecimento, guardada em baixo da cama.

Capturada a extensão, puxava-a para si, esticava o fio e media-o com todo o cuidado. Do bolso da enorme saia, até aos pés,  que trajava, retirava um lápis, melhor dizendo, um coto de lápis, e anotava religiosamente os metros que media a extensão.

-Vocês sabem perfeitamente que quanto maior é a extensão, maior é o consumo de electricidade!

Calavam-se as presentes. Estavam cansadas de lhe dizerem que não era assim.

-Eu é que sei!- respondia, zangada.

De cama em cama, de quarto em quarto, o tamanho dos fios das extensões era anotado, de modo fervoroso e sem qualquer engano.

No final do mês, quando as residentes iam  fazer as contas, lá estava a senhora, acompanhada do seu caderninho de notas:

-Tens a extensão mais pequena. Faço-te um desconto de dez tostões na tua conta.

-Tu e tu …tendes as maiores extensões. Não posso fazer-vos nenhum desconto. Dou-vos estes santinhos de STª Bárbara, para ver se ela vos alumia…

Não vou prosseguir esta história, não vá dar-se o caso de chegar aos ouvidos de algum membro do governo ou da direcção da EDP e…truca, nascer mais um imposto: o do comprimento das extensões.

Nos tempos que hoje correm!

Jorge C. Chora