segunda-feira, 26 de janeiro de 2015

O mundo maravilhoso do Bitri

Quando lhe perguntavam o que fazia,  Bitri respondia, sem pestanejar: caçador. Irritavam-se os amigos, os pais, os conhecidos e os parentes, com semelhante resposta.

-Caçador? Em Lisboa?

-É como disse .-  respondia Bitri- E continuava a fazer o que estava a fazer, ou seja, nada de nada.

Morava lá para os lados da Madragoa e todos se recordavam de que a primeira profissão ambicionada por Bitri era o de soprador de peixes.

-Soprador de peixes? Onde foste buscar essa ideia?

-Então não sabem?

-O quê Bitri? Explica-nos!

-Essa era a profissão dos meus bi e trisavôs,que o meu nome homenageia, ambos casados com ovarinas que aqui se estabeleceram. Eles sopravam o peixe, para os tornar mais gordos e apetecíveis, para que se vendessem melhor…

-Mandriões… - comentavam os ouvintes – Mas tu és bem pior do que eles! Caçador, essa não lembra ao diabo!

Bitri esgueirava-se cerca das dezasseis horas, do seu poiso habitual. Cosia-se com as paredes, verificava se ninguém o seguia e desatava a correr para local desconhecido.

Fartos do mistério, um dia postaram-se em sítios estratégicos e conseguiram segui–lo. Avançou e recuou e não muito longe do local onde morava, entrou numa pequena praceta com uma árvore ao meio. Ouviu-se um chilrear ensurdecedor. Debaixo da árvore existia uma mesa e uma cadeira, pertencente a uma taberna de petiscos.

Bitri dirigiu-se à mesa da praceta. Sentou-se e, sem que nada tivesse pedido, serviram-lhe um enorme copo de vinho e grande prato de lentilhas.
Passado um bocado o dono da tasca assomou à porta e gritou:

-Bitri, já temos clientes para os passarinhos.

Bitri alçou a perna e ouviu-se um estrondo medonho. Um cheiro pavoroso quase os asfixiou e, em simultâneo, viram cair inúmeros pássaros no chão.

Passado um bocado, um cheiro a pássaros fritos pairou no ar.

Desde esse dia, ninguém mais colocou em dúvida o título profissional de Bitri. O problema que entretanto surgiu foi o de aparecerem cada vez mais candidatos a caçadores em Lisboa.

Bitri pensa, seriamente, em abrir uma escola de caçadores na capital.

Jorge C. Chora



quinta-feira, 22 de janeiro de 2015

As lamúrias do Alcagoita


Chovia que Deus dava. Ao abrigo da inclemência, António Alcagoita, de Pixelim de Cima, entregava-se ao que mais gostava de fazer: lamentar-se. Só conseguira acumular uma pequena fortuna, três mansões, alguns apartamentos e mais de três automóveis topo de gama.

Krankhouse, seu braço direito, dormia, por favor, num pequeno apartamento da Brandoa pertencente ao patrão. Este lugar de pernoita, era contabilizado como sendo metade do seu ordenado e sempre recordado como algo precioso cedido ao seu funcionário.

O que mais custava a Krankhouse era ter de escutar as lamúrias de António. Já não o podia ouvir, principalmente porque conhecia os meandros da vida do homem de Pixelim, da sua enorme preguiça e das protecções que desfrutara à custa de um familiar de Pixelim de Baixo.

Krankhouse pensava lá com os seus botões que qualquer dia o António seria castigado pelos queixumes desmesurados, constantes e despropositadas que emitia.

Um belo dia , o empresário, a conselho do seu braço direito, teve de deslocar-se ao estrangeiro em negócios. Logo no primeiro dia, foi assaltado e levaram-lhe tudo o que tinha consigo. Quando se diz tudo, foi mesmo tudo: roupa , dinheiro, documentos e telemóvel.

Tiritando de frio, pediu a quem passava, auxílio . As pessoas, ao vê-lo despido, fugiam a sete pés. Depois de algumas horas, um morador que ia a sair de casa, condoeu-se da sua situação. Foi a casa e trouxe-lhe roupa.

Logo que se vestiu, sentiu-se outro, mais quente e seguro. Minutos passados começou a maldizer a vida. Quem passava olhava-o com desprezo. Uns atiravam-lhe fruta como se fosse um macaco; outros insultavam-no e houve quem o tentasse agredir. A situação piorara e muito. Ganhou uma nova alma, quando viu no fim da rua Krankhouse.

-Krankhouse…Krankhouse..sou eu…

O funcionário, ao ver um homem escuro, vestido com roupas de muçulmano até aos pés, desatou a fugir. Quanto mais corria, mais Alcagoita gritava. Na sua perseguição a Krankhouse, acabou por se aperceber que era também perseguido por dois ou três homens de cabeça rapada que gritavam:

-Árabe de uma figa, espera até te apanharmos…

Alcagoita sentiu o medo a invadi-lo. Agora é que o caso estava malparado. Tentou correr mais depressa ainda, mas os nazis, vociferavam, cada vez mais perto:

-Vien ici…arrête…

Quase a ser apanhado, urinou-se todo e gritou a bom gritar:

-Prendam-me esses nazis! Matem-me esses bodes!

Acordou com o colchão todo molhado. Olhou em redor e exclamou:

- Ser negro, muçulmano e estar em Paris…é dose de leão…

Krankhouse, até hoje, vive intrigado com o fim das lamúrias do Alcagoita. Suspeita de intervenção divina e, pelo sim, pelo não, todos os dias Lhe agradece a mãozinha dada.

Também é, caro leitor, como o Alcagoita? Aconselho-o a ver o preço dos colchões…


Jorge C. Chora

sábado, 17 de janeiro de 2015

O requintado sabor da água da Fonte Velha

Theresa Magdalena, assim mesmo se grafava o nome da senhora, fazia questão de ser diferente, a começar pelo nome. Fora a sua querida “Bivó” que insistira na preciosidade e o defendera perante tudo e todos : até contra a opinião do vigário, na altura da imposição dos santos óleos do baptismo.

Magdalena, herdou a paixão pelas “coisas boas”. Só o melhor a podia satisfazer, fosse em que área fosse. A mais recente exigência relaciona-se com a utilização de água, proveniente da Fonte Velha.
Se ela já utilizava a água da referida fonte, agora passou ainda a gostar mais dela e publicita-a:

- O seu sabor está mais requintado, diria mesmo, aromatizado. As batatas nela cozidas, são magníficas, sou capaz de afirmar, que têm um certo paladar a queijo!

No casarão muitos partilhavam a opinião da Exmª  Srª D. Theresa, com excepção da empregada , casada com Abel, o pastor local.

-Olha Abel, mandei-te lavar os pés na fonte e tudo aquilo mais que nós sabemos, antes de regressares a casa. Continua a fazer a tua higiene, não te quero fedorento , além de que poupo nas contas de água, mas está caladinho e evita a todo o custo que alguém te veja!

E ainda hoje, a água da fonte velha é utilizada na grande e magnífica casa da Srª  D. Theresa  Magdalena, que não passa sem os h(s) e os (g)s do seu nome  e muito menos sem os aromas e sabores tão requintados.

V.Exas. também são consumidores de tão afamada água?

Jorge C. Chora




quinta-feira, 8 de janeiro de 2015

O sabor dos beijos

  

Os beijos têm
o sabor do amor,
são promessas eternas
que correm o risco de se extinguir
mal deixem de acontecer.
Por isso, nunca se recusam,
 devem dar-se amiúde,
ao nascer e ao pôr-do-sol,
e porque não à luz do dia,
para que deles se conserve,
intacto, o sabor que eles têm.

Jorge C. Chora

quinta-feira, 1 de janeiro de 2015

Os compadres alentejanos e o homem de más falas

                                                                                                               

Desceu o primeiro degrau e conseguiu equilibrar-se. Ao segundo degrau, venceu-o a custo e ao terceiro, desequilibrou-se e teve de descer os dez restantes numa correria semelhante à de um albatroz.
Sorriu vitorioso, encostou-se ao balcão e pediu:

-Um tinto minha senhora…

-Ó Victor, hoje foi por um triz…qualquer dia estatela-se de vez…

-Que Deus não a ouça…oxalá Ele esteja a dormir a sesta…

Encostado ao fundo do balcão um homem de más falas arremessou:

- Angolano de uma figa, vê lá se tens algum préstimo, canta-nos uma cantiga da tua terra…

Victor sorriu, pigarreou e com uma voz poderosa e rouca cantou:

“ Eu ouvi um passarinho,
Às quatro da madrugada”
E a sua bela voz foi abafada, pois, em coro, toda a sala o acompanhou:

“Cantando lindas cantigas
À porta da sua amada”
….
Quando acabaram de cantar, os alentejanos presentes acolheram-no assim:

-Compadre Victor, obrigado pela canção. Não ligue ao degenerado. Até no Alentejo há quem não preste!

Victor sorri e diz:

-Não basta lá nascer para o ser. Felizmente muitos o são e nunca lá foram paridos: são gente de bem, que tem honra em sentir-se dessas terras de pão.

E, logo a seguir, bebe outro tinto e canta:

“Estala a bomba
E o foguete vai no ar”
A sala estremece e acompanha com alegria:
“Arrebenta e fica toda queimada
Não há ninguém que baile mais bem
Que as meninas da ribeira do Sado”

 Entretanto, o homem de más falas desapareceu sem que alguém desse por isso. Nunca mais lá voltou e ninguém lhe sentiu a falta.

Jorge C. Chora