quarta-feira, 16 de fevereiro de 2011

Maldito piano

As lágrimas corriam-lhe pela cara. Soluçava e pedia batendo o pé:

-Quero um piano… eu quero – e repetia até à exaustão a sua exigência.

A progenitora explicou-lhe que aquele pedido, por muito que gostasse de o satisfazer lhe era, na prática, quase impossível de concretizar.

A menina passou a exigir-lhe aos gritos e, logo a seguir, aos guinchos, a sua pretensão. Armou-se de uma paciência infinita, daquela que só as mães são capazes.

O tempo foi passando e as birras para obter o malfadado piano foram-se intensificando de tal modo, que a mãe fez um esforço sobre-humano e lhe comprou o instrumento. Como um problema nunca vem só, logo surgiu outro: de que servia o piano sem ter aulas adequadas?
Fez das tripas coração e pagou ao seu rebento as aulas.

A filha depressa se cansou da disciplina e se saturou do trabalho necessário à aprendizagem:

-Já não quero mais…não quero mais…estou farta, fartíssima da música, do piano …
A mãe franziu o sobrolho, foi buscar uma cadeira, sentou-se e começou a gritar sem cessar:

-Eu quero ouvir-te tocar piano… quero ouvir-te tocar piano…

Ao fim de um tempo a menina começou a tocar. Tocou e tocou, mas tão mal, tão mal que os cães e os gatos da vizinhança ladraram e miaram até caírem para o lado devido ao cansaço. A cena repetiu-se todos os dias, e a menina fazia de propósito e tocava, tocava até os cães desfalecerem.

Um dia bateram-lhes à porta. Eram quatro colegas do bairro que vinham pedir autorização para assistirem aos ensaios.
A mãe sentiu-se inchada. A sua linda até atraia as amigas lá a casa!
Enquanto foi preparar um refresco às amigas e as deixou a sós, elas levantaram-se, cercaram a pianista e disseram-lhe:

-Olha, estamos aqui de castigo… se voltas a fingir que não sabes… e nos dás cabo dos ouvidos … - e ainda a ameaça ia no ar e já estava realizada ,com duas de um lado e duas do outro a puxarem-lhe as tranças.

Quando a bandeja dos refrescos apareceu já uma música celestial ecoava pela sala. Ao notar que a filha lacrimejava e ao interrogá-la sobre o facto ouviu as suas amigas:

-São lágrimas de satisfação por estarmos aqui!

A partir desse dia os gatos nunca mais miaram.

Jorge C. Chora

terça-feira, 8 de fevereiro de 2011

O bolso do cão

Depois da conversa posta em dia, dos medicamentos aviados, de todos os conselhos pedidos e satisfeitos, da conta feita, chegou o momento de pagar.

-Querem lá ver… não tenho aqui dinheiro…não sei o que fiz à carteira! E agora? – e a senhora rebuscava os seus bolsos e a mala, sem sucesso.

Calmamente diz-lhe o ajudante da farmácia que a atendia, em tom de brincadeira:

-Deixe lá minha senhora, não se preocupe, não há qualquer problema…não leva os medicamentos e está resolvida a situação…

A senhora nem o ouviu, ocupada na sua busca infrutífera.

O ajudante espreita por cima do balcão, na direcção do pequeno e velho cão que a cliente trazia à trela e volta à carga:

-Minha senhora já procurou no bolso do cão?

-Que disparate…não brinque que isto é sério!

Nesse preciso momento o cão, que estava de costas para o balcão, volta-se e mostra a carteira que tinha presa na boca.

-“Queriducho”, vales mais do que uns e outros… -e quase fulminava o interlocutor com o olhar, sem que este sequer se apercebesse, perdido de riso como estava.

Ainda o cão não tinha transposto a porta, quando estanca, volta-se para trás e pisca o olho ao ajudante que se engasgou e do riso passou a tossir desalmadamente.

Jorge C. Chora

sexta-feira, 4 de fevereiro de 2011

A boina e a panela

Deixava que apagassem a luz da enfermaria e abria de modo silencioso a gaveta da mesa-de-cabeceira. Palpava o seu interior, evitando fazer o mínimo barulho. Depois de encontrar o que desejava, puxava muito devagar o objecto, antegozando o prazer que ia ter ao usufrui-lo. Colocava na sua cabeça a gigantesca boina basca e suspirava, esquecendo-se das dores que o prendiam à maldita cama. Imaginava-se a circular no seu pomar e na horta, degustando os frutos e colhendo os legumes.

Um dia acenderam a luz de modo repentino e todos o viram de boina e com um grande sorriso nos lábios. Olharam-no de soslaio. Questionaram-se sobre a sanidade mental do homem: um tarado, coitado!

Perdido por um, perdido por mil! Assim pensou e decidiu o homem da boina, passando a usá-la em pleno dia, perante o espanto dos outros doentes.

Aos poucos os colegas de infortúnio foram-se habituando à ideia e surgiram pedidos que confundiram as famílias. Hoje, de manhã, os familiares reuniram-se, aflitos, no gabinete do director:

-Veja bem, senhor director, que o meu marido quer que lhe traga uma panela! Uma panela…

-E o meu, a cana de pesca!

-E o meu, nem imagina, não sei se digo…

-Diga, diga… - insistiram curiosas as queixosas.

- O meu perfume! Louvado seja Deus…

-Não se preocupem minhas senhoras…eu próprio quando visito essa enfermaria levo o meu chapéu de praia!

-Deus nos acuda! – exclamaram, enquanto se entreolhavam e saiam apressadas do gabinete, sem olharem para trás um único segundo.

Jorge C. Chora

terça-feira, 1 de fevereiro de 2011

O pedinchão

Os olhos percorriam as redondezas sem parar. O que procuravam? Qualquer coisa, qualquer pessoa, tudo o que se mexesse e lhe pudesse dar fosse o que fosse. Pedia tudo, queria tudo, desde que não lhe custasse nada, nem um cêntimo ou um quarto de cêntimo, se esta moeda existisse. Estava longe de ser pobre: era um dos dez mais ricos da terra.

Viu o grupo do Zé Pagode ao longe e verificou em que direcção ia. Viraram à esquerda. O rumo agradou-lhe. Apressou-se para conseguir ainda apanhá-los a entrar para a baiuca. Comeu e bebeu e esgueirou-se antes de chegar a sua vez de pagar uma rodada.

O dia corria-lhe de feição. Avistou a meio da rua o novo médico da aldeia. A oportunidade era única para uma consulta à borla. Correu e conseguiu apanhá-lo.

O jovem clínico ouviu as queixas do paciente e pediu-lhe:

- Tenho de lhe observar a garganta. Encoste-se aqui à parede, levante o queixo, abra a boca, feche os olhos e vá dizendo: ááá…ááá…

Cumpriu à risca o que lhe foi ordenado. Alguns minutos depois ouviu risos e abriu os olhos. Do médico ninguém sequer soube dizer nada: esfumara-se e houve quem duvidasse da veracidade da afirmação de que o profissional de saúde ali estivera.

Atarantado com o que lhe sucedera, mais atarantado ficou ao saber pelos presentes quem era o novo João Semana:

-Ah! Foste bater à porta do sobrinho neto do Raposão!

Logo do Raposão! O único que nunca lhe pagara nada e ainda conseguira que ele lhe pagasse um copo! E pelos vistos este era pior do que o tio avô!

-Vade retro, Satanás! – exclamou com um ar ofendido o nosso pedinchão.

Jorge C. Chora